Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0434300
Nº Convencional: JTRP00037351
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
Nº do Documento: RP200411110434300
Data do Acordão: 11/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: O facto de o locatário em contrato de aluguer de longa duração de um veículo automóvel deixar de pagar as mensalidades, em consequência do que a locadora procedeu a resolução do contrato e o facto de aquele locatário, tendo-lhe sido pedida a restituição do veículo, não o entregar e continuar a circular com ele, justificar o receio da requerente de um procedimento cautelar que o requerido cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito de restituição do veículo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO.
1. “B.........., S.A.” instaurou, nas Varas Cíveis do ........., a presente providência cautelar não especificada contra C.......... e D.......... pedindo que, sem prévia audiência dos requeridos, fosse ordenada a imediata apreensão, com arrombamento se necessário, do veículo Mitsubishi ..........., de matrícula ..-..-PC e chassis nº ......, através da autoridade policial competente, mais requerendo que o veículo fosse incluído no ficheiro nacional de viaturas a apreender da PSP e GNR, até à sua localização, sendo depois restituída à requerente a sua posse.
Para tanto, alegou, em resumo, que:
- No exercício da sua actividade de aluguer de veículos alugou aos requeridos, em regime de ALD, o veículo identificado, nos termos do contrato junto a fls. 12 e 13, celebrado a 3/2/2000, e através do qual os requeridos se obrigaram ao pagamento de 49 alugueres mensais, o primeiro no montante de 1.306,68 Euros e cada um dos restantes de 644,46 Euros, aos quais acrescia o IVA;
- Os requeridos não procederam ao pagamento das mensalidades vencidas no dia 5 dos meses de Agosto a Dezembro de 2003 e Janeiro de 2004;
- Em consequência, e após os ter interpelado por carta de 4 de Fevereiro de 2004 para que liquidassem as mensalidades vencidas no prazo de dez dias, sob pena de considerar resolvido o contrato, liquidação a que eles não procederam, procedeu por carta de 27 de Fevereiro de 2004 à resolução do contrato nos termos da cláusula 16ª das Condições Gerais;
- Nessa carta interpelou os requeridos para que restituíssem o veículo, não tendo eles procedido a essa restituição e continuando a usufruir e a circular com ele, com a consequente depreciação e desvalorização;
- A propriedade do veículo encontra-se registada a seu favor e vê-se privada quer da disponibilidade do mesmo quer da expectável remuneração que deveria decorrer da sua locação, situação que constitui fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável dos seus direitos, para além de que está em causa um bem facilmente descaminhável;
- Posteriormente à resolução tentou, por diversas vezes, obter a restituição voluntária do veículo mas sem sucesso.

2. O Sr. Juiz indeferiu liminarmente a petição por entender que, face ao alegado, se não verificava o pressuposto de que a conduta omissiva dos requeridos causasse à requerente lesão grave ou dificilmente reparável do seu direito.

3. Inconformada interpôs a requerente o presente recurso pedindo se revogue o despacho recorrido, ordenando-se a sua substituição por outro a proferir nos termos do artº 385º do CPCivil, formulando as seguintes conclusões:
a) A factualidade por si alegada nos artºs 6º a 11º, 13º, 15º e 16º do requerimento inicial, se provada, leva à conclusão de existir fundado receio por parte da agravante de ver lesado o seu direito de restituição da posse da viatura, restituição essa que apenas se mostra útil se for imediata, evitando danos, ou perdas, relativamente à mesma, que lhe diminuam parcial ou totalmente o valor;
b) O que visa precaver é o direito à restituição do veículo locado e não o perigo de insolvabilidade dos requeridos para o pagamento dos alugueres em atraso e de indemnização originada na responsabilidade por incumprimento do contrato de locação, pois que o direito que se visa proteger de lesão é de natureza real e não obrigacional;
c) Ao indeferir liminarmente o requerimento inicial por entender ser manifestamente improcedente o pedido formulou, violou o Mmº Juiz a quo as disposições dos artºs 381º e 234º A, nº 1, do CPCivil.

