Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
124/11.9TBALJ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
VISTORIA AD PERPETUAM REI MEMORIAM
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP20131203124/11.9TBALJ.P1
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Ao processo de expropriação, como processo especial, embora sem norma genérica de remissão para aquele código, são aplicáveis, subsidiariamente, as normas do CPC, face ao disposto no artº 463º nº 1 do mesmo diploma legal.
II – São assim aplicáveis à impugnação da matéria de facto no processo de expropriação, os artºs 685º-B e 712º do CPC.
III – No que se refere à prova pericial decorrente da “vistoria ad perpetuam rei memoriam”, só com especial segurança, fundada em inequívocos elementos de prova, se deve alterar a matéria de facto baseada na mesma vistoria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 124/11.9TBALJ.P1 – Apelação 1ª
Tribunal Judicial de Alijó
Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: Desembargador José Igreja Matos
2º Adjunto: Desembargador João Diogo Rodrigues
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
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Nos presentes autos de expropriação em que é expropriante C…, ACE e expropriados C…, D…, E… e F…, vieram os expropriados recorrer da decisão arbitral de fls. 86 e ss, alegando, em suma, discordar da área expropriada que é maior do que a constante da DUP.
Mais sustentam discordar dos critérios de avaliação utilizados para a avaliação. Concretamente, defendem que a área de vinha expropriada se encontrava na região demarcada do douro, não tendo esse facto sido tomado em consideração. Mais defendem que o valor atribuído ao solo é inferior ao real.
Por outro lado, defendem que não foram tidas em consideração as benfeitorias existentes no terreno, em concreto, diversas árvores de fruto e muro de vedação.
Defendem ainda que o valor a atribuir à parcela em questão é de € 45.911,50 (quarenta e cinco mil, novecentos e onze euros e cinquenta cêntimos).
A entidade expropriante respondeu ao recurso, sustendo, em suma, que o expropriado não pode querer fazer da sua parcela aquilo que ela não é.
Procedeu-se à realização de uma perícia.
Foi ouvida prova testemunhal.
A entidade expropriante alegou.
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Foi proferida Decisão a julgar totalmente improcedente o recurso dos expropriados e, em consequência, a condenar a expropriante a pagar àqueles a quantia de €18.191,20 (dezoito mil, cento e noventa e um euros e vinte cêntimos) a actualizar desde Junho de 2010 até à data da decisão de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor.
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Não se conformando com a decisão proferida vieram os expropriados interpor recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:
1ª A Douta Sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Alijó deve ser substituída pelo valor formulado nos autos pelo Perito dos Expropriados de 45.911,50 €;
2ª Discordam os recorrentes da decisão da matéria de facto dada como provada na douta Sentença, nomeadamente nos seus artigos 3 e 8.
3ª No que concerne àqueles factos a douta Sentença toma em consideração a Vistoria «ad perpetuam rei memoriam».
4ª Contudo, apesar de não constar dos autos, a dita Vistoria «ad perpetuam rei memoriam», foi objecto de Reclamação por dela discordarem quanto ao seu conteúdo os expropriados.
5ª Não foi considerada a Reclamação apresentada pelos expropriados ao senhor Perito que elaborou o Auto de Vistoria «ad perpetuam rei memoriam» e que a Entidade Expropriante referiu que ia juntar aos autos.
6ª A área a considerar da parcela expropriada só pode ser aquela que consta do Laudo do Perito dos expropriados que é de 3.210m2 e não 2.817m2.
7ª A indemnização sentenciada não é justa pelo que ficou muito aquém da reposição da Justa Indemnização, pelo que os expropriados não poderão comprar uma propriedade igual ou idêntica à expropriada;
8ª Os valores indicados pelos Peritos do Tribunal e o da Parte dos Expropriados, apenas diferem no número das benfeitorias consideradas e área expropriada;
9ª Não foram tidos em consideração, nem calculados na Douta Sentença os bens existentes na propriedade, à face da DUP.
10ª Só a consideração de todos os bens existentes, a área prevista na certidão predial devidamente explícitos no Laudo de Perícia da parte dos expropriados, cujo valor é de 45.911,50 € (quarenta e cinco mil novecentos e onze euros e cinquenta cêntimos).
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Cumpre decidir sendo certo que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões dos recorrentes, acima transcritas, no qual se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso.
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Nessa linha de orientação, as questões a decidir, suscitadas pelos recorrentes, são:
- A de saber se a matéria de facto deve ser alterada;
- Se não foi tida em consideração na sentença recorrida, a área correcta da parcela expropriada e os bens nela existentes, à face da DUP.
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Factos provados na decisão recorrida:
1. Por despacho do Senhor Secretário de Estado Adjunto, das Obras Públicas e das Comunicações, datado de 8 de Junho de 2010 e publicado no DR, 2ª Série, nº 119, de 22 de Junho de 2010, foi declarada a expropriação de uma parcela de terreno - parcela 492, com a área de 2.817m2, a destacar do prédio rústico sito em …, Freguesia …, a confrontar a norte com Estrada Municipal, a sul com G…, a nascente com H…, e a poente com G…, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3502º e descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº 00571/260193-G1, a qual se destina à execução da obra Subconcessão ….
2. A referida parcela de terreno constitui parte de um prédio rústico (inscrito na matriz com o referido artigo 3502º-R).
3. A parcela compunha-se, à data da vistoria ad perpetuam rei memoriam, de terreno de cultivo, ligeiramente acidentado, disposto em suaves socalcos, com boa exposição solar, de forma quase rectangular, com frente para a estrada municipal, com a qual confronta na extensão aproximada de 50 metros.
4. Ainda à data da vistoria o solo apresentava-se como de boa aptidão agrícola e encontrava-se bem tratado com vinha e olival.
5. Os prédios adjacentes apresentavam-se da mesma natureza e características.
6. O prédio de que faz parte a parcela expropriada dispõe de acesso rodoviário directo à estrada municipal com a qual confronta.
7. A estrada municipal tem uma faixa de rodagem de 6 m de largura e dispõe de pavimento betuminoso, com bermas e valetas em terra. Na zona do prédio descrito não existem quaisquer infra-estruturas.
8. Lá existia ainda, à data da vistoria ad perpetuam rei memoriam, uma figueira de grande porte; 15 oliveiras de porte médio; vinhas em bardo simples, numa extensão de 50 metros; um tanque de armazenamento de água com a área de 4 m2; um muro de vedação em pedra seca de granito com a área de 30m2; um anexo agrícola, com paredes de pedra e cobertura em telha com a área de 16m2.
9. No âmbito do PDM, o terreno da parcela classifica-se em “Espaços Agro-Florestais”.
2. Factos Não Provados
10. A parcela em causa dispõe de uma área de 3.210m2.
11. Além das oliveiras referidas em 7 existiam mais 24 oliveiras de porte médio e 3 oliveiras de porte grande.
12. Além das árvores de fruto referidas em 7 existiam ainda na parcela expropriada quatro árvores de fruto diversas, bem como um poço de pedra com a área de 3m x 5m.
13. O muro referido em 7 tinha uma área de 171m2.
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Da Impugnação da matéria de facto:
Discordam os recorrentes da decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente dos artigos 3º e 8º da matéria dada como provada.
Dizem que no que concerne àqueles factos a sentença tomou em consideração a Vistoria «ad perpetuam rei memoriam», a qual, apesar de não constar dos autos, foi objecto de reclamação por parte dos expropriados, por dela discordarem quanto ao seu conteúdo (conforme documentos nº1, 2, 3 e 4 que se juntam).
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Sobre a admissibilidade da impugnação da matéria de facto, tem sido pacífico o entendimento de que é aplicável ao processo de expropriação o disposto no artº 712º do CPC (ainda aplicável ao caso dos autos), assim como todas as normas do CPC, aplicáveis subsidiariamente.
Efectivamente, nos termos do artº 58º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro – aplicável ao caso dos autos -, no requerimento de interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente deve expor logo as razões da discordância, oferecer todos os documentos, requerer as demais provas (…), requerer a intervenção do tribunal colectivo, designar o seu perito e dar cumprimento ao disposto no artº 577º do CPC.”
Prevê, assim, este artº o conteúdo do requerimento de interposição do recurso do acórdão arbitral.
Embora o início da fase processual relativa à expropriação litigiosa comece logo após a constatação da inexistência de acordo quanto à fixação da pertinente indemnização, na sequência da notificação desse facto ao expropriado e demais interessados, nos termos do nº 3 do artº 35º do CE, a fase judicial propriamente dita, apenas começa com o recurso da decisão arbitral.
Ora, esta fase processual assume a estrutura de um processo especial não previsto no Código de Processo Civil, cuja particularidade consiste em a dinâmica do recurso do acórdão do tribunal arbitral funcionar, de algum modo, em termos similares a uma petição inicial de uma acção.
Assim, o objecto do recurso, misto de impugnação e de acção, é a invocação de factos e o correspondente direito que consubstanciam a discordância do recorrente relativamente ao conteúdo do acórdão arbitral com o qual se abre a fase jurisdicional do processo de expropriação.
Como corolário da estrutura mista deste recurso deve o recorrente juntar os documentos probatórios de que disponha e requerer as demais provas a produzir. Não tem, porém, de requerer a prova pericial, porque, nos termos do nº2 do artº 61º do Código ela é obrigatória.
O objecto deste processo especial é, assim, a fixação da indemnização devida aos expropriados e aos demais interessados, sendo certo que este código não regula directamente a respectiva dinâmica processual global, embora contenha várias normas que remetem, a propósito, para o CPC.
Por isso, embora se trate de um processo especial regulado por um específico Código (o Código das Expropriações), sem norma genérica de remissão para o CPC, face ao disposto no artº 463º nº 1 daquele Código, deve considerar-se a sua aplicação subsidiária (Salvador da Costa, Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, 2010, Almedina, pag. 264).
Partindo destes pressupostos de carácter geral, que prevêem a aplicação subsidiária das normas do Código de Processo Civil ao processo de expropriação, apreciaremos, então, o recurso interposto pelos recorrentes.
E começando pela impugnação da matéria de facto, é de referir, desde logo, que lhes assiste o direito de impugnarem a matéria de facto, já que deram cumprimento ao disposto no art.º 685º-B, nº 1, als a) e b) do C.P.C., encontrando-se também nos autos todos os documentos a apreciar, pelo que está este tribunal em condições de reapreciar a prova produzida na 1ª Instância (artº 712º nº1, alínea a) do CPC).
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Os factos – dados como provados – com os quais os recorrentes não concordam são os seguintes:
3. A parcela compunha-se, à data da vistoria ad perpetuam rei memoriam, de terreno de cultivo, ligeiramente acidentado, disposto em suaves socalcos, com boa exposição solar, de forma quase rectangular, com frente para a estrada municipal, com a qual confronta na extensão aproximada de 50 metros.
8. Lá existia ainda, à data da vistoria ad perpetuam rei memoriam, uma figueira de grande porte; 15 oliveiras de porte médio; vinhas em bardo simples, numa extensão de 50 metros; um tanque de armazenamento de água com a área de 4 m2; um muro de vedação em pedra seca de granito com a área de 30m2; um anexo agrícola, com paredes de pedra e cobertura em telha com a área de 16m2.
É de referir antes de mais que analisadas as conclusões das alegações dos recorrentes (e o corpo das próprias alegações), das mesmas resulta que os recorrentes discordam apenas do facto vertido no ponto 8 (relativamente a algumas das benfeitorias ali consideradas), nenhum reparo fazendo ao ponto 3 da matéria de facto.
E sobre essa questão dizem que não foram considerados na sentença todos os bens existentes na propriedade, como foram consideradas no laudo subscrito pelo perito por si nomeado, e como constam também da reclamação apresentada ao senhor perito que elaborou a Vistoria «ad perpetuam rei memoriam», mas que a entidade expropriante ignorou.
