Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0816032
Nº Convencional: JTRP00041803
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RP200810290816032
Data do Acordão: 10/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 553 - FLS. 249.
Área Temática: .
Sumário: O facto de o arguido se encontrar na situação de prisão preventiva à ordem de um processo não impede que lhe seja aplicada essa medida de coacção num outro processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 6032/08-1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunto: Jorge França..

Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação do Porto.

I.- RELATÓRIO

1.- No Inquérito n.º ……/07.0JAPRT que corre os seus termos nos serviços do Ministério Público de Espinho, em que são:

Recorrentes/arguidos: B………….. e C…………….

Recorrido: Ministério Público.

por despacho de 2008/Jul./10, a fls. 170-188, foi decretada a prisão preventiva dos referidos arguidos.
2.- Os arguidos insurgiram-se contra esta decisão, tendo interposto recurso da mesma em 2008/Jul./24 e 31, constantes, respectivamente, a fls. 3–10 e 11-21 deste apenso, podendo-se condensar ambas as motivações nas seguintes conclusões:
1.ª) Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença;
2.ª) A medida coactiva de prisão preventiva tem sempre carácter subsidiário, só excepcionalmente devendo ser aplicada;
3.ª) As medidas de coacção estão sujeitas aos princípios da adequação, proporcionalidade e subsidiariedade, consagradas no art. 193.º, n.º 1 do Código Processo Penal;
4.ª) Nenhuma medida de coação pode ser aplicada se não se existirem, em concreto e no momento da sua aplicação, os requisitos gerais enunciados no art. 204.º, do Código Processo Penal, o que implica um juízo de prognose actual acerca dessa verificação;
5.ª) No momento actual, não se verificam nenhum desses requisitos de forma a ser decretada a prisão preventiva aos arguidos recorrentes, surgindo estas como injustas e ilegais, visando antes a sua punição antecipada;
6.ª) Ambos os recorrentes encontram-se detidos preventivamente à ordem do processo n.º ……/07.6PAESP, que corre os seus termos no Tribunal de Espinho, pelo que inexiste, de momento, perigo de fuga, perigo de perturbação da ordem pública ou de continuação da actividade criminosa;
7.ª) Apenas uma vez colocado em liberdade é que se poderá proceder a uma apreciação actual e concreta acerca da situação dos recorrentes;
8.ª) Ao decretar-se a prisão preventiva ficcionou-se o preenchimento dos pressupostos previstos no citado art. 204.º;
9.ª) O recorrente B………… vive com uma companheira há mais de 4 anos, exercia funções profissionais antes de ser detido, tem uma vida estabilizada, estando inserido social, profissional e familiarmente;
10.ª) O facto do mesmo ser estrangeiro, só por si, não significa que exista perigo de fuga, não podendo ser retirado, sem mais, dos seus antecedentes criminais que existe perigo de continuação da actividade criminosa;
11.ª) A decretar-se uma medida de coacção e a entender-se que existem os perigos invocados na decisão recorrida, seria suficiente decretar-se a medida de apresentação periódica ou, numa situação limite, a obrigação de permanência na habitação, mediante utilização de pulseira electrónica;
12.ª) O tribunal recorrido não indica, em relação ao arguido C…………, nenhum facto concreto donde se extraia (para futuro) do concreto perigo de fuga, do perigo de perturbação grave da ordem pública ou da continuação da actividade criminosa;
13.ª) A medida de prisão preventiva decretada ao arguido C………… sempre poderia ser substituída pela obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, como transparece dos Relatórios elaborados e juntos pelos IRS ao processo n.º ……/076PAESP, do 2.º Juízo do Tribunal de Espinho.
14.ª) O tribunal recorrido, segundo o recorrente B……….., violou, deste modo, o disposto nos art. 201.º, n.º 1 e 2, al. b), com referência ao art. 204.º, al. e) e n.º 2, al. e) e f), 158.º, n.º 1 e 2, al. e), do Código Penal, art. 141.º, 191.º, 192.º, 193.º, 196.º, 198.º, 200.º, 201.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, do Código Processo Penal, art. 16.º, 18.º, 27.º, 28.º e 32.º, da C. Rep.
15.ª) O tribunal recorrido, segundo o recorrente C…………., violou, deste modo, os art. 97.º, n.º 5, 191.º, 193.º, 202, n.º 1, al. a) e 204.º, do Código Processo Penal, assim como os art. 16.º, n.º 1, 2, 18.º, n.º1, 2, 3, 28.º, n.º 2, 29.º, n.º 4, 30.º, n.º 1, 32.º, n.º 2, 204.º, 205.º, da C. Rep. 204.º, com referência ao art. 204.º, al. e) e n.º 2, al. e)
3.- O Ministério Público respondeu a ambos os recurso em 2008/Set./22, a fls. 23-31, no sentido da manutenção da prisão preventiva decretada aos arguidos recorrentes.
4.- Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer em 2008/Out./01, pugnando pela improcedência dos recursos.
5.- Os recorrentes responderam a este parecer, mantendo o seu posicionamento inicial.
6.- Colheram-se os vistos legais, nada obstando que se conheça do mérito deste recurso.
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As questões a resolver confina-se em saber se verificam-se os pressupostos para ser decretada a prisão preventiva aos arguidos aqui recorrentes, mormente quando estes já se encontram nessa situação mas à ordem de outro processo.
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II.- FUNDAMENTOS.
1.- A decisão recorrida.
Na parte que aqui releva transcrevem-se os seguintes trechos:
“Indiciam os presentes autos e respectivos apensos, a prática por 2 e/ou 3 indivíduos de factos subsumíveis nos tipos de crime de, além do mais, roubo agravado, p. e p., pelo art. 201°, n.º 1 e 2, al. b) com referência ao art. 204.º, al. e) e n.º 2, al. e) e f), bem como, de sequestro agravado, p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e n.º 2, al. e) do C. Penal, Conforme fls 21 e sgs. do apenso 3, fls. 49 e sgs do apenso 1, entre os demais apensos e fls. 3 e sgs dos presentes autos de inquérito.
Na sequência da notícia do crime participada nos presentes autos de inquérito, em que era referenciado, além do mais, o furto de dinheiro e jóias, foram ordenadas buscas a efectuar em diversos estabelecimentos comerciais de ourivesarias desta cidade na tentativa de ali puderem ter sido transaccionados pelos autores dos roubos, os referidos objectos, como resultado destas buscas e porque efectivamente procederam à venda de objectos em ouro em diversas ourivesarias desta cidade sem que tenham justificado a sua lícita proveniência, vieram a ser interrogados e constituídos na qualidade de arguidos, os aqui arguidos C………….. e B……………, que se encontram presos à ordem dos autos de processo comum colectivo n.º ……./07.6PAESP que corre termos no ….° juízo deste Tribunal.
Nesses autos, foram efectuadas buscas à residência de C…………., na qual foram encontrados diversos objectos em ouro e outros objectos, conforme certidão de fls. 175 e segs.
Alguns deste objectos vieram a ser reconhecidos como próprios por algumas das pessoas sujeitas aos supra mencionados crimes de roubo agravado e sequestro. Ademais, e conforme auto de reconhecimento efectuado a 07107/2008, uma das queixosas reconheceu um dos arguidos.
Estamos pois em crer que os autos contêm indícios de que os indivíduos inicialmente desconhecidos são os aqui arguidos.
Os arguidos estão desempregados e quando foram detidos pela 1.ª vez estavam em Portugal há cerca de 4 meses. Não tinham patrão certo, tendo sido detidos na sequência de notícia que estariam a assaltar uma residência, na qual permanecia ainda um dos indivíduos, conforme certidão extraída dos referidos autos de processo comum colectivo ……../07.6PAESP.
