Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4257/08.0TJVNF-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: INCIDENTE DE HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTE
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
VALIDADE DA TRANSMISSÃO
VALIDADE DA CESSÃO
Nº do Documento: RP201209104257/08.0TJVNF-B.P1
Data do Acordão: 09/10/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 376º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: No incidente de habilitação de adquirente ou cessionário, haja ou não oposição dos requeridos, compete ao juiz verificar da validade de transmissão ou cessão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 4257/08.0TJVNF-B.P1

5ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
Por apenso aos autos acção de processo ordinário em que figura como Autora B…, LDA. e como Réus C… e mulher, veio D… deduzir o presente incidente de habilitação de cessionário.
Para tanto, alegou, em suma, que outorgou com a referida Autora, aqui Requerida, em 10 de Agosto de 2009, um contrato de mútuo, pelo qual lhe emprestou a quantia de € 45.000,00.
Mais alegou que, em 19 de Agosto de 2009, celebrou novo contrato com a Requerida, desta vez de cessão de créditos, o qual também alterou o contrato de mútuo anteriormente celebrado.
E que, por este segundo contrato a Requerida B…, Lda., cedeu à aqui Requerente a indemnização que esta viesse a receber no âmbito dos autos de que os presentes são incidente, sendo que, essa cessão foi comunicada ao Requerido C… através de carta, registada, dirigida para a morada da sua residência.
Peticiona, assim, a Requerente a sua habilitação para prosseguir nos autos principais no lugar da Autora, uma vez que passou a ser interessada no procedimento e titular do crédito/indemnização que, eventualmente, venha a ser atribuído a B…, Lda.

A Requerente juntou documento particular denominado “Contrato de Mútuo” (fls. 7/8), documento particular denominado “Contrato de Cessão de Créditos” (fls. 9/10) e cópia de uma missiva da Requerente (fls. 11/12) que tem como destinatários o Requerido e sua mulher e o respectivo registo.

Notificados os Requeridos nos termos e para os efeitos previstos no artigo 376º do Código de Processo Civil, vieram estes deduzir oposição à habilitação requerida.
Alegam, para o efeito que, em rigor a pretendida cessão não o é de direito de crédito, um vez que ainda se discutem nos autos os fundamentos de uma eventual responsabilidade do Réu marido; as pessoas concretas da A. e RR não são indiferentes ao desenvolvimento e desfecho da acção, sendo que, a A. B… está pessoalmente vinculada a actos conexos com as questões que neste processo se discutem, é fiel depositária da quantia de 20.000,00€, de um veículo automóvel que está à sua guarda, e de bens móveis e imóveis cujo arresto foi efectuado a seu favor. E, tais actos e verbas não foram salvaguardados no alegado contrato de cessão.
Entendem, por isso, os Requeridos, enquanto Réus, ser-lhes desfavorável à sua defesa a pretendida alteração subjectiva da instância, representando a mesma um acréscimo de dificuldades à sua posição de RR., o que, dizem, ser o propósito da transmissão pretendida.

Em sede de saneador considerou o Tribunal a quo que o estado dos autos permitia uma decisão de mérito, tendo sido proferida sentença declarando não provada a cessão e, em consequência, julgado improcedente o pedido de habilitação.

Inconformada com tal decisão veio a Requerente recorrer concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
1- No incidente de habilitação de cessionário, os requeridos apenas podem na sua contestação questionar a validade formal ou material do acto da cessão em si mesmo e não a validade de todos e quaisquer negócios que possam estar na base dessa cessão, não sendo, por isso, razão para indeferir a habilitação a constatação – oficiosa - da nulidade de um contrato de mútuo que tenha precedido ao contrato de cessão de créditos litigiosos.
2- Dos argumentos apresentados pelos requeridos na sua contestação, apenas a alegação de que a cessão visa somente a dificultação da posição dos contestantes na causa principal é fundamento validamente aduzido, pelo que, a Mm.a Juiz do Tribunal a quo deveria apenas ter-se pronunciado acerca da improcedência ou não de tais argumentos e, em caso de procedência, julgar improcedente a habilitação ou, em caso de improcedência de tais argumentos, julgar procedente a habilitação.
3- Por cautela, caso se entenda que os requeridos podiam impugnar a cessão em si mesma – isto é, que ela tenha ocorrido -, e que o fizeram através da impugnação do documento que a titula, uma vez que a requerida apresentou, no prazo de 10 dias após a notificação daquela impugnação, requerimento indicando duas testemunhas para prova da genuinidade do documento, conforme o preceituado no n.º 2 do art.º 545.º do CPC, teria o Tribunal a quo de proceder à audição de tais testemunhas e só depois poderia proferir decisão.
4- A decisão em crise violou o disposto nos art.ºs 376.º, n.º 2 e 545.º, n.º 2 do CPC.
A final requer que seja revogada a decisão recorrenda, que seja substituída por outra que declare que o único fundamento validamente aduzido pelos requeridos na contestação do incidente de habilitação de cessionário é a circunstância de a cessão visar somente a dificultação da posição dos contestantes na causa principal, e, apreciando tal argumento, conclua pela sua não verificação e, consequentemente, julgue procedente a habilitação.
Caso se venha a entender que os requeridos podiam impugnar a cessão em si mesma – isto é, que ela tenha ocorrido -, e que o fizeram através da impugnação do documento que a titula, deve ser determinada a audição da testemunhas indicadas pela requerente e posteriormente ser proferida decisão.

Não foram apresentadas contra-alegações.
II
A factualidade a considerar resulta do Relatório supra, a que se adita por transcrição, a parte decisória mais relevante da decisão em recurso:
«(…)
De harmonia com o disposto no artigo 376º, do Código de Processo Civil:
(…)
A procedência deste incidente opera uma modificação subjectiva da instância, na medida em que um ou mais sujeitos que dela são titulares são substituídos por outros sujeitos, até então estranhos ou não à lide (cfr. artigo 270°, al. a), do Código de Processo Civil).
Da al. b) do aludido preceito se extrai que a contestação à habilitação de cessionário ou adquirente só pode ter como fundamentos a invalidade do acto e/ou que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil a posição do contestante no processo, sendo que aquela pode ter por base qualquer fundamento de nulidade ou anulabilidade da lei substantiva.
(…)
No caso sub judice o Requerido, como já se deixou relatado, impugna, desde logo a validade do acto de cessão e do negócio que lhe subjaz, mais alegando que a cessão obedeceu a um propósito malicioso, traduzido na intenção de tornar mais difícil a posição processual dos Réus no âmbito da acção principal.
Cumpre, por isso, em primeiro lugar aferir da validade da cessão e do negócio em que se funda a mesma.
A Requerente alega na sua petição que o contrato de cessão teve como precedente um contrato de mútuo que celebrou com a Requerida B…, Lda e pelo qual lhe emprestou € 45.000,00, contrato esse vertido no documento particular que junta a fls. 7-8 dos autos.
Ora, de acordo com o estatuído no artigo 1143º do CC o contrato de mútuo de valor superior a € 25.000,00 só é válido se for celebrado por escritura pública.
O que significa que, o contrato de mútuo em que a Requerente funda a cessão de crédito constitui um negócio nulo, por vício de forma.
Vício esse que é de conhecimento oficioso – cfr. art. 286º do CC.
Note-se que, pese embora a Requerente tenha, posteriormente, junto aos autos várias declarações de dívida a fls. 57 e ss., invocando que são, outrossim, essas declarações de dívida que estão na base da cessão de créditos, tal não corresponde à causa de pedir alegada inicialmente.
Todavia, afigura-se-nos claro por não poder haver lugar, no contexto do presente incidente à alteração da causa de pedir. Pelo que o tribunal não a admite, desconsiderando-se tal alegação da Requerente.
Ademais, no que se refere ao próprio acto de cessão, no caso dos autos, ele radica, igualmente, em documento particular que se mostra impugnado pelo Requerido.
Sobre os documentos particulares dispõe o artº 374º, nº 2 do CCivil que «Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.»
Conforme ensinam os Profs. Pires de Lima e A. Varela [Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 331] «...Ao contrário do que sucede com os documentos autênticos, os documentos particulares não provam por si sós, a genuinidade da sua (aparente) proveniência. ...», pelo que tendo a requerida/recorrente impugnado as assinaturas, e não só, apostas no documento em causa, como até a legitimidade e poderes de quem assina em representação da cedente, incumbia aos requerentes (do incidente de habilitação) provar a autoria do mesmo, em conformidade com o que alegavam [Cfr., neste sentido, J. Lebre de Freitas, A acção declarativa comum (à luz do código revisto), pág. 210].
Por conseguinte, uma vez que foi impugnado o documento particular que corporiza a cessão alegada nos autos, não poderá esse documento, de per se, constituir meio de prova suficiente à verificação da existência da transmissão ou cessão invocada e justificadora da requerida habilitação de cessionário ou adquirente.
(…)
Nestes termos, não tendo a Requerida oferecido outro meio de prova suficiente à demonstração da existência da transmissão ou cessão invocada, e sendo certo que toda a prova tem de ser indicada nos articulados – cfr. 303 do CC, cumpre julgar a habilitação improcedente».
III
Na consideração de que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, não podendo este tribunal conhecer das matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artº 684º nº 3 do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- se a nulidade do mútuo (por falta de forma) que precedeu a cessão é susceptível de ser invocada como fundamento de oposição, constituindo fundamento para indeferir a habilitação, e, em caso afirmativo, se deviam ter sido ouvidas as testemunhas indicadas pela requerente para prova da genuinidade do documento que titula o mútuo.
- se apenas constitui fundamento válido de oposição a alegada dificultação da posição dos contestantes na causa principal.

