Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
628/11.3TTBCL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MACHADO DA SILVA
Descritores: COOPERATIVA DE ENSINO
ESCOLA PRIVADA
EXERCÍCIO DE FUNÇÕES PÚBLICAS
Nº do Documento: RP20121105628/11.3TTBCL.P1
Data do Acordão: 11/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A actividade desenvolvida pelas escolas privadas e cooperativas situa-se no âmbito do direito privado: o ensino nessas escolas não se traduz no exercício de uma actividade pública delegada, mas antes numa actividade privada concorrente com o ensino público, actuando tais escolas no sector privado e no exercício de actividades privadas, ainda que de interesse público.
II - Tendo um professor, após a sua aposentação, continuado a exercer as funções docentes, ao abrigo de um contrato de trabalho a tempo parcial – 4 horas lectivas semanais e uma retribuição mensal de € 339,58 – com uma cooperativa de ensino, essa atividade, ainda que de interesse público, não se enquadra no âmbito das funções públicas, pelo que não lhe é aplicável o citado art. 78º do Estatuto da Aposentação, na redação do DL nº 137/2010, de 28.12.
III - Não é de afirmar a existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho no seguinte quadro fáctico:
- Demonstrada a falta de pagamento das retribuições que lhe eram devidas, o trabalhador não alegou nem provou os transtornos e as consequências que essa falta de pagamento estava a ter na sua vida pessoal e familiar, e as repercussões que a violação dessa obrigação contratual teve no seu relacionamento com a empregadora;
- mais se apurando que o trabalhador, desde o início do ano lectivo, se encontrava aposentado, auferindo uma pensão no valor de € 1.927,81.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Reg. nº 1712.
Proc. nº 628/11.3TTBCL.

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

1. B… intentou a presente ação, com processo comum, contra C…, CRL, pedindo o pagamento da quantia global de € 13.455,87.
Para tanto, alegou ser professor do quadro da Escola … (estando reformado desde 26/08/10), sendo que, a partir de outubro de 1984, passou a exercer funções de docente na ré, em regime de acumulação, o que sucedeu até ao ano letivo de 2010/2011, auferindo € 339,58 mensais.
A partir de setembro de 2010, a R. deixou de lhe pagar os respetivos salários, bem como de efetuar os competentes descontos para a Segurança Social, razão pela qual, em março de 2011, resolveu o contrato de trabalho que com a mesma mantinha.
Pediu, assim, o pagamento de € 13.243,62, a título de indemnização por antiguidade, e os restantes € 212,25 de férias, subsídio de férias e de Natal proporcionais ao trabalho prestado no ano de 2011 (já que, entretanto, a ré liquidou os restantes créditos em dívida).
+++
Designado dia para realização de audiência de partes, não foi possível qualquer conciliação, tendo, porém, ficado assente que, com exceção do montante indemnizatório peticionado, todos os demais créditos se mostram liquidados – cf. ata de fls. 42/43.
+++
A ré contestou, alegando desde logo que o autor só lhe comunicou a sua passagem à situação de forma antecipada da função pública, a partir de setembro de 2010, sem contudo apresentar qualquer documento comprovativo dessa mesma situação.
Mais alega ter solicitado ao autor, por diversas vezes, documento que lhe permitisse lecionar na situação de aposentado, o que também não foi entregue.
Por fim, refere ter já liquidado ao autor todos os créditos que ao mesmo eram devidos (como ficou assente em sede de audiência de partes), sendo que o mesmo se mostra legalmente impossibilitado de continuar a lecionar, pelo que nenhuma indemnização lhe assiste.
+++
O autor respondeu nos moldes já alegados na PI, invocando, porém, a figura jurídica do abuso do direito e peticionando a condenação da ré como litigante de má-fé.
+++
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, posteriormente, proferida sentença, julgando improcedente a ação e absolvendo a R. do pedido.
+++
Inconformada com esta decisão, dela recorreu o A., formulando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da decisão final que pôs termo ao processo em 1ª Instância e que julgou improcedente a ação.
2. O Decreto-Lei n.° 137/2010, de 28 de dezembro, ao contrário do defendido na sentença, não tem qualquer aplicabilidade neste caso.
3. O n.° 1 do artigo 78° do Estatuto da Aposentação, na redação que lhe foi dada pelo artigo 6° do Decreto-Lei n.° 137/2010, proíbe que aposentados exerçam funções públicas nos organismos públicos constantes do seu elenco.
4. Este dispositivo legal tem caráter imperativo e é taxativo na definição dos organismos ou entes públicos abrangidos na sua previsão.
5. A recorrida é uma cooperativa de ensino, de natureza privada, que não cabe no conceito de organismo público definido no artigo 78°, n.° 1, do Estatuto da Aposentação.
6. Este facto é expressamente reconhecido na sentença recorrida.
7. Se assim é, a definição das funções exercidas pelo recorrente é desnecessária, porquanto as mesmas nunca terão a virtualidade de fazer recair sobre a relação laboral sub judicio o regime previsto no Estatuto da Aposentação.
8. O Decreto-Lei n.° 137/2010, em análise, destinou-se à aprovação de um conjunto de medidas adicionais de redução da despesa pública com vista à consolidação orçamental prevista no Programa de Estabilidade e Crescimento para 2010-2013.
9. O Decreto-Lei n.° 137/2010 visou, ao alterar a redação do artigo 78° do Estatuto da Aposentação, impedir que reformados cuja pensão de reforma é paga pela Caixa Geral de Aposentações acumulassem à pensão retribuições derivadas do exercício de funções públicas, a serem também pagas pelo Estado, tudo no sentido de redução da despesa pública.
10. Enquanto ao serviço da recorrida, o recorrente não recebe qualquer remuneração do Estado, que por isso não se vê na contingência de pagar simultaneamente ao recorrente salário e pensão de reforma.
11. A sentença recorrida é contraditória nesta matéria, porquanto refere que (página 8, 6° parágrafo): "Note-se que, para o diploma referente ao estatuto da aposentação, o que é determinante – e suficiente – para despoletar a aplicação do regime nele previsto é que os serviços sejam prestados total ou parcialmente, presencialmente ou à distância, pelo aposentado e que esses serviços tenham um custo para a entidade pública, independentemente do destino da remuneração" (sublinhado nosso).
12. A sentença recorrida, contradizendo os seus próprios termos, estabelece como critério de aplicação do regime do Estatuto da Aposentação o custo que possa ter para a entidade pública, que a recorrida não é.
13. Da mesma forma, a sentença recorrida sustenta que, independentemente de tudo o resto, o recorrente sempre teria, no limite, de optar entre receber a reforma ou o salário, o que não fez, pelo que o seu contrato de trabalho não se poderia manter a partir de 01/01/2011; para, na sequência disso e de forma novamente totalmente contraditória concluir que o recorrente tinha direito a receber as retribuições em falta.
14. Para além disso a recorrida atua em manifesto abuso de direito.
15. Sabendo da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 137/2010, que na tese da recorrida e da sentença implicariam a impossibilidade de manutenção do contrato de trabalho em vigor, a recorrida não fez caducar o contrato de trabalho, omitindo essa informação e continuando a receber o trabalho do recorrente sem lhe pagar nada por isso.
16. Está dado como provado que a recorrida sabia da situação de aposentado do recorrente, que lhe foi comunicada e nada fez após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 137/2010.
17. O recorrente estava convencido que o seu contrato de trabalho era válido e estava em vigor, tendo a expectativa de continuar a lecionar até final do ano letivo em curso. E tanto assim que foi o recorrente quem resolveu o contrato, nada fazendo a recorrida no sentido de fazer cessar a relação contratual.
18. A recorrida manteve o recorrente ao seu serviço todos os meses em que perdurou a falta de pagamento de salários (setembro de 2010 a março de 2011) e, pese embora sem lhe pagar a retribuição, criando-lhe a séria convicção da manutenção da relação laboral.
19. Aquando da receção da carta de resolução do contrato de trabalho por iniciativa do recorrente, a recorrida efetuou o pagamento dos salários em atraso, quando em rigor, a obter vencimento a sua tese, até nada teria de pagar ao recorrente porque este não podia acumular o vencimento à pensão que recebia e recebeu nesse período.
20. Só em sede judicial, na contestação, quando confrontada com a justa causa invocada, vem a recorrida alegar uma pretensa caducidade do contrato celebrado com o recorrente em virtude da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 137/2010.
21. A recorrida coloca-se claramente numa posição típica de venire contra factum proprium, que constitui inequivocamente abuso de direito, facto que não foi, como deveria ter sido, reconhecido na sentença.
22. Sustentar-se que a recorrida não podia ter feito caducar o contrato pois, sabendo da aposentação, não recebeu do recorrente nenhum papel a dizer isso mesmo, não impede o funcionamento do instituto do abuso de direito, apenas o agrava.
23. Assim, ao recorrente assistia todo o direito de resolver o seu contrato de trabalho com justa causa, com direito a indemnização.
24. Todos os factos que consubstanciam a resolução com justa causa estão dados como provados e constam da matéria de facto assente nos autos.
25. Sendo que toda a situação criada é imputável à recorrida a título de culpa, tornando os seus comportamentos imediata e definitivamente impossível a manutenção do vínculo laboral do recorrente, que o resolveu com justa causa de forma legal, devendo por isso ser indemnizado nos termos legais peticionados nos autos.
26. Destarte, foram violados: o artigo 78°, n.° 1, do Estatuto da Aposentação; o regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.° 137/2010; os artigos 127°, 343° e 394° do Código do Trabalho; e o artigo 334° do Código Civil.
+++
Não houve contra-alegações.
+++
Nesta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, ao qual respondeu o A., mantendo a sua posição assumida nas alegações.
+++
2. Factos provados (na 1ª instância):
O autor é professor de educação visual e tecnológica (EVT).
Até agosto de 2010, o autor fez parte integrante do quadro da Escola ….
Em outubro de 1984, o autor foi admitido ao serviço da ré (instituição de ensino particular), para exercer funções de docente em regime de acumulação, o que fez sob as suas ordens, direção e fiscalização até 14 de março de 2011.
No final do ano letivo de 2009/2010, o autor apresentou um pedido de reforma antecipada da função pública, pedido esse que foi deferido no dia 26/08/10 – cf. doc. de fls. 12 e 13, para os quais se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
A partir dessa data, o autor ficou apenas a lecionar na ré.
O autor comunicou à Direção da ré, na pessoa do respetivo diretor, a sua situação de aposentação.
O autor criou expectativas de obter uma maior carga horária para o ano de letivo de 2010/2011.
Contudo, neste ano letivo, o autor continuou a prestar quatro horas de trabalho semanal (como sucedia no ano letivo de 2009/2010), lecionando às turmas do 5º e 6º ano, em par pedagógico com o Prof. D….
O horário do autor era às sextas-feiras de tarde, das 13h25m às 16h40m, acrescido de tempo de apoio ao estudo – cf. doc. de fls. 11, para o qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
10º O autor auferia € 339,58 mensais.
11º No ano de 2010, a ré pagou ao autor o montante global de € 3.056,2, o qual se destinou a liquidar as remunerações dos meses de janeiro a agosto de 2010, bem como o subsídio de férias deste mesmo ano – cf. doc. de fls. 14, para o qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
12º À data da cessação do vínculo, a ré não havia ainda pago ao autor a remuneração com relação ao trabalho pelo mesmo prestado em setembro/10 e março/11 e o subsídio de Natal de 2010, não tendo igualmente processado qualquer recibo de vencimento em nome do autor durante esse mesmo período.
13º Entre o autor e o diretor da ré ocorreram, pelo menos, conversações tendentes a esclarecer o porquê do descrito no facto anterior.
14º No dia 02/03/11, o autor teve conhecimento que a ré apenas tinha efetuado descontos para a Segurança Social até agosto de 2010, inclusive – cf. doc. de fls. 15 a 17, para o qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
15º Por carta datada de 14/03/11, recebida pela ré dois dias depois, o autor resolveu o vínculo que mantinha com a ré, com efeitos imediatos, nos moldes constantes da carta que se encontra junta aos autos de fls. 18 a 20 – invocando para tanto o não pagamento das remunerações desde setembro de 2010 e do subsídio de Natal do mesmo ano, assim como a cessação dos descontos para a segurança social e a não emissão de recibos de vencimento, tudo como decorre do doc. de fls. 18 e ss. e de fls. 21 e 22, para os quais se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
16º Na mesma data, o autor remeteu ao diretor da ré uma outra carta na qual se disponibilizou para uma reunião que permitisse assegurar a transição das turmas ao seu par pedagógico – cf. docs. de fls. 23 a 25, para os quais se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
17º Não consta dos autos que a ré tenha ao seu serviço mais algum professor ou profissional que se encontre com irregular situação remuneratória.
18º Não consta dos autos que a ré apresente algum problema de solvabilidade.
19º Não consta dos autos que algum outro profissional a cargo da ré apresente irregularidades nos descontos efetuados para a Segurança Social.
20º No dia 31/03/11, por transferência bancária, a ré pagou ao autor o montante global de 2.534,22€, o qual se destinou a liquidar as remunerações e subsídio de Natal referidas no facto 12º desta factualidade – cf. doc. de fls. 14, para o qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
21º O autor, através do seu mandatário judicial, remeteu à ré a carta registada com a/r, datada de 17/05/11, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 28/29, para a qual se remete e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
22º Não consta dos autos que o autor tenha apresentado à ré qualquer documento através do qual comprovasse estar autorizado a lecionar, já depois de aposentado, documento esse que lhe havia sido solicitado, verbalmente, pela ré (através do seu diretor).
23º O autor, enquanto esteve ao serviço da ré, efetuou descontos para a Caixa Geral de Aposentações.
24º No ano de 2010, a pensão auferida pelo autor ascendeu ao montante de 1.927,81€ mensais (cf. doc. de fls. 12).
25º A ré funciona em regime de contrato de associação com o Ministério da Educação, tendo natureza de interesse público.
+++
Aceita-se a matéria de facto supra transcrita, tal qual foi objeto da decisão de facto da 1ª instância, a qual não foi impugnada pelas partes nem enferma dos vícios previstos no art. 712º do CPC, pelo que se aceita e mantém, com exceção dos pontos nºs 17, 18, 19, 20 e 22.
Na verdade, tais pontos são manifestamente conclusivos, pelo que se eliminam, nos termos do art. 646º, nº 4, do CPC.
No tocante ao ponto nº 22, elimina-se apenas a referência «Não consta dos autos que o autor tenha apresentado à ré qualquer documento», passando o mesmo ponto a ter a seguinte redação:
«A ré (através do seu diretor) solicitou ao autor um documento, através do qual comprovasse estar autorizado a lecionar, já depois de aposentado».
Pela mesma razão, a sua natureza conclusiva, se elimina a parte final do ponto nº 25, ou seja, a expressão «tendo natureza de interesse público».
+++
3. Do mérito.
Nesta sede, a única questão suscitada tem a ver com a existência de justa causa, como reclama o recorrente, o que não foi reconhecido na sentença recorrida.
Para tanto, esta discorreu da seguinte forma:
«Está assente que o autor se encontra numa situação de reforma antecipada da função pública desde 26/08/10.
Ora, perante tal facto, cumpre aferir se ao mesmo seria permitido continuar a lecionar na ré nos moldes em que o vinha fazendo e, para tal, ter-se-á de recorrer ao estatuído no DL n.º 498/72 de 09/12, o qual promulgou o estatuto da aposentação (e sucessivas alterações – DL n.º 215/87 de 29/05, DL n.º 179/2005 de 02/11 e DL n.º 137/2010 de 28/12).
Mais concretamente, ter-se-á de recorrer ao disposto no art. 78º do citado DL.
Este último, na redação conferida pelo DL 179/2005, dispunha: “Os aposentados não podem exercer funções públicas ou prestar trabalho remunerado, ainda que em regime de contrato de tarefa ou de avença, em quaisquer serviços do Estado, pessoas coletivas públicas ou empresas públicas, exceto quando se verifique alguma das seguintes circunstâncias: a) quando haja lei que o permita; b) quando, por razões de interesse público excecional, o Primeiro-Ministro expressamente o decida (…)” – n.º 1.
Já na redação conferida pelo art. 6º do DL n.º 137/2010 – decreto que, entre outros aspetos, veio eliminar a possibilidade de acumulação de vencimentos públicos com pensões do sistema público de aposentação –, dispõe o n.º 1 do art. 78º: “Os aposentados não podem exercer funções públicas remuneradas para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica, empresas públicas, entidades públicas empresariais, entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e demais pessoas coletivas públicas, exceto quando haja lei especial que o permita ou quando, por razões de interesse público excecional, sejam autorizados pelos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública”.
Neste último diploma descrevem-se ainda as situações abrangidas pelo conceito de exercício de funções, a saber: todos os tipos de atividade e de serviços, independentemente da sua duração, regularidade e forma de remuneração e todas as modalidades de contratos, independentemente da respetiva natureza, pública ou privada, laboral ou de aquisição de serviços – n.º 3 do art. 78º.
Note-se que, face ao estatuído no n.º 2 do art. 8º do DL n.º 137/2010, será a redação conferida pelo mesmo ao art. 78º a que se aplica à situação do autor – “O regime introduzido pelo artigo 6º do presente decreto-lei aplica-se a partir de 1 de janeiro de 2011 aos aposentados ou beneficiários de pensões em exercício de funções que tenham sido autorizados para o efeito ou que já exerçam funções antes da entrada em vigor do presente decreto-lei”.
Sendo óbvio que a ré não se enquadra em nenhuma das categorias (entes públicos) enunciadas no n.º 1 do art. 78º – trata-se de uma cooperativa de ensino –, ter-se-á de indagar se o autor exercia ou não funções públicas.
Como é consabido, as funções públicas são executadas no âmbito dos serviços públicos, que aparecem normalmente como serviços administrativos, e são “o modo de atuar da autoridade pública a fim de facultar, por modo regular e contínuo, a quantos deles careçam, os meios idóneos para satisfação de uma necessidade coletiva individualmente sentida” – cfr. Prof. Marcello Caetano, Direito Administrativo, Almedina, 1983, II vol., pg. 1067.
Atente-se que a ré funciona em regime de contrato de associação com o Ministério da Educação, tendo natureza de interesse público (facto provado n.º 25).
Como bem refere a ré na Contestação, por força do DL n.º 321/88 de 22/09 (diploma que disciplina a inscrição de pessoal docente do ensino não superior, particular e cooperativo, na Caixa Geral de Aposentações, ficando abrangido pelas disposições constantes dos respetivos estatutos – arts. 1º n.º 1 e 6º n.º 1) foi atribuída natureza de interesse público às funções desempenhadas pelos estabelecimentos de ensino particular e cooperativo no âmbito do sistema educativo.
Ora, atendendo a que o autor foi contratado pela ré para lecionar no estabelecimento da mesma, ter-se-á necessariamente de concluir pelo exercício de funções públicas por parte do mesmo (foi contratado para satisfação de necessidades do Estado com caráter e interesse público – funções educativas).
Note-se que, para o diploma referente ao estatuto da aposentação, o que é determinante – e suficiente – para despoletar a aplicação do regime nele previsto é que os serviços sejam prestados total ou parcialmente, presencialmente ou à distância, pelo aposentado e que esses serviços tenham um custo para a entidade pública, independentemente do destino da remuneração. É o caso em análise: o autor está aposentado da função pública e a ré funciona em regime de associação com o Ministério da Educação, sendo, pois, financiada (ou, pelo menos, cofinanciada) pelo Estado.
Consequentemente, o mesmo apenas podia ter continuado a lecionar na ré na hipótese de estar devidamente autorizado para esse efeito – art. 78º n.º 4 e 7 – e, mesmo nessa hipótese, nunca poderia cumular o recebimento da pensão (por aposentação) com qualquer outra remuneração (in casu, pelas funções exercidas na ré) – art. 79º. Seja como for, não logrou o autor estar munido de tal autorização, nem sequer de a ter solicitado …
O autor exerceu as respetivas funções até 15/03/11.
O regime previsto no DL n.º 137/2010 tem caráter imperativo e, como supra se mencionou, aplica-se a todas as situações de exercício de funções, quer tenham sido constituídas na sua vigência, quer tivessem sido constituídas anteriormente e subsistissem a 01/01/11 (cfr. art. 8º).
Claro está que, relativamente aos pensionistas nesta última situação, foi-lhes reconhecido o direito de continuarem a exercer funções sem necessidade de obter nova autorização. Contudo, nesse caso, estão obrigados a informar a CGA, através dos respetivos serviços, sobre se optam pela suspensão da pensão ou da remuneração. Esta opção é obrigatória e sempre teria de ter sido comunicada no prazo de 10 dias previsto no art. 8º n.º 3 do DL n.º 137/2010 (cfr., ainda, n.º 4 e 5 do mesmo artigo).
Ora, no presente caso, não consta que o autor tenha efetuado tal comunicação.
Uma certeza, porém, existe: o mesmo está a beneficiar de pensão de reforma a qual, no ano de 2010, ascendeu a 1.927,81€ (facto n.º 24).
Sempre seria, assim, legalmente inadmissível a manutenção da situação laboral do autor ao serviço da ré.
Aliás, é o próprio CT, no seu art. 343º, al. c), que consagra a caducidade do contrato de trabalho “com a reforma do trabalhador, por velhice ou invalidez”. Sendo que esta caducidade opera automaticamente, não necessitando por isso de ser invocada por qualquer das partes. Contudo, para que tal suceda, é óbvio que se mostra necessária a declaração que atesta a situação de aposentado (a qual nunca chegou a ser entregue pelo autor à ré, pelo que esta sempre estaria impedida de por fim ao contrato com esse fundamento, designadamente no período aqui em causa – entre setembro/10 e março/11). Seja como for, nos presentes autos, a razão subjacente à impossibilidade de manutenção do vínculo é tão somente a impossibilidade de cumulação consagrada no estatuto da aposentação.
O autor tinha pois direito aos salários correspondentes ao serviço que prestou, mas já não lhe assiste direito a qualquer indemnização, designadamente nos moldes peticionados (já que tal indemnização pressupõe necessariamente a existência de uma relação laboral válida, o que, na situação em apreço, deixou de suceder com a passagem do autor à condição de aposentado).
Concluindo, se é certo que as remunerações não foram atempadamente efetuadas, nem por isso estão verificados os pressupostos para a resolução por justa causa».
Não podemos concordar com tal fundamentação.
Desde logo, impõe-se uma precisão no quadro normativo aplicável ao ensino cooperativo, em que se insere a Ré.
O ensino cooperativo encontra-se tutelado nos arts. 43º e 75º da CRP, deles se podendo concluir que, estando cometida ao Estado a obrigação constitucional de criar um sistema público de ensino – uma rede de estabelecimentos –, ou seja, reconhecendo que a prestação do serviço de ensino é uma tarefa pública necessária, capaz de satisfazer todas as necessidades educativas do País, o Estado reconhece também o valor do ensino particular e cooperativo enquanto realidade que se lhe impõe e que participa num sistema plural de ensino.
No plano infraconstitucional, o ensino particular e cooperativo é basicamente regulado pelas Leis nºs 46/86 (Lei de Bases do Sistema Educativo), de 04.10, e 9/79 (Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo), de 19.03,
A primeira, na parte que agora releva, consagrou o reconhecimento pelo Estado do valor do ensino dos estabelecimentos particulares e cooperativos como uma expressão concreta da liberdade de aprender e ensinar e do direito da família a orientar a educação dos filhos e considerou ainda, como parte integrante da rede escolar, aqueles estabelecimentos que se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objetivos do sistema educativo – arts. 2º, nº 3, 54º, nº 1 e 55º, nº 1.
A Lei nº 9/79, reconhecendo que a atividade e as escolas públicas, particulares e cooperativas, enquadradas no âmbito do sistema nacional de educação, são de interesse público, colocou todos estes estabelecimentos no mesmo patamar – arts. 1º, nº 1, 2º e 6º.
E, coerentemente, estabelece o art. 3º, nº 2, que “as escolas particulares e as escolas cooperativas, quando ministrem ensino coletivo que se enquadre nos objetivos do sistema nacional de educação, gozam das prerrogativas das pessoas coletivas de utilidade pública…”.
Como é sabido, pessoas coletivas de utilidade pública são pessoas coletivas de direito privado que, segundo a sua finalidade estatutária, são de utilidade pública.
Ora, a atribuição de algumas prerrogativas das pessoas coletivas de utilidade pública aos estabelecimentos particulares e cooperativos reforça assim a sua natureza de pessoas coletivas privadas, não dotadas de poderes de autoridade.
Podemos, assim, concluir deste quadro normativo que as escolas privadas e as escolas cooperativas atuam no setor privado, no exercício de atividades privadas, ainda que de interesse público.
E se é assim, toda a atividade desenvolvida pelas escolas particulares e cooperativas pertence à esfera do direito privado: nomeadamente, nas suas relações laborais com os professores, os contratos celebrados assumem-se como atos de direito privado.
Dito isto, temos de concluir que a atividade exercida pelo recorrente, ainda que de interesse público, não se enquadra no âmbito das funções públicas, pelo que não lhe é aplicável o citado art. 78º do Estatuto da Aposentação, na redação do DL nº 137/2010.
Acresce que, como bem refere o recorrente, este Decreto-Lei – cf. art. 1º – destinou-se à aprovação de «um conjunto de medidas adicionais de redução da despesa pública com vista à consolidação orçamental prevista no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) para 2010-2013».
Assim, especificamente, ao alterar a redação do citado art. 78º e do art. 79º do Estatuto da Aposentação, visou, por um lado, manter o caráter excecional da autorização para acumulação pelos aposentados de funções públicas, e, por outro, eliminar a possibilidade de acumulação de vencimentos públicos com pensões do sistema público de aposentação.
Podemos, assim, concluir que, no caso em apreço, nada impedia a manutenção do contrato de trabalho do recorrente.
+++
Ultrapassada esta questão prévia, surge, então, a existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho pelo recorrente.
Recordemos que, por carta datada de 14.03.2011, recebida pela ré dois dias depois, o autor resolveu o vínculo que mantinha com a ré, com efeitos imediatos, invocando, para tanto, o não pagamento das remunerações desde setembro de 2010 e do subsídio de Natal do mesmo ano, assim como a cessação dos descontos para a segurança social e a não emissão de recibos de vencimento.
Assim, considerando a data da resolução do contrato de trabalho por iniciativa do A., é aplicável o Código do Trabalho de 2009 – de que serão todas os preceitos legais citandos, sempre que outra proveniência não seja indicada – que entrou em vigor no dia 17 de fevereiro de 2009 – cf. art. 14.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro –, nos termos do art. 7º, nº 1, deste diploma legal.
Vejamos.
O contrato de trabalho pode cessar, entre outras causas, por resolução com justa causa, por iniciativa do trabalhador – arts. 340º, alínea g), e 394º, nº 1.
O nº 1 do art. 394º estabelece que, ocorrendo justa causa, pode o trabalhador fazer cessar imediatamente o contrato, representando o nº 2 do mesmo artigo a enumeração exemplificativa das situações de justa causa, relevando, no interessante ao caso, a al. a) do nº 2: constitui justa causa a falta culposa de pagamento pontual da retribuição.
Por outro lado, o n.º 5 desse art. 394.º estabelece que se considera “culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por sessenta dias ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo”.
Assim com o CT/2009, quer o atraso no cumprimento do pagamento da retribuição seja inferior ou superior a 60 dias, a resolução do contrato pelo trabalhador é sempre feita ao abrigo do direito consagrado no seu art. 394º, com a única diferença de que, na primeira situação, o atraso se presume culposo, nos termos do art. 799º do CC, presunção essa ilídível e, no segundo caso, a lei, por via do nº 5 desse art. 394º, ficciona esse incumprimento como culposo, presunção esta inilidível.
Assim, e regressando ao caso em apreço, na data em que o autor/recorrente remeteu à recorrida a carta de resolução, encontrava-se em vigor o regime da resolução contratual previsto no art. 394º.
Neste contexto normativo, no caso dos autos, a falta culposa de pagamento da retribuição era suscetível de se reconduzir, em abstrato, ao fundamento para a resolução imediata do contrato de trabalho com justa causa, tal como esta vem enunciada no citado art. 394º, nº 2, alínea a), embora traduzindo duas situações factuais distintas:
- uma, abrangendo falta culposa de pagamento pontual de retribuição por período superior a 60 dias;
- outra, abrangendo falta culposa de pagamento pontual de retribuições por período inferior a 60 dias.
No caso concreto, a declaração extintiva consta do ponto 15 da matéria de facto supra transcrita.
Dela consta, assim também foi alegado na petição, a falta de pagamento das retribuições referentes aos meses de dezembro de 2009, janeiro e fevereiro de 2010 e subsídio de Natal de 2010.
Perante essa alegação, incumbia à Ré a prova do seu pagamento, nos termos do art. 342º, nº 2, do CC.
Ora, resulta da factualidade provada que o autor alegou e provou a falta do pagamento pontual da retribuição relativa aos meses de setembro, outubro, novembro, dezembro de 2010, subsídio de Natal de 2010, e janeiro e fevereiro, ambos, de 2011 – cf. pontos nºs 5 e 6 dos factos provados supra transcritos.
Logo, presume a lei que a falta de pagamento da retribuição dos meses de meses de setembro, outubro, novembro, dezembro de 2010 e subsídio de Natal de 2010, é, de forma inilidível, culposa porque superior a 60 dias.
Por fim, resulta, igualmente, da factualidade provada que, relativamente ao atraso no pagamento das retribuições de janeiro e fevereiro. ambos de 2011, inferiores a 60 dias, não alegou e não provou a ré/apelante, nos termos do nº 2, do artigo 342º, do CC, que a falta desse pagamento não proveio de culpa sua atenta a presunção de culpa constante do art. 799º, nº 1, do CC.
A Ré, na contestação, alegou que foi a conduta do A. – não fornecendo a documentação pretendida no sentido de provar que podia cumular o exercício de funções docentes com o regime de aposentado – que determinou o não pagamento das retribuições.
Ora, tal alegação, mesmo que correta, não era aceitável, não só porque o recorrente, durante vários meses, foi prestando o seu trabalho, sem receber a contraprestação pelo mesmo, como também, como supra se disse, mesmo depois da aposentação do recorrente, o contrato de trabalho em apreço mantinha-se válido.
Resulta, pois, que, mesmo, no tocante às retribuições em dívida – há menos de 60 dias –, o respetivo incumprimento é culposo, nos termos do art. 799º, nº 1, do CC, uma vez que a Ré não fez prova de que esse não pagamento não proveio de culpa sua.
Assim, sendo o comportamento da Ré subsumível ao art. 394º, nº 2, al. a), importa agora apreciar a questão da justa causa.
A justa causa deve ser apreciada nos termos do nº 3 do art. 351º, com as necessárias adaptações – nº 4 do art. 394º.
Ou seja:
Essencial à atribuição do direito à indemnização, nos termos expressos no art. 396º, nº 1, é que aquela falta culposa do empregador se revele de tal modo grave que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho que o contrato pressupõe – cf. citado art. 351º, nº 3.
Ora, no caso em apreço, os factos provados não permitem concluir que a conduta lesiva da recorrida, seja uma daquelas situações que, por anormais e especialmente graves, torna exigível ao trabalhador que não permaneça ligado ao empregador por mais tempo.
Com efeito, o Autor limitou-se a alegar a mera materialidade do não pagamento das retribuições que lhe eram devidas nos meses de setembro de 2010 até fevereiro de 2011, não tendo alegado nem provado os transtornos e as consequências que essa falta de pagamento estava a ter na sua vida pessoal e familiar, e as repercussões que a violação dessa obrigação contratual estava a ter no seu relacionamento com a Ré, o que obsta a que se conclua que o comportamento da Ré se configura de tal modo grave em si e nas consequências que tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Por outro lado, também temos de relevar o facto de o recorrente, desde agosto de 2010, se encontrar aposentado, auferindo uma pensão no valor de € 1.927,81.
Tal pensão, só por si, é garantia de uma existência condigna do recorrente, permitindo concluir que, atendendo ao valor modesto da retribuição mensal auferida, de € 339,58 – correspondente a um horário de apenas quatro horas de trabalho semanal – a falta desta, ainda que ilícita, não punha em causa os seus meios de subsistência, assim não assumindo especial gravidade.
Acresce que o litígio em apreço – como resulta da fundamentação da decisão de facto e dos factos provados, sob o ponto nº 22 – terá tido como motivo determinante a ausência de informação sobre a possibilidade de o autor continuar a lecionar na Ré em acumulação com a sua situação de aposentado, o que, não podendo justificar a conduta da Ré, diminui a gravidade dos factos praticados.
Não se vislumbrando, em consequência, justa causa de resolução, como, aliás, concluiu a 1ª instância, embora por diferentes fundamentos, não tem o A./recorrente direito à indemnização peticionada.
Improcedem, assim, as conclusões do recurso.
+++
4. Atento o exposto, e decidindo:
Acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida, ainda que por fundamentação não coincidente
Custas pelo recorrente.
+++
Porto, 05-11-2012
José Carlos Dinis Machado da Silva
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa
___________________
Sumário elaborado pelo relator:
I- A actividade desenvolvida pelas escolas privadas e cooperativas situa-se no âmbito do direito privado: o ensino nessas escolas não se traduz no exercício de uma actividade pública delegada, mas antes numa actividade privada concorrente com o ensino público, actuando tais escolas no sector privado e no exercício de actividades privadas, ainda que de interesse público.
II- Tendo um professor, após a sua aposentação, continuado a exercer as funções docentes, ao abrigo de um contrato de trabalho a tempo parcial – 4 horas lectivas semanais e uma retribuição mensal de € 339,58 – com uma cooperativa de ensino, essa atividade, ainda que de interesse público, não se enquadra no âmbito das funções públicas, pelo que não lhe é aplicável o citado art. 78º do Estatuto da Aposentação, na redação do DL nº 137/2010, de 28.12.
III- Não é de afirmar a existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho no seguinte quadro fáctico:
- Demonstrada a falta de pagamento das retribuições que lhe eram devidas, o trabalhador não alegou nem provou os transtornos e as consequências que essa falta de pagamento estava a ter na sua vida pessoal e familiar, e as repercussões que a violação dessa obrigação contratual teve no seu relacionamento com a empregadora;
- mais se apurando que o trabalhador, desde o início do ano lectivo, se encontrava aposentado, auferindo uma pensão no valor de € 1.927,81.

José Carlos Dinis Machado da Silva