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Efectivamente, consta da decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada que “A convicção do Tribunal assenta na apreciação dos documentos juntos analisados e valorados de acordo com as regras do ónus da prova e das regras de direito material aplicáveis.
Assim, considerou-se, desde logo, o teor da Declaração de Utilidade Pública, junta a fls. 8 e 9 e seguintes, e considerou-se ainda, com especial importância, o teor do auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam, que relata precisamente a descrição do prédio que se verteu nos factos provados, junto a fls. 33 e seguintes”.
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É contra a consideração tida pelo tribunal recorrido do teor da vistoria a.p.r.m. para dar como provado o facto 8 que se insurgem os recorrentes, dizendo que a mesma não traduz a realidade existente na parcela expropriada, nomeadamente, não descreve com veracidade, quer o nº de árvores ali existentes, quer a extensão do muro de vedação.
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E começam por referir a falta de consideração, por parte da entidade expropriante, da reclamação por eles apresentada à vistoria feita pelo sr. Perito.
Mas sem razão, adiantamos já.
Compulsados os autos constatamos que após a realização da vistoria (fls. 32 e ss) e na qual não estiveram presentes os expropriados, foi-lhe a mesma notificada, em 30 de Julho de 2010 (facto aceite pelos próprios expropriados).
Consta dos autos a fls. 76 e 77 a reclamação àquela vistoria, apresentada pelo procurador dos expropriados, datada de 4 de Agosto de 2010, mas com carimbo de entrada na I… (fls. 76) em 6.8.2010.
Por isso a entidade expropriante, por carta datada de 17 de Agosto de 2008 comunicou aos expropriados (ao seu procurador) que a reclamação não foi considerada por ser extemporânea, nos termos previstos no nº 7 do artº 21º do CE.
E com razão, afigura-se-nos. Sendo a notificação da vistoria feita aos expropriados no dia 30.7.2008 (como os próprios admitem nas alegações de recurso), a reclamação daqueles - recebida nos serviços da expropriante apenas em 6.8. 2008 – ultrapassou o prazo de 5 dias previsto naquele nº 7 do artº 21º do CE, e, como tal, não foi atendida.
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Ainda assim, pretendem os recorrentes que seja tido em conta, em vez da vistoria a.p.r.m., o laudo subscrito pelo perito por eles nomeado.
Resta-nos então apreciar o valor probatório da mesma vistoria, em confronto com o relatório pericial subscrito pelo perito dos expropriados (que divergiu, quer no que toca à área da parcela, quer quanto ao número de benfeitorias existentes no terreno, do laudo maioritário, subscrito pelos peritos do tribunal e do perito da expropriante, os quais seguiram o que consta da vistoria a.p.r.m.).
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É um facto que a prova pericial assume especial relevância na prova produzida no processo de expropriações.
Tem-se defendido, em abono dessa tese, que os peritos são dotados de especiais conhecimentos técnicos, que devem exercitar nas perícias, tendo presente o critério do interesse público, pelo que, a prova pericial assume relevo essencial na fixação da matéria de facto necessária à determinação da justa indemnização devida aos expropriados e aos demais interessados.
Por isso a esmagadora maioria da jurisprudência tem vindo a considerar que, sendo divergentes os laudos periciais, cabe, em princípio, ao tribunal dar preferência ao dos peritos oficiosamente escolhidos, pelas suas garantias de competência e de imparcialidade (Ac RL, de 30.6.2005, CJ, ano XXX, tomo 2, pag, 116).
Isto na pressuposição de que a fixação da “justa indemnização”, mais que uma decisão jurídica é uma decisão técnica, destinando-se a intervenção do tribunal, essencialmente, ao controlo jurisdicional na aplicação das normas legais, o que torna compreensível a especial relevância que se atribui aos laudos periciais e, entre estes, aos laudos subscritos maioritariamente pelos peritos nomeados pelo tribunal, pela maior distância e independência que, em princípio, é suposto terem relativamente aos interesses particulares das partes envolvidas na expropriação - embora isso não possa levar a uma adesão cega e acrítica do julgador às conclusões dos peritos, nem importe qualquer obrigação daquele seguir sempre as conclusões do laudo maioritário (neste sentido e citando apenas alguns dos mais recentes arestos desta Relação do Porto, podem ver-se os Acs. de 27/01/2009, de 16/09/2008, e de 01/07/2008, todos disponíveis em www.dgsi.pt; idem, Raul Leite de Campos, in “Jurisprudência sobre Expropriações por Utilidade Pública”, pgs. 172 e segs.).
É por causa da especial relevância que a prova técnica tem nestes processos e particularmente na questão da determinação do montante da «justa indemnização» que, embora a mesma tenha que ser livremente apreciada, nos termos do art. 389º do CC, a atribuição de maior ênfase aos laudos dos peritos do tribunal, se compreende.
Ou seja, considerando a realidade que é necessário avaliar na acção de expropriação, o mais adequado tipo de prova à realização do desiderato legalmente previsto é o pericial, no pressuposto de que os peritos têm na matéria conhecimentos científicos especiais e que, em regra, não estão ao alcance de quem tem de proferir a decisão da matéria de facto (Ac. do Tribunal Constitucional, de 8 de Novembro de 1995, DR, II Série, n° 63, de 14 de Março de 1996, págs. 3490 a 3492), sendo ainda certo, por outro lado, que, em princípio e como tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência, o laudo maioritário constitui um valor seguro para a fixação judicial da indemnização.
Seguindo esta linha de orientação, na decisão recorrida foram considerados, na fixação da matéria de facto, os relatórios periciais existentes nos autos, desde logo o relatório pericial consistente no “auto de vistoria ad perpetuam rei memoriam”, e o relatório de avaliação maioritário, subscrito pelos peritos nomeados pelo tribunal e pela expropriante.
O primeiro relatório (vistoria a.p.r.m.) consiste numa diligência de carácter obrigatório, prevista nos artºs 20º e 21º do CE, e tem lugar no caso de expropriações urgentes em que foi autorizada a tomada de posse administrativa sobre os bens a expropriar, visando essencialmente a fixação dos elementos de prova relevantes para a ulterior avaliação, quando a intervenção no terreno antecede a arbitragem e a peritagem.
É uma diligência materializada num documento particular, sob a forma de relatório, visando salvaguardar o interesse das partes na determinação da justa indemnização, com a especial relevância que lhe advém de constituir o registo dos elementos de facto susceptíveis de desaparecerem e cujo conhecimento interesse para o julgamento da causa.
O relevo probatório desta prova pericial decorre da impossibilidade, em regra, de uma nova apreciação dos factos materiais a que se reporta, em virtude da transformação neles ocorrida (Salvador da Costa, Código das Expropriações, Almedina, pag. 133).
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A questão que se coloca então é a de saber se este tribunal da Relação deve alterar a factualidade proveniente da vistoria ad perpetuam rei memoriam, acolhendo aquilo que é descrito no laudo pericial subscrito pelo perito dos expropriados.
Como se deixou dito, a vistoria ad perpetuam rei memoriam tem como objectivo apreciar e inventariar os elementos com interesse para a avaliação do bem vistoriado, existentes nas parcelas expropriadas e susceptíveis de desaparecerem –cfr. al. c) do nº 1 do art. 20º e nº 4 do art. 21º C.Exp. Esses elementos são percepcionados localmente por um perito e, como tal, traduzem a realidade existente nas respectivas parcelas. É uma forma de prova pericial, com especial valor, porquanto muitas das coisas deixarão, a partir de então, de existir, e outras se alterarão em função do decurso do tempo e das transformações que, nas zonas envolventes, as obras que justificaram a expropriação vão introduzir. A importância deste acto probatório é tal que no mesmo se admite a intervenção do expropriado, nos termos do nº 3 do art. 21º, formulando quesitos, assinalando o que lhe aprouver e contribuindo, em geral, para potenciar a dimensão e a eficácia demonstrativa do mesmo.
Assim, só com especial segurança, fundada em inequívocos elementos de prova, se deve alterar a matéria factual proveniente da vistoria ad perpetuam rei memoriam. O mesmo se diga, de resto, no que toca à alteração da mesma matéria em sede de recurso, ao abrigo do regime previsto no art. 712º do C.P.C., depois de as partes terem produzido, no tribunal recorrido, toda a prova que entenderam útil.
Como se refere na decisão proferida sobre a matéria de facto “… não tendo qualquer dúvida o tribunal da isenção e imparcialidade do senhor perito que procedeu à vistoria, cabe salientar que dificilmente este contabilizaria 15 oliveiras de porte médio se lá existissem outras 24 oliveiras de porte médio e 3 oliveiras de porte grande, como seria igualmente difícil para o senhor perito contabilizar 30 m2 de muro e “não ver” os outros 141 m2 que os expropriados sustentam existir…”.
E acrescenta: “Os depoimentos testemunhais prestados referiram, é certo, como já se disse, a existência de outras árvores de fruto, além das referidas no auto de vistoria, mas, salienta-se que não foram coerentes entre si sobre que árvores existiam, o que desde logo põe em causa a confiança que o Tribunal poderia depositar nos seus depoimentos.
Uma última palavra ainda para realçar que, no que em particular diz respeito às árvores, como relataram as testemunhas, antes de se iniciarem as obras pela expropriante, os expropriados procederam ao abate e transplantação das árvores para outro local, pelo que a diferença de contabilização pode ter aqui a sua explicação: os expropriados podem ter feito o abate e transplantação parcial das referidas árvores antes de realizado o auto de vistoria.
Assim, pelo exposto, no confronto entre os depoimentos das testemunhas em causa e o teor do auto de vistoria, funda o Tribunal a sua convicção no teor do auto de vistoria, que nos dá maiores garantias de ciência, isenção e imparcialidade, dando-se como não provada a matéria alegada pelos expropriados”.
Concordamos inteiramente com o juízo de valor decorrente da análise crítica da prova efectuado pela sra. Juíza do tribunal recorrido, embora não tenhamos sido chamados a apreciar a prova testemunhal produzida nos autos.
No entanto, no confronto entre aquela prova pericial (decorrente da vistoria a.p.r.m.) e a prova pericial existente nos autos – o laudo subscrito pelo perito dos expropriados – temos também de dar prevalência à primeira, dada a imediação que o sr. perito teve com o terreno expropriado e com os bens nele existentes, que entretanto desapareceram ou foram alterados com as obras levadas a cabo pela expropriante, e que já não puderam ser constatadas pelo perito dos expropriados, o qual só pode ter elaborado o seu relatório com base nas declarações dos exprorpriados.
Trata-se de uma prova pericial – relatório elaborado apenas por um perito, nomeado pela parte -, que não pode oferecer ao tribunal as mesmas garantias de isenção e imparcialidade que nos oferece a vistoria a.p.r.m. – relatório elaborado por um perito nomeado pelo tribunal.
Entendemos assim que a prova resultante do relatório pericial subscrito pelo preito dos expropriados não constitui elemento que, com a necessária segurança, imponha decisão diversa e insusceptível de afectação pelas outras provas existentes, maxime a correspondente à citada vistoria ad perpetuam rei memoriam.
Mantém-se, assim, a matéria de facto, nos moldes em que foi decidida na 1ª Instância.
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Sobre a área da parcela expropriada, os recorrentes não impugnam a matéria de facto dada como “não provada”, sendo certo que é da matéria de facto não provada (ponto 10) que consta que “A parcela em causa (não) dispõe de uma área de 3.210m2”, pelo que a matéria de facto não impugnada (nomeadamente o ponto 1 - donde consta a área expropriada de 2.817m2) - tem de se ter como admitida.
Alegam, no entanto, os recorrentes (na conclusão 6ª) que “A área a considerar da parcela expropriada só pode ser aquela que consta do Laudo do Perito dos expropriados que é de 3.210m2 e não 2.817m2”.
Perante a matéria de facto dada como provada – e não impugnada – tal questão não deveria sequer ser apreciada.
Sempre se dirá contudo que tal questão foi objecto de apreciação no despacho proferido sobre a decisão da matéria de facto, e bem, em nosso entender, nos seguintes termos:
“…Os expropriados, no seu douto recurso, punham em causa a área do terreno, sustentando que a área constante da DUP não é a que efetivamente se encontra ocupada, asseverando que a área que deve ser considerada é a constante da Conservatória do Registo Predial e a matriz predial.
No entanto, com o devido respeito, não foi produzido qualquer meio de prova com credibilidade suficiente que ponha em causa as medições realizadas pela expropriante e que conclui que a área efectiva da parcela são 2.817 m2 (…). Nenhum outro meio de prova foi junto, concretamente o levantamento topográfico ou qualquer tipo de medição, que pusesse em causa as medições efectuadas pela expropriante.
Ademais, sempre se dirá, com o devido respeito por opinião contrária, que é jurisprudência unânime que a força probatória do registo não abarca as confrontações, a composição nem a área do prédio, pelo que, quanto a este aspeto, os expropriados não beneficiam de qualquer presunção, salientando-se ainda que as inscrições matriciais dos prédios nas Finanças são feitas com base em declarações do próprio proprietário (…).
Assim sendo, pelo exposto, julga-se não provado que a área da parcela seja de 3.210m2”.
Ou seja, mostra-se suficientemente justificada naquele despacho a opção tomada pelo tribunal pela área da parcela expropriada constante da vistoria a.p.r.m. – matéria de facto que, de resto, como se disse, os recorrentes não põem em causa nas alegações de recurso.
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Resolvidas as questões colocadas na Apelação pelos expropriados, conclui-se que a decisão recorrida fez um correcto enquadramento jurídico da situação dos autos, atribuindo aos expropriados a indemnização considerada justa, e com a qual também concordamos.
Fez-se naquela decisão uma correcta classificação do solo como “para outros fins”, nos termos do disposto no artigo 25º nº 3 do Código das Expropriações e aderiu-se, no cálculo do valor do terreno, ao laudo maioritário, subscrito pelos peritos do tribunal e da expropriante, que avaliaram o terreno segundo a sua capacidade de produção de vinha e de olival.
No que se refere ao valor das benfeitorias, aderiu-se também ao laudo maioritário (embora não haja divergência dos peritos quanto aos valores a atribuir às benfeitorias – apenas quanto ao seu número).
Concluiu-se assim pelo valor global da parcela expropriada de €17.831.00.
Considerando que o acórdão arbitral havia fixado a justa indemnização em €18.191,20, considerou-se o recurso totalmente improcedente, fixando-se a justa indemnização no montante fixado no acórdão arbitral, de €18.191,20, já que não tendo a entidade expropriante recorrido do mesmo, este transita em julgado em tudo quanto lhe é desfavorável.
Nenhum reparo temos a fazer à decisão recorrida, que é de confirmar.
Improcedem, assim, todas as conclusões das alegações dos recorrentes.
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Sumário do Acórdão (artº 713º nº 7 do CPC):
I – Ao processo de expropriação, como processo especial, embora sem norma genérica de remissão para aquele código, são aplicáveis, subsidiariamente, as normas do CPC, face ao disposto no artº 463º nº 1 do mesmo diploma legal.
II – São assim aplicáveis à impugnação da matéria de facto no processo de expropriação, os artºs 685º-B e 712º do CPC.
III – No que se refere à prova pericial decorrente da “vistoria ad perpetuam rei memoriam”, só com especial segurança, fundada em inequívocos elementos de prova, se deve alterar a matéria de facto baseada na mesma vistoria.
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Decisão:
Julga-se assim improcedente a apelação, e, em consequência, mantém-se, na íntegra a decisão recorrida.
Custas (da apelação) a cargo dos expropriados.
Notifique e outras D.N.

Porto, 3.12.2013.
Maria Amália Santos
José Igreja Matos
João Diogo Rodrigues