No incidente de habilitação de adquirente ou cessionário previsto no artigo 376 do Código de Processo Civil, independentemente de existir ou não oposição dos requeridos, compete ao juiz verificar da validade da transmissão ou cessão, apreciando se foi feita a prova legalmente exigida do acto fundante da cessão.
Os requerentes pretendem a sua habilitação, alegando, com base em documentação que juntaram, terem obtido a cessão do futuro e incerto crédito da Autora nos autos principais, como contrapartida de um contrato de mútuo que celebraram no valor de 45.000,00 euros.
Tal mútuo constitui assim o acto precedente da cessão e que a funda.
Porque o contrato de mútuo de valor superior a 25.000,00 euros só é válido se for celebrado por escritura pública, nos termos do artigo 1143º do Código Civil, entendeu o Tribunal a quo, e bem que, sendo nulo, por vício de forma, o contrato precedente da cessão, esta também o será.
Vício esse que é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 286º do CC.
É certo que, no decurso dos autos a Requerente veio juntar várias declarações de dívida em que aquele valor aparece fraccionado de modo a que qualquer deles, parcialmente considerado, não ultrapasse os 25.000,00, mas tais documentos são irrelevantes no caso, considerando o “contrato de mútuo” junto a fls. 7, com o Requerimento de habilitação (como devem ser apresentadas todas as provas) em que o valor de 45.000,00 aparece globalmente considerado.
Por sua vez o contrato de cessão de créditos junto a fls. 9 reporta-se ao crédito de 45.000,00 que a ora requerente possui na sequência do “mútuo” de 45.000,00.
Assim, a pronúncia do tribunal a quo sobre a validade do acto de cessão, não só assentou numa alegação legítima dos Requeridos, como podia ter sido oficiosa.
Por sua vez e, independentemente da extemporaneidade da apresentação da prova testemunhal, o vício de forma que afecta o “mútuo” e que por isso afecta a validade da transmissão do crédito nele previsto, não é suprível por prova testemunhal.
Assim, bem andou o Tribunal recorrido ao negar a produção de tal prova.
Finalmente, constitui fundamento válido de oposição a alegada invalidade do acto fundante da cessão, e não apenas e tão só a dificultação da posição dos contestantes na causa principal, sendo que, tais fundamentos de oposição, podem ambos ser invocados quando a habilitação se faz por requerimento de habilitação, conforme resulta do comando do nº 3 al. ii) do art. 376º CPC que prevê as menções a notificar aos requeridos deste incidente.
Por todo o exposto, não se reconhece qualquer êxito ao recurso.

Em suma:
- No incidente de habilitação de adquirente ou cessionário previsto no artigo 376º do CPC, independentemente de existir ou não oposição dos requeridos, compete ao juiz verificar da validade da transmissão ou cessão, apreciando se foi feita a prova legalmente exigida do acto fundante da cessão.
- Sendo nulo, por vício de forma, o contrato precedente da cessão (mútuo), esta também o será.
IV
Termos em que, acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 10 de Setembro de 2012
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
Rui António Correia Moura
José Eusébio dos Santos Soeiro de Almeida (c/ dispensa de vistos)