Os arguidos não têm nacionalidade portuguesa e manifestam dificuldades em compreender e falar a língua portuguesa, razão pela qual foi nomeada intérprete. É certo que têm uma companheira, sendo que se desconhece se estas têm com o país algum laço que as prenda cá, designadamente laboral, familiar, ou se, pelo contrário tal como os arguidos estão a aqui ocasional e temporariamente.
Quanto aos arguidos parece-nos que nada os prende ao nosso país.
Os arguidos já foram condenados por, pelos menos uma vez, a prática de crime de furto. É certo que se encontram sujeitos à medida de prisão preventiva no âmbito do processo comum colectivo …../07.6PAESP. As medidas de coação destinam-se a garantir as necessidades cautelares descritas no art. 204.º, do C. P. Penal que em cada caso se fizerem sentir. Isto mesmo decorre do exposto no art. 214.º, n.º 1, al. a) e demais alíneas da referida norma. Pelas razões expostas, falta de emprego, falta de relações pessoais, culturais e laborais dos arguidos com o nosso país e pelos indícios elevados de que os arguidos faziam do roubo agravado e do sequestro modo de vida, é nosso entendimento verificar-se em concreto perigo de fuga, de perturbação da ordem pública e de continuação da actividade criminosa. Assim, entendemos que nenhuma das outras medidas se mostra adequadamente suficiente e proporcional à defesa dos perigos ora enunciados, pelo que, ao abrigo do disposto nos art. 191°, 192°, 193°, 196°, 2040 e 202°, do C. P. Penal, determino que os arguidos aguardem os ulteriores termos dos presentes autos sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, para além do TIR já prestado.”
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2.- Os fundamentos do recurso.
a) A natureza cautelar e subsidiária da prisão preventiva.
O direito à liberdade é um dos direitos fundamentais de qualquer cidadão, estando constitucionalmente consagrado no art. 27.º, n.º 1 da C. Rep., logo se aditando no seu n.º 2 que “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”.
A par desta injunção constitucional existe o direito à segurança, por parte de qualquer cidadão, tendo aqui um particular enfoque aqueles que são vítimas de uma conduta criminosa.
Este dispositivo constitucional e todos os preceitos legais respeitantes às medidas de coacção, devem, segundo o preceituado no art. 16.º, n.º 2 da mesma Constituição, “ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”.
Ora segundo o art. 5.º da DEDH, o qual precisou o art. 9.º da DUDH[1], “Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança. Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal: Se for preso e detido …, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se por em fuga depois de a ter cometido” [al. c)]
Por sua vez, no Pacto Internacional de Direitos Cívicos e Políticos de 1966/Dez./16, mais concretamente do seu art. 9.º, n.º 3, alude-se precisamente que “Não deve ser em regra obrigatória a detenção de pessoas que aguardam julgamento…”.
Dando seguimento a estes princípios o art. 191.º, n.º 1, do Código Processo Penal[2], estabelece que “A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.
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Estas injunções têm no entanto excepções, as quais estão contempladas no art. 27.º, da C. Rep., sendo uma delas a decorrente da sua al. b) e que advirá da “Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”.
Porém, todas as medidas de coacção estão sujeitas ao princípio da legalidade e às condições gerais da sua aplicação, indicadas no art. 192.º, só sendo susceptíveis de ser decretadas, no dizer do art. 193, n.º 1 quando forem “necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”.
A referida excepcionalidade das medidas cautelares, surge reforçada quando as mesmas são privativas da liberdade, como resulta do n.º 2 deste artigo 193.º, ao preceituar que “A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção”.
Aliás, no confronto entre ambas, dever-se-á dar precedência à segunda por ser menos gravosa, mas desde que a mesma não se mostre inadequada aos fins cautelares processuais, pois segundo o seu n.º 3 “Quando couber ao caso medida privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que esta se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares”.
Por sua vez e segundo o art. 202.º, n.º 1 só “Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos”.
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Este normativo terá que conjugar-se com o disposto no art. 32.º, n.º 2 da C. Rep., que consagra o princípio da presunção de inocência, ao mencionar que “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
Esta injunção constitucional da presunção da inocência em relação à pessoa suspeita ou perseguida criminalmente, assenta num pressuposto estruturante das sociedades democráticas, que é o respeito pela dignidade da pessoa humana, o qual passou a moldar de modo inexorável todo o processo penal.
Relativamente à extrapolação do sentido vinculador do citado normativo, cuja incidência é exclusivamente jurídico-penal, tem-se entendido que o mesmo não deve ser interpretado de modo puramente literal, como muitas vezes tem sido efectuado.
A adoptar-se essa literalidade, nunca seria possível efectuar-se qualquer juízo indiciador ou de culpabilidade da prática de um crime e muito menos decretar-se uma medida de coacção – neste sentido Castro e Sousa, “Os Meios de Coacção no Novo Código Processo Penal”, em jornadas de Direito Processual Penal (1997), p. 149/150; Tomas Vives Antón, “El processo penal de la presuncion de inocencia”, em Jornadas de Direito Processual e Direitos Fundamentais (2004), p. 27 e ss.
Aliás, tal argumento literal esbarraria com outras disposições constitucionais, tais como o art. 28.º, n.º 2, que admite a prisão preventiva, ainda que com carácter excepcional, e o art. 18.º, n.º 2, que permite a restrição dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos nos casos expressamente previstos na Constituição, mas sempre mediante um “princípio de intervenção mínima”.
Por sua vez, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), tem vindo a entender, como sucede com o acórdão de 2000/Abr./06, no caso Labita c. Itália, que “A prisão preventiva só se justifica se se verificarem indícios concretos que revelem um interesse público premente, digno de se sobrepor ao princípio do respeito da liberdade individual, sem prejuízo da presunção de inocência”.
Mais se acrescentou que “Essa exigência de interesse público é, por isso, fundamento essencial das decisões que indefiram os pedidos de libertação imediata dos detidos, e é com base nessa motivação das decisões judiciais, bem como nos factos não controvertidos apresentados pelo requerente, que o TEDH deve determinar se houve ou não violação do art. 5º, § 3 da Convenção”.
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b) Os requisitos gerais do art. 204.º
O decretamento de qualquer medida de coacção, com excepção do TIR, está sujeito aos requisitos enunciados no art. 204.º, os quais devem-se verificar em concreto, não sendo os mesmos cumulativos, pela que basta a ocorrência de um deles para justificar a restrição cautelar das liberdades fundamentais de um cidadão.
Deste modo e para além de se atender, como já referimos, que a prisão preventiva é de natureza excepcional, só devendo ser aplicada quando a mesma for inevitável, por existir “periculum libertatis” revelado pelo arguido, devemos igualmente ponderar e aferir da existência destes últimos pressupostos vinculativos.
Os recorrentes esgrimem essencialmente com o argumento, que de resto tem suporte nesta Relação, como sucede com o Ac. de 2006/Abr./19 [CJ II/206], de que “A prisão preventiva do arguido só pode ser imposta se os pressupostos de que depende se verificarem no momento em que é decretada”, pelo que “Não pode, por isso, decretar-se para data futura a prisão preventiva de um arguido que se encontra preso preventivamente à ordem de outro processo” – em sentido divergente encontramos os Ac. também desta Relação de 2005/Fev./23 e 2006/Mar./08, ambos divulgados em www.dgsi.pt.
Naturalmente que estes pressupostos têm de se verificar no momento em que se decreta a correspondente medida de coacção, mas o facto de alguém se encontrar em prisão preventiva num outro processo, não constitui nenhum óbice para que não se decrete essa mesma medida de coacção num processo distinto.
E isto porque a generalidade das situações que integram os requisitos gerais de aplicação de uma medida de coacção assentam quase sempre num juízo de prognose de perigosidade, só havendo um que representa um juízo contemporâneo de perigosidade.
Assim naquele juízo para o futuro temos o risco de fuga, a ameaça de perturbação do inquérito ou da instrução do processo, o prenúncio de continuação da actividade criminosa ou então de perturbação grave da ordem e da tranquilidade pública, enquanto no juízo actual temos apenas a fuga efectiva.
Aliás e estando sujeito o decretamento de uma medida de coacção ao princípio do “rebus sic stantibus” decorrente dos art. 212.º e 213.º, não faria sentido restringir-se a um processo apenas a possibilidade de prestar-se Termo de Identidade e Residência, quando aquela outra medida poderia a qualquer momento ser revogada, alterada ou mesmo extinta.
Mais acresce que qualquer medida de coacção decretada num processo tem sempre plena autonomia de subsistência cautelar em relação a um outro processo, muito embora actualmente exista a possibilidade de desconto contemplada no art. 80.º, do Código Penal.
Por último, diremos que é o próprio Código Processo Penal, através do seu art. 217.º, n.º 1, que contempla a possibilidade de decretar-se a prisão preventiva de um arguido preso preventivamente à ordem de outro processo.
Aí se estabelece o comando de que “O arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo” – sendo nosso o negrito.
Ora quando se alude a prisão noutro processo é naturalmente à prisão preventiva, porquanto se o arguido estivesse condenado ao cumprimento de uma pena de prisão, era esta que teria primazia de execução.
Nesta conformidade desatende-se a estes fundamentos de recurso invocados por ambos os recorrentes, passando-se a apreciar os demais, que reconduzem-se aos segmentos normativos das al. a) e c) do art. 204.º.
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A al. a) do art. 204.º reporta-se à existência de “Fuga ou perigo de fuga”, circunstâncias essa que se devem verificar em concreto, como decorre do proémio deste preceito.
Este pressuposto tem por base o risco do arguido se subtrair ao exercício da acção penal, mediante a existência de certas circunstâncias, que, de modo consistente, possam favorecer a fuga ou potenciar a mesma.
Assim e tentando densificar estes conceitos, podemos certamente apontar que os mesmos ocorrem, sempre que existam factos ou circunstâncias, que não sejam meramente conjecturais, donde se conclua que o arguido se encontra em fuga ou mediante os quais seja razoável temer que o mesmo pretende proceder desse modo.
Porém, a moldura penal do crime indiciado, só por si, não pode ser um factor a partir do qual se possa presumir esse perigo de fuga, porquanto a lei não estabelece essa presunção – neste sentido o Ac. R. Porto de 2006/Mar./22[3], citando o Acórdão do TEDH de 1997/Mar./17, respeitante ao caso “Muller/França”, segundo o qual o risco de fuga não pode decorrer apenas da gravidade da pena legalmente prevista.
A fuga terá sempre que ser sempre actual, enquanto o perigo de fuga deverá ser fortemente expectável.
Existirá esse perigo, sempre que subsistam elementos objectivos, donde se possa aferir que o arguido em liberdade se ausentará para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à acção penal.
Para o efeito não é necessário que esse temor seja particularmente intenso, bastando apenas que subsista uma razoável probabilidade de que essa fuga venha a ocorrer – neste sentido veja-se Luigi Tramontano, “Il Códice di Procedura Penal – Spegiato” (2006), p. 533, em comentário ao art. 274.º do Código Processo Penal Italiano.
Na ponderação desses elementos objectivos, poderá atender-se, entre outras coisas, às possibilidades que o arguido tem de se movimentar para o estrangeiro ou de aí manter uma actividade económica, já iniciada ou que possa vir a estabelecer, para, desse modo, se eximir à execução da reacção penal prevista para o crime indiciado, que sempre funcionaria como um catalizador dessa sua fuga.
No caso, temos que os arguidos são de nacionalidade romena, estando em Portugal há apenas 4 meses ao momento da sua detenção, não tendo qualquer tipo de actividade, seja ela profissional ou qualquer outra que seja lícita, que os ligue ao nosso país, sendo, por demais, fortemente expectável que em liberdade venham daqui a fugir.
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A al. c) do art. 204.º, reporta-se ao “Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas”.
Esta condição, que deve igualmente ser concretizada, tem em vista a salvaguarda futura da paz social, que foi afectada com a conduta criminosa revelada pelo arguido e que tem potencialidades, objectivas (natureza e circunstâncias) ou subjectivas (personalidade), para continuar a alarmar ou mesmo para manter essa actividade delituosa.
Para o efeito torna-se necessário efectuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada actividade delituosa.
Diga-se que tal juízo de perigosidade social deverá estar sempre conexionado com a existência dessa conduta ilícita e não com quaisquer preocupações genéricas de defesa social, que sejam jurídico-penalmente neutras.
Nem tão pouco deverá ter com meras situações de “alarme social”, despidas de qualquer ilicitude, de que foi exemplo, na Alemanha Nazi, o “Erregung in der of fentlichkeit”, mediante o qual se permitia a prisão de uma pessoa pelo simples facto da sua conduta causar alarme, agitação ou intranquilidade – veja-se o Ac. do TC de 2003//Jul./30 (Recurso n.º 485/03), divulgado em www.tribunalconstitucional.pt; João Castro e Sousa, citando Roxin, no seu estudo sobre “Os meios de coacção no novo Código Processo Penal”, integrado nas “Jornadas de Direito Processual Penal” (1997), p. 152.
Por outro lado, este pressuposto da perturbação grave da ordem e tranquilidades públicas, ainda que despido do “cunho estritamente objectivo” que decorria da anterior redacção deste segmento normativo, deve ser insuflado ou estar relacionado com o direito à liberdade e à segurança, instituído pelo art. 5.º, da C.E.DH..
E isto não apenas na perspectiva do arguido, mas também dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da conduta criminosa praticada por aquele e que se encontra indiciada – esta dupla interpretação é proposta por Jean François Renucci, no seu “Traité de Droit Européen des Droits de L’Homme” (2007), p. 297, dando conta que se tem insistido bastante no direito à liberdade e negligenciado o direito à segurança, mormente na sequência das disfunções do sistema de justiça em relação às vítimas das condutas delituosas.
Daí que este pressuposto se revele na função preventiva do processo penal face à perigosidade social revelada pelo arguido, seja mediante um controlo cautelar e pré-punitivo (medidas de coacção), seja de contenção do conflito social provocado pela correspondente conduta delituosa.
No caso em apreço, temos que os arguidos já têm antecedentes criminais pela prática de crime contra o património, não desempenham qualquer actividade profissional, fazendo da prática de roubos, muitas vezes associado a sequestros, o seu principal factor de sustentação económica, pelo que também este requisito geral se verifica.
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No demais, não encontramos qualquer outra medida de coacção, para além da prisão preventiva, que se ajuste de modo adequado e necessário às presentes exigências cautelares que este caso exige, e seja proporcional à gravidade dos crimes de roubo agravado e de sequestro que se encontram fortemente indiciados.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento aos presentes recursos interpostos pelos arguidos B…………… e C……………. e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida que decretou a sua prisão preventiva.

Custas por cada um dos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em seis (6) Ucs para cada um deles – cfr. art. 513.º, 514.º do C. P. Penal

Notifique.

Porto, 29 de Outubro de 2008
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira
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[1] “Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”
[2] Doravante é deste diploma os artigos a que se fizer referência, sem indicação expressa da sua origem.
[3] Relatado pelo Des. António Gama e divulgado em www.dgsi.pt