4. Não houve contra-alegações e foi proferido despacho de sustentação.

5. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO.
1. É uma, essencialmente, a questão objecto do presente recurso, delimitada pelas conclusões da alegação da agravante (artºs 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do CPCivil), a saber: os factos alegados pela requerente não consubstanciam o “fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável” do seu direito, sendo os factos a considerar os referidos em I. 1..

2. Os procedimentos cautelares “têm por fim acautelar um direito, ameaçado ou já no início de lesão. Trata-se de uma medida que se propõe prevenir o mal ou conservar um direito” no dizer de J. Santos Silveira (em Processos de Natureza Preventiva e Conservatória, pág. 17), e destinam-se, em geral, a acautelar o efeito útil da respectiva acção, ou seja, “a impedir que, durante a pendência da acção, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela”, pretendendo-se assim prevenir os riscos da normal demora do julgamento definitivo da respectiva acção (A. Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 23).
A providência cautelar não especificada, regulada no artº 381º e seguintes do CPCivil, como medida adequada a determinada situação, depende da verificação cumulativa de dois requisitos essenciais: 1º - A existência de um direito do requerente e 2º - O fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a esse direito.
No que respeita ao primeiro requisito basta a “probabilidade séria” da existência do direito, pelo que a lei substantiva se satisfaz com uma prova indiciária.
Relativamente a este requisito dúvidas não se colocam: efectivamente, estando-se perante um contrato de aluguer de veículos automóveis sem condutor - distinto do contrato de locação financeira, que tem estrutura diferente como se vê desde logo do artº 1º do DL nº 149/95, de 24JUN. (a este propósito cfr. Ac. STJ de 20/11/03, em www.dgsi.pt.) - regulado no DL nº 354/86, de 23OUT., nos termos de cujo artº 17º, nº 4, é lícito à empresa de aluguer de veículo sem condutor retirar o veículo alugado no termo do contrato, bem como rescindir o contrato, nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais. Ou seja, em face do incumprimento do locatário, a locadora pode resolver o contrato com o consequente direito à restituição do veículo dele objecto.
Para a verificação do segundo requisito vem sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência defender-se a exigência de prova que conduza à formação dum juízo de certeza sobre a realidade integradora de lesão grave e dificilmente reparável, ainda que tal exigência seja entendida com maior ou menor amplitude – cfr., a propósito, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, em anotação aos artºs 381º, nº 1, e 387º, nº 1, do CPCivil, e bem assim Prof. Alberto dos Reis, CPCivil Anotado, Vol. I, pág. 621.
Nesta medida, não será, assim, toda e qualquer consequência decorrente da violação de um direito que poderá sustentar o decretamento de uma medida cautelar que se vai reflectir no património da contraparte, mas apenas a comprovação de uma lesão grave e dificilmente reparável facultará ao tribunal a tomada de uma decisão daquela natureza – cfr. Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 1ª ed., págs. 83 a 87.
Temos portanto, quanto ao segundo requisito, que é de exigir uma prova “completa”, mas, sem prejuízo de dever ter aqui lugar uma prova mais acentuada que no que se refere ao primeiro requisito, entendemos, dada a estrutura simplificada da providência e a natureza provisória da medida, ser suficiente uma prova menos exigente. Assim o entende também o Prof. A. Varela, obra citada, pág. 25, ao escrever “em vez da demonstração do perigo de dano invocado, bastará que o requerente mostre ser fundado (compreensível ou justificado) o receio da sua lesão.
No caso em apreço a requerente alegou os factos referidos em I. 1., entre os quais que o contrato foi celebrado em 3/2/00, pelo prazo de 49 meses, que os requeridos deixaram de pagar as mensalidades a partir de Agosto de 2003, em consequência do que procedeu à resolução do contrato, e que, tendo-lhes sido pedida a restituição do veículo em Fevereiro de 2004, não a levaram a cabo, continuando a circular com ele.
Ora, face a estes factos alegados, afigura-se que, a provarem-se, bem justificam o receio da requerente de que os requeridos causem lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito à restituição do veