Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0325113
Nº Convencional: JTRP00036437
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO
LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Nº do Documento: RP200312020325113
Data do Acordão: 12/02/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 9 V CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: I - Sendo o preenchimento abusivo de uma livrança uma defesa por excepção, em princípio competirá ao alegante a prova de ter sido violado pela exequente o pacto de preenchimento.
II - Existirá, porém, inversão de tal ónus se a prova for difícil para o alegante, designadamente se a mesma só poder ser feita por documento existente na posse do Banco exequente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

O “Banco....., SA” instaurou execução ordinária
contra
Eduardo..... e Síria....., com domicílio na Rua....., ....., dando à execução uma livrança de 10.518.773$00, subscrita pelos executados, alegando o seu não pagamento.
Citados os executados vieram estes deduzir embargos, alegando preenchimento abusivo, pois que a mesma foi subscrita e entregue em branco ao ora exequente para caução do pagamento das responsabilidades emergentes de um contrato de abertura de concessão de crédito em conta corrente outorgado com o Banco, para satisfação de operações na Bolsa do executado Eduardo, mormente a compra e venda de títulos, transacções essas a efectuar pelo próprio Banco, e que, embora previsto até ao limite de 10.000.000$00, não foi usado para além do montante máximo de 3.000.000$00.
Alegam ainda os embargantes que os créditos negociados seriam obtidos através de ordens dadas por escrito, não tendo no entanto intervindo a executada Síria..... em qualquer dessas ordens nem delas beneficiando, e sustentando os executados embargantes que a exequente-embargada preencheu a letra por montante superior ao do crédito efectivamente concedido.
Alegaram ainda, que o exequente se tem vindo a negar a fornecer ao executado-embargante a relação dos movimentos e respectivas datas acompanhada dos respectivos documentos suporte, limitando-se ao envio de simples extracto da conta.

O embargado exequente veio a contestar, impugnando o preenchimento abusivo e a não intervenção da executada-embargante quer nas autorizações quer no preenchimento da livrança, indicando então os movimentos levados a cabo que serviam de suporte ao saldo credor subjacente colocado naquele título.

Saneado, condensado e instruído o processo, houve lugar à audiência de discussão e julgamento, tendo o M.º Juiz dado as respostas aos quesitos da base instrutória e proferido sentença que julgou os embargos improcedentes com as legais consequências.

Inconformados, recorreram os embargantes.
Admitido o recurso, vieram a alegar.
O embargado-exequente contra-alegou.

Remetidos os autos a este Tribunal foi o recurso aceite com as qualificações que trazia.
Correram os vistos legais.

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II - Âmbito do recurso

De acordo com o disposto nos arts. 684.º-3 e 690.º-1 do CPC., o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente nas alegações respectivas.
Daí que passemos a transcrever as conclusões apresentadas pelos embargantes na indicada peça processual:

“1 -) A livrança em causa foi preenchida pelo Banco recorrido, nos termos de uma autorização dos recorrentes.
2 -) Esse preenchimento deveria respeitar o valor que estivesse em dívida (com inclusão do capital, juros e demais encargos), desde que tal dívida emergisse do contrato de abertura de crédito em conta corrente junto aos autos, assinado pelos recorrentes, para caução do qual tal livrança foi pelos recorrentes subscrita.
3 -) No preenchimento da livrança autorizado pelos recorrentes, a dívida a inscrever nela teria de respeitar, com rigor, os termos do contrato de abertura de crédito que lhe serviu de base.
4 - ) A recorrente Síria, como provado ficou, não utilizou nunca o referido crédito (nem nunca ela efectuou ou ordenou qualquer transferência de e para a conta referida na alínea e) dos factos assentes (D.O. nº 22805436/001) alínea i) do elenco dos factos provados.)
5 -) Quanto à recorrente Síria, pois, a dívida exequenda não só não se apresenta como certa, líquida e exigível como se trata mesmo de uma dívida que ela nunca contraiu com o Banco recorrido, sendo, consequentemente, uma dívida verdadeiramente inexistente,
6 -) Para além de tudo, e também relativamente ao recorrente Eduardo....., a dívida a inscrever na livrança, de acordo com o contrato de preenchimento e demais circunstâncias contratuais, seria aquela que se apurasse em conformidade e na sequência do contrato de abertura de crédito assinado pelo recorrido e pelos recorrentes.
7 -) Ora, como veio a dar-se como provado, e contrariando o estipulado no referido contrato de abertura de crédito, o Banco recorrido operou transferências de crédito por via telefónica, designadamente dos montantes de 4.559.000$00, hoje 22.740,20 €, em 12.04.2000, outra de 3.042,67 € e ainda outra de 3.042,67 €, não sendo conhecida a data destas duas últimas.
8 -) Acontece, porém, que a cláusula terceira do referido contrato de abertura de crédito em conta estabelecia e estabelece expressamente que tais transferências seriam concretizadas... "em tranches solicitados por escrito, com uma antecedência mínima de cinco dias, as quais ficarão a constituir os documentos comprovativos dos respectivos levantamentos..."
9 -) E esse contrato não veio a sofrer qualquer alteração, designadamente quanto à forma nele acordada para a movimentação do crédito aberto - alíneas e) e f) do elenco dos factos provados.
10 -) Por acordo dos contratantes, tais ordens de transferência e movimentos de conta teriam de operar-se por escrito e com documento suporte comprovativo daquelas transferências e movimentos.
11 -) Com o devido respeito, é vedado ao julgador dar como provadas tais ordens de transferência e movimentos de conta com base em simples convicção ou prova testemunhal, certa como é, por objectivamente comprovada, a total falta de documentação a tal respeito.
12 -) Essa impossibilidade probatória deriva directamente do disposto no artigo 393.º-1 e seguintes do Código Civil.
13 -) Independentemente dos riscos bolsistas, que justamente deveriam sempre ser repartidos pelo Banco e pelo cliente apostador - ambos são apostadores - verdade é que o Banco recorrido, nos termos, aliás, da cláusula décima segunda do contrato de abertura de crédito em questão, fez seus e cativou para si próprio, e na totalidade, os títulos adquiridos mediante as utilizações de crédito referidas nas alíneas d) e e) dos factos assentes no despacho saneador - Alínea G) da matéria de facto assente.
14 -) Ora, não se dá conta nem se faz nestes autos a necessária liquidação do valor de tais títulos adquiridos pelo crédito dos recorrentes, e só após essa contabilização se poderá apurar o montante credor ou devedor dos recorrentes.
15 -) Por forma que o preenchimento da livrança em causa será sempre abusivo na falta da contabilização de tais valores, que, de todo, não existiu nem se mostra efectuada.
16 - ) Razão por que, no mínimo, não poderá considerar-se líquida a dívida exequenda, nem certa nem exigível.
17 -) A decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação o disposto no artigo 393.º-1 do Código Civil e nos artigos 802.º e 804.º do Código de Processo Civil.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado total-mente procedente, revogando-se a douta sentença recorrida e, em consequência, julgar-se procedente os presentes embargos, com a improcedência da execução.
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Tendo em conta as conclusões apresentadas, é-nos dado constatar que as questões suscitadas sobre as quais os embargantes-executados pretendem que nos pronunciemos são as seguintes:
a) preenchimento abusivo da livrança
b) inexistência de dívida quanto à executada-embargante Síria
c) sindicalização da prova por violação do art. 393.º-1 do CC.
d) incerteza, iliquidez e exigibilidade da obrigação
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Fundamentação

III-A) Os factos:

Foram considerados assentes ou provados, na primeira instância, os factos seguintes [A letra ou número entre parêntesis reportam-se à alínea da matéria assente ou ao quesito da base instrutória que serviram de fonte aos factos em causa]:

“- O Banco....., SA, instaurou execução contra Eduardo..... e Síria....., os embargantes, dando à execução uma livrança assinada por estes sob a expressão "assinatura(s) do(s) subscritor(es”, livrança essa que constitui o documento de fls. 05 da execução que aqui se dá por reproduzido. (A)
- Essa livrança, no valor de 10.518.773$00, agora, € 52.467,42, tem como data de emissão a de 2000.07.12 e como de vencimento a de 2001.12.20, não tendo sido paga nessa nem data nem posteriormente. (B)
- Essa livrança foi subscrita pelos executados, em branco, e com vista a servir de caução do pagamento das responsabilidades emergentes de um contrato de abertura de crédito em conta corrente, designadamente capital, juros e outros encargos, contrato esse titulado pelo documento de fls. 70 a 72 destes embargos, assinado por ambos os executados e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido. (C)
- Esse contrato que foi outorgado pelo exequente e pelos executados, tendo em vista a abertura de um crédito em beneficio do executado EDUARDO, para satisfação de operações na Bolsa, mormente a compra e venda de títulos, transacções essas a efectuar pelo próprio Banco. (D)
- As utilizações desse crédito seriam concretizadas através de ordens de transferência de e para a conta D.O n° 22805436/001 de que os executados eram titulares, "em tranches solicitados por escrito, com a antecedência mínima de 5 dias, que ficaram a constituir os documentos comprovativos dos respectivos levantamentos ..."- conforme cláusula 3 do citado contrato. (E)
- Não veio esse contrato a sofrer qualquer alteração posterior, designadamente quanto à forma nele acordada para a movimentação do crédito aberto nos termos desse mesmo contrato. (F)
- Os títulos adquiridos mediante as utilizações do crédito referido em D) e E) estão depositados e, na totalidade, cativados no próprio Banco exequente. (G)
- Em ordem à autorização de preenchimento da livrança em causa, os embargantes fizeram ao Banco exequente a comunicação constante do documento com cópia a fls. 18 (doc. 2 da petição de embargos), assinado por aqueles e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.(H)
- A executada Síria..... não utilizou nunca o referido crédito nem nunca ela efectuou ou ordenou qualquer transferência de e para a referida conta (mencionada em E) (1)
- Há mais de um ano que o executado Eduardo vem solicitando ao exequente, ao menos por escrito, informação sobre o montante do saldo da conta, datas dos respectivos movimentos e a documentação subjacente a tais movimentos. (5)
- Em resposta a essa solicitação do executado Eduardo, o Banco enviou àquele a carta que consta de fls. 22 (doc. 5 junta com a petição de embargos), bem como simples extractos da respectiva conta. (6)
- O executado, por documento escrito de 17 de Janeiro de 2000, ordenou uma transferência a crédito da conta n° 22805436/175, no montante de Esc. 6.900.000$00, hoje, € 34417,05 (7)
- E, por documento escrito datado de 22 de Março de 2000, ordenou outra transferência a crédito da mesma conta no montante de Esc. 716.000$00, hoje € 3.571, 39 (8)
- E, ainda por documento escrito datado de 20 de Março de 2001, ordenou mais outra transferência a crédito da mencionada conta no montante de Esc. 682.000$00, hoje, € 3401,80 (9)
- Para além destas ordens escritas, o Banco embargado recebeu ainda do embargante duas ordens de transferência a crédito da indicada conta (10)
- As ordens referidas em (10) foram transmitidas ao Banco por via telefónica. (11)
- Dessa forma foi recebida uma ordem do embargante de transferência no montante de Esc.4.559.000$00, hoje, € 22.740,20, em 12 de Abril/00 (12)
- E outra ordem de transferência no montante de Esc. 610.000$00, hoje, € 3.042.67 (13)
- Os indicados movimentos ficaram expressos nos extractos da mencionada conta de depósitos n° 22805436/175, que o embargante Eduardo..... recebeu periodicamente, sem deles ter reclamado (14 e 15)
- Os quais acusavam, em 04/05/2001, um "débito" ao Banco de € 49.553,20 (16)
- Por escrito de 30 de Maio de 2001, o Banco comunicou aos embargantes "denunciar" o contrato mencionado em D) e E) para o "respectivo termo" (17)
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- Do documento de fls. 70-72 a que acima foi feita referência cumpre destacar o seguinte:
Trata-se de um contrato escrito, intitulado “Contrato de abertura de crédito em conta corrente” tendo como primeiros contratantes os ora executados-embargantes e como segundo contratante o Banco exequente-ora embargado, contrato esse que se mostra assinado por todos os outorgantes, datado de 1999.01.19, estando as assinaturas dos executados reconhecidas, notarialmente, sendo de destacar nele as claúsulas seguintes:
1.ª: O Banco abre a favor dos beneficiários, um crédito em conta-corrente:
a) até ao limite de 10.000.000$00;
b) destinado a apoio de tesouraria; e
c) pelo prazo de seis meses
2.ª
1.O prazo fixado para este contrato poderá ser prorrogado, uma ou mais vezes, por iguais ou diferentes períodos
2.(...)
3.ª
As utilizações serão concretizadas por ordens de transferência de e para a conta D.O n.º 22805436/001, em tranches solicitadas por escrito, com uma antecedência mínima de cinco dias, que ficarão a constituir os documentos comprovativos dos respectivos levantamentos, obrigando-se o Banco a fornecer as quantias necessárias até ao limite do crédito fixado.
§ único: Poderá eventualmente ser acordada a movimentação do crédito aberto por este contrato por forma diversa da indicada no corpo desta cláusula.
4.ª(...).
5.ª
1. Sobre o capital em dívida serão contados juros, dia a dia, à taxa nominal de 8% ao ano
2. A taxa anual efectiva (TAE) mínima, calculada nos termos do art. 4.º do DL n.º 220/94, de 23 de Agosto, é nesta data de 8,3%
3. Os juros assim calculados (acrescidos das demais taxas legalmente aplicáveis, impostos e outros encargos) serão pagos postecipadamente ao mês, por débito na conta D.O.
6.ª
As despesas havidas com o contrato de abertura de crédito ou a ele inerentes serão igualmente debitadas na conta D.O., uma vez que constituem encargos da conta dos beneficiários.
7.ª (...)
8.ª
O Banco fica desde já autorizado pelos beneficiários, sem dependência de prévio aviso ou de qualquer outra formalidade, a reter e/ou movimentar, para os efeitos previstos na parte final da cláusula anterior, qualquer conta de depósitos de que eles sejam titulares, nomeadamente a conta de depósitos à ordem n.º 22805436/001, podendo o Banco, em consequência, transferir as quantias necessárias para a regularização do saldo da conta-corrente.
9.ª(...)
10.ª
Ao Banco fica assegurado o direito á imediata resolução do contrato, sempre que se verificar um agravamento do risco de cobrança dos seus créditos
§ único: As partes acordam em que, entre outras, constituirá indício suficiente de tal agravamento, a ocorrência de qualquer das seguintes situações:
(...)
11.ª
O incumprimento por parte dos beneficiários de qualquer obrigação pecuniária ou outra, assumida ou a assumir, do presente contrato ou a ele inerente, implica a imediata rescisão do mesmo, com a consequente exigibilidade imediata das quantias em dívida, dos respectivos juros moratórios, à taxa em vigor para o contrato, acrescida de 4% ao ano, ou outra que, se for superior, legalmente vigore a título de mora, e dos encargos em dívida.
12.ª
Para os efeitos resultantes do incumprimento das obrigações referidas ou outras, o Banco poderá, sem necessidade de prévia excussão de qualquer garantia e independentemente desta, reter e/ou utilizar todos os saldos de contas e/ou valores que os beneficiários tenham e/ou venham a ter, a qualquer título, depositados no Banco.
13.ª (...)
14.ª (...)
15.ª (...)
16.ª
O Banco poderá exigir dos beneficiários a expensas destes, a titulação por livrança ou livranças por eles subscritas, do montante em dívida, para efeitos de mobilização, sem que se produza novação e mantendo-se em vigor as cláusulas deste contrato.
17.ª (...)”

- O documento de fls. 18 (doc. n.º 2 junto pelos embargantes com a petição de embargos) vem identificado como sendo “autorização de preenchimento de livrança - contratos de abertura de crédito”, identifica os executados, é dirigida ao exequente, invoca como assunto “Operação de crédito caucionada por livrança”, vem datado de 12 de Julho de 2000, e contém a as assinaturas dos executados embargantes, tendo o texto seguinte:
“Para caução da abertura de crédito no montante de PTE: 10.000.000$00, outorgado em 19 de Janeiro de 1999, de que somos beneficiários, anexamos livrança por nós subscrita em branco, destinada a caucionar o integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes do mencionado contrato, designadamente, capital, juros e outros encargos, a qual desde já autorizamos o preenchimento por esse Banco pelo valor que estiver em dívida e a imediata apresentação a pagamento se, na data do vencimento das prestações convencionadas na identificada operação, as mesmas não forem por nós integralmente pagas.”

- O doc. de fls. 22 (doc. n.º 5 junto com a petição de embargos é uma carta datada de 2001.06.12, dirigida pelo exequente ao executado, e com a redacção seguinte:
“Somos pela presente a acusar a recepção da V/ carta datada de 2001.06.06 a qual nos mereceu a N/ melhor atenção. Assim somos a enviar reedição de extractos respeitantes ao período compreendido entre 2000.01.02 e 2001.06.07, para V/ conferência e análise. Relativamente ao valor em dívida a mesma reporta-se ao montante da conta corrente no valor de 9.934.525$00, bem como respectivos juros vencidos, à data de 2001.06.01, no valor de 90.902$00.
Sem mais de momento...”

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III.-B) O Direito

Passemos então à análise do recurso:

Tendo em conta a necessidade de fixação da matéria de facto antes que haja a aplicação do Direito, há necessidade de alterarmos a ordem de abordagem das questões colocadas, começando por isso a análise do recurso pela sindicalização dessa matéria face ao alegado preenchimento abusivo da livrança, já que os embargantes referem ter sido violado o disposto no art. 393.º-1 do CC., ao ser atendida prova testemunhal para a embargada comprovar a conformidade da livrança com as obrigações assumidas no pacto de preenchimento.

Ora, como bem se mostra referido na douta sentença recorrida, podem os embargantes invocar e discutir os vícios da relação ou negócio jurídico subjacente à livrança ou sua inexigibilidade para se eximirem ao respectivo pagamento, uma vez que entre eles e o Banco embargado se está apenas no domínio das relações imediatas.
A primeira das defesas suscitadas pelos embargantes relativamente ao montante e à exigibilidade da dívida assenta na inobservância por parte do Banco do clausulado a respeito do contrato de abertura e concessão de crédito, subjacente à livrança, o que em seu entender, legitima a recusa de pagamento da livrança, por violação atinente ao pacto de preenchimento desta, mas que o M.º Juiz não atendeu, por se ter servido de prova testemunhal para considerar provado que houvera pedidos (por escrito ou por telefone) para utilização de diversas tranches do crédito aberto, quando, nos termos contratuais, o pedido de levantamento das diversas tranches de crédito teria de ser suportada por pedido escrito e assinado pelos embargantes.

Vejamos então, se têm razão os embargantes neste domínio:

Refere-nos o art. 393.º-1 do CC. que “Se a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal.
A lei não exige que seja reduzido a escrito o pacto de preenchimento (da livrança). No entanto, entre embargantes e embargado, ambas as partes acordaram, aquando da assinatura do contrato de concessão de crédito, os termos em que seriam utilizadas as tranches colocadas à disposição dos respectivos beneficiários, e, do acordo celebrado, é possível constatar, através da cláusula 3.ª, que “As utilizações serão concretizadas por ordens de transferência de e para a conta D/O n.º 22805436/001, em tranches solicitadas por escrito, com uma antecedência mínima de cinco dias, que ficarão a constituir os documentos comprovativos dos respectivos levantamentos, obrigando-se o Banco a fornecer as quantias necessárias até ao limite do crédito fixado”, o que nos leva a concluir que foi intenção dos contraentes que quer a utilização das tranches de crédito quer a prova do seu levantamento seriam feitas por escrito, devidamente assinado.

Há assim convenção escrita que impede a admissão de prova testemunhal quanto à prova dos pedidos de utilização dos créditos abertos, pelo que terão de considerar-se não escritas as respostas dadas aos quesitos que, a respeito dessa matéria, venham a verificar-se ter sido proferidas com violação dessa formalidade.

A defesa dos embargantes assenta no preenchimento abusivo da livrança, que fora entregue ao exequente embargado, ainda em branco, apenas assinada por aqueles.
Constitui assim defesa por excepção face à força do título, assente na abstracção, literalidade e autonomia dos dizeres dele constantes.
Por princípio geral, e como defesa por excepção, competiria, portanto, aos embargantes, alegar e provar ter sido violado pelo exequente embargado o pacto de preenchimento, dado o disposto no art. 342-2 do CC..
Há que contar, no entanto, com a regra estabelecida no art. 344.º do CC., que prevê, em determinados casos, a inversão do ónus da prova.
Assim, analisando o caso em presença, vimos a verificar que, pela natureza do contrato celebrado entre embargantes e embargado, os pedidos de levantamento das tranches de crédito teriam de ser dirigidos ao ora embargado através de pedidos escritos e assinados por aqueles.
A prova de tais pedidos escritos e assinados pelos embargantes teria de ficar na posse do embargado, (pois era este que as receberia e era a este que competia conceder o crédito).
Assim, podemos afirmar com segurança que a prova de tais pedidos só ficava ao alcance do Banco, ficando os embargantes privados de qualquer documento para comprovar a violação do pacto de preenchimento, no caso de contra eles ser instaurada execução com base na livrança em branco que antes haviam subscrito e entregue ao embargado.
Isto pressupõe a existência de convenção válida no sentido de inversão do ónus da prova, de acordo com o disposto no art. 344.º-1 do CC., tendo pois de ser o Banco a provar que actuou com observância das regras contratualizadas no pacto de preenchimento, no caso de lhe ser oposta a violação.
Ora, perante a alegação de preenchimento abusivo da livrança, o Banco embargado, veio a apresentar apenas quatro ordens de transferência subscritas pelo embargante, a efectuar da conta à ordem n.º 22805436/001 (lançamentos a débito) para a conta 22805436/175 (lançamentos a crédito), o que não corresponde àquilo que tinha sido clausulado (cláusula 3.ª do contrato da abertura e concessão de crédito), pois que substancialmente diferente deste (vide cláusula 3.ª), na medida em que, o que tinha que existir para servir de comprovante do pedido e utilização das tranches, eram precisamente documentos que titulassem, com aquelas características (assinatura dos ora embargantes, beneficiários dos créditos) pedidos de transferências no sentido inverso, ou seja, da conta caucionada (22805436/175) para a conta à ordem (22805436/001).

O que os documentos assinados apresentados pelo Banco vêm a provar é apenas que o ora embargante deu ordens escritas de transferência de valores da sua conta à ordem (22805436/001) para a conta caucionada (22805436/175), o que, repete-se, é substancialmente diferente daquilo que fora acordado, e ao abrigo do qual o Banco ora embargado completou o preenchimento da livrança.

Isto não quer dizer que o Banco não tenha colocado à disposição dos embargantes as diversas quantias que se encontram titulados nos extractos das contas que apresentou.
No entanto, por não ter o Banco embargado conseguido provar, através de documento escrito, assinado pelos embargantes, terem estes efectuado o pedido de ser colocada à sua disposição na conta à ordem os diversos lançamentos que aí foram sendo colocados, faltava-lhe o suporte necessário para que, de acordo com o contratualizado, pudesse levar a efeito a prova de que o preenchimento da livrança obedecera ao pacto de preenchimento.
A prova testemunhal ou a efectuada através de outros documentos escritos – para prova da existência de pedidos (escritos e assinados)de utilização dos créditos abertos - constituía violação da cláusula 3.ª do pacto de preenchimento, pelo que, necessariamente terão de ser anuladas as respostas dadas aos quesitos dadas com base nessas provas ou que delas dependessem.

Consideram-se por isso anuladas as respostas dadas aos quesitos 7.º a 16.º da base instrutória.

Assim, o Banco embargado, ao violar o pacto de preenchimento da livrança, tornou legítima a oposição dos embargantes à defesa por eles assumida. (art. 815.º do CPC.)
Terá pois o Banco embargado de lançar mão de acção declarativa, a instaurar, para poder definir o montante do seu crédito sobre os beneficiários dos créditos, aqui embargantes, para então, sim, partir para uma execução.

A não atribuição de força executiva à livrança apresentada, torna inútil a apreciação das demais questões suscitadas, que, por isso, se consideram prejudicadas.
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A apelação tem por isso de considerar-se procedente.
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IV. Deliberação
Na procedência da apelação, revoga-se a não obstante douta sentença recorrida, substituindo-se por outra em que se julga extinta a presente acção executiva.
Custas pelo embargado.

Porto, 02 de Dezembro de 2003
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V C Teixeira Lopes