Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0746460
Nº Convencional: JTRP00040917
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
DESOBEDIÊNCIA
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200801090746460
Data do Acordão: 01/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Com a entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, foi descriminalizada a conduta que, pela via do nº 2 do anterior art. 387º do Código de Processo Penal, preenchia o crime de desobediência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto:

I – Relatório:

I – 1.) Inconformado com o teor do despacho proferido nestes autos com o NUIPC …/07.6PTPRT a fls. 76/7, em que o Sr. Juiz do ..º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto considerou descriminalizado o crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, por referência ao art. 387.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, de que o arguido B………. se mostrava condenado, em cúmulo jurídico com outra infracção, recorreu em obediência hierárquica o Ministério Público, pela pena da respectiva Sr.ª Procuradora-Adjunta, que assim sintetizou as razões da sua discordância:

1.ª - O anterior artigo 387.º, n.º 2, C.P.P., previa como crime de desobediência, a falta de arguido que, notificado para comparecer ante o Ministério Público, o não fizesse;

2.ª - O actual artigo 385.º, n.º 3, al. a), dispõe que, havendo libertação, “o arguido é notificado para comparecer ante o Ministério Público, para ser submetido a julgamento em processo sumário, com a advertência de que este se realizará mesmo que não compareça, sendo representado por defensor.”

3.ª - Não se prevê, assim, no novo código, qualquer crime de desobediência.

4.ª - “Em todo o caso, nas hipóteses anteriores à vigência do novo código (15.09.07) o crime (art. 348.º C.P.) mantém-se, não se tendo operado qualquer descriminalização.” (sic, Despacho n.º 55/2007, de 10/10/2007, de Sua Excelência o Senhor Procurador-Geral Distrital do Porto).

5.ª - Ora, “não se tendo operado qualquer descriminalização”, não deveria o Mm.º Juiz a quo ter optado, como optou, por declarar descriminalizados os factos integradores do crime de desobediência em causa.

6.ª - Segundo o entendimento constante do Despacho em causa, e salvaguardado o devido respeito, o Mm.º Juiz a quo, fez incorrecta aplicação da Lei, ao decidir como decidiu, declarar descriminalizados os factos constitutivos do crime de desobediência em apreço e violou, nessa medida, por errada interpretação e aplicação, o disposto no art. 348.º, n.º 1, do Código Penal.

7.ª - Nestes termos, deve a douta decisão judicial em causa ser revogada e substituída por outra que declare que, neste caso, por ser um dos “(...) anteriores à vigência do novo código (15.09.07) o crime (art. 348.º C.P.) mantém-se, não se tendo operado qualquer descriminalização” e, em consequência, mantenha, na íntegra, a anterior condenação do arguido.

Termos em que a douta decisão recorrida ser revogada.

I – Na sua resposta, concluiu por seu turno o arguido B……….:

1.º - Incorre na prática do crime de desobediência «quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandados legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, (...) se: (art. 348° CP, al. a) “uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples”.

2.º - O art. 387°/2 do CPP, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, estabelecia que, no caso de se verificar uma detenção fora do horário de funcionamento normal da secretaria judicial, a entidade policial que tiver procedido à detenção sujeitava o arguido a termo de identidade e residência, libertando-o e notificando-o para comparecer perante o Ministério Público no 1.º dia útil seguinte, à hora que lhe fosse designada, sob pena de, faltando, incorrer no crime de desobediência.

3.º - Os dois preceitos normativos, referidos nos artigos 1.º e 2.º supra, estiveram na base da condenação do arguido, em 7 de Maio de 2007, também, no crime de desobediência simples.

4.º - Todavia, a Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, com vigência a partir de dia 15 de Setembro de 2007, veio alterar o CPP, nomeadamente, o que vinha prescrito no artigo 387º/2 do CPP.

5.º - O actual CPP, no seu art. 385.º, n.º 3, alínea a), dispõe que, havendo libertação, o arguido é notificado para comparecer ante o Ministério Público para ser submetido a julgamento em processo sumário, com a advertência de que este se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor.

6.º - Pelo que, à luz do novo CPP, a conduta do arguido não consubstancia o crime de desobediência de que foi acusado e condenado.

7.º - Desta forma, e na observância do disposto no art. 2°/2 do CP, andou bem o Tribunal a quo ao declarar descriminalizados os factos integradores do crime de desobediência em causa e, assim, fazer cessar a execução da pena e os seus efeitos no que ao crime de desobediência diz respeito.

Nestes termos, deverá manter-se o despacho recorrido.

II – Os autos subiram a esta Relação, tendo sido proferido despacho liminar.
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Seguiram-se os vistos legais.
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Teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir:

III – 1.) Conforme decorre das conclusões acima deixadas transcritas, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal, traduz-se em saber, se o crime de desobediência anteriormente p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, com referência ao art. 387.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, foi, ou não, descriminalizado, em face da publicação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

III – 2.) Vamos conferir primeiro o teor do despacho recorrido:

Foi proferida sentença condenatória do(a) arguido(a) B………. a fls. 16-23, a qual transitou em julgado.
Todavia, quanto ao objecto do processo e da condenação, é de considerar que os factos integradores do crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, com referência ao art.º 387.º, n.º 2, do CPP, actualmente já não constituem tal crime, dado que se mostram descriminalizados, face à entrada em vigor, em 15/09/07, da Lei n.º 48/2007, de 29/08, a qual alterou o Código de Processo Penal – cfr. o art.º 2,º, n.º 2, do C. Penal, na redacção da Lei n.º 59/07, de 04/09.
Com efeito, nos actuais arts. 382.º, 385.º e 387.º do CPP deixou de ser cominada a desobediência para a falta de comparência do arguido perante o MP e no âmbito do processo sumário – como sucedeu neste caso.
Deve, pois, quanto a tal crime de desobediência, ordenar-se a cessação da execução da condenação penal do(a) arguido(a), bem como dos seus efeitos penais.
É de manter integralmente o decidido quanto ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, mantendo-se a respectiva condenação.
Em face do que se deixa dito, fica sem efeito o cúmulo jurídico efectuado na sentença a fls. 21 e 23.
Em conclusão, resta ao(à) arguido(a) cumprir a pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 7, aplicada pelo citado crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1, do C. Penal, acrescida da respectiva pena acessória.
Decisão
Assim sendo, ao abrigo do disposto no art.º 2.º, n.º 2, do C. Penal, declaro cessada a execução da pena de multa aplicada ao(à) referido(a) arguido(a) pelo citado crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1, al. a), do C. Penal, com referência ao art.º 387.º, n.º 2, do CPP, bem como os seus efeitos penais, ficando sem efeito o cúmulo jurídico efectuado a fls. 21 e 23.
Mantenho a condenação do(a) arguido(a) em relação ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 291.º, n.º 1, e 69.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do C. Penal, na pena de 40 (quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 7, bem como na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 meses e 15 dias.
Notifique.

III – 3.1.) Concordamos integralmente com a premissa essencial em que assenta o despacho ora controvertido e que se traduz na conclusão em como o crime de desobediência anteriormente p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, com referência ao art. 387.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, foi descriminalizado, em face da publicação da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.

Tal entendimento tem conhecido o beneplácito generalizado desta Secção, foi por nós já sufragado em pelo menos uma ocasião em sede de recurso, ainda que de forma incidental, estando já disponibilizado no endereço electrónico www.dgsi.pt/jtrp, o acórdão de 31/10/2007, da 1.ª Secção, proferido no processo com o número convencional JTRP00040705, onde a sua sustentação está superiormente evidenciada.

III – 3.2.) Sendo certo que a essência do crime de desobediência se traduz na falta da obediência devida, na estrutura previsiva do art. 348.º, do Cód. Penal, o conteúdo do respectivo n.º 1, no fundo, apenas esclarece as condições em que aquela obediência deve ser reputada como tal, ou seja, aquela em que concorram os requisitos da sua proveniência de ordem ou mandado legítimo, emanada de autoridade ou funcionário competente, regularmente comunicada.
Para que a referida falta possa depois revestir dignidade penal é necessário ainda, “que o dever de obediência que se incumpriu” tenha uma das fontes referidas nas respectivas alíneas a) ou b), isto é, que resulte de uma disposição legal ou da correspectiva cominação ter sido feita por autoridade ou funcionário (cfr. neste sentido, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, pág.ª 351).

Ora na situação que temos presente, a tal disposição legal habilitante era o art. 387.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, que em termos de regulamentação do processo sumário determinava que no caso da “detenção ocorrer fora do horário de funcionamento normal da secretaria judicial, a entidade policial que tivesse procedido à detenção sujeitava o arguido a termo de identidade e residência, libertava-o e notificava-o para comparecer perante o Ministério Público no 1.º dia útil seguinte, à hora que lhe fosse designada, sob pena de, faltando, incorrer no crime de desobediência”.

Só que, como vimos, por via da alteração legislativa conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, tal cominação desapareceu.
O actual art. 385.º, n.º 3, mantém em larga medida a referida redacção, mas exactamente amputada desse segmento.

Que a partir da entrada em vigor daquela Lei, nas situações apontadas, deixou de haver crime de desobediência, julgamos ser conclusão que o invocado Despacho não contestará, posto que desconheçamos qual o seu exacto conteúdo.
É que se “na al. a), o crime de desobediência parece destinado a servir de norma auxiliar (em sentido forte, uma vez que fixa as condições básicas do ilícito e sua pena) a alguns preceitos de direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente” (cfr. obra e lugar acima citados), e para que aquele crime possa existir, como já deixámos enfatizado, é necessária a referida habilitação legal extravagante, falecendo esta, como é óbvio, já não existe fundamento que permita a sua sustentação criminal.

E julgamos não relevar aqui a possibilidade de se entender, que na falta dessa disposição legal, poderia subsistir a habilitação fundada na respectiva al. b), a resultante dessa cominação ter sido feita por autoridade ou funcionário.
Não só porque no caso a incriminação efectuada não se apoiou nesse inciso, como também, por essa via, sempre o princípio da legalidade acabaria por impor a que se chegasse à mesma conclusão, já que, no contexto evidenciado, uma cominação com tal conteúdo realizado pela autoridade ou funcionário sempre se teria de haver como ilegítima, mais não seja, por traduzir a reposição de algo que a Lei havia querido, exactamente, suprimir.

Seguramente, o que despacho a que se alude na motivação terá em vista abarcar serão as situações constituídas antes de 15 de Setembro de 2007, ou seja, as anteriores à entrada em vigor da mencionada Lei.

III – 3.3.) Mas neste sentido, mais do que constatar um vazio, haverá que sublinhar que a ausência de referência à predita cominação traduz antes uma efectiva orientação do Legislador.

Recorde-se que uma das principais característica adjectivas do processo sumário era a condicionante que resultava de o julgamento ter que iniciar-se no prazo de 48 horas contadas sobre a detenção (art. 381.º, n.º1), ou a compressão da possibilidade de utilização dessa forma especial de processo aos casos em que o seu início se pudesse realizar nos 30 dias que lhe eram subsequentes (cfr. art. 386.º, n.º1).

A apresentação do arguido sob aquela forma compulsória ao Ministério Público, nas situações em que a apresentação no Tribunal não é possível por a secretaria estar encerrada, tem assim que ser vista nessa perspectiva de se alcançar um julgamento, se possível, nas quarenta e oito horas seguintes, ou no mínimo, de se obter a prestação de termo de identidade e residência que potencie um desenvolvimento posterior consequente do processo.

Ora com a regulamentação actual daquele processo, tal início de julgamento está garantido com a advertência de que se realizará, ainda que o arguido não venha a comparecer, representado por defensor - donde aquela cominação já não ser necessária.
Deste modo se converge em termos de regime com o já constante do processo comum e se mantém congruente aquela ideia de intervenção mínima do Direito Penal na tutela dos bens jurídicos essenciais à organização e funcionamento da sociedade.

III – 3.4.) Ora entendido aquele art. 387.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, como norma processual material, ou como se tem por preferível, por o facto considerado punido pela lei antiga o ter deixado de ser segundo a lei nova, nos termos do art. 2.º, n.º 2, da Cód. Penal, se deverá consequenciar “que se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, a cessação da sua execução e dos seus efeitos penais”.

Daí, quanto a nós, o acerto do decidido.

Nesta conformidade:

IV – Decisão:

Nos termos e com os fundamentos invocados, acorda-se pois em julgar improcedente o recurso apresentado pelo Ministério Público.

Não é devida tributação.

Elaborado em computador, revisto pelo Relator, o 1.º signatário.

Porto, 9 de Janeiro de 2008
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
Abílio Fialho Ramalho
Arlindo Manuel Teixeira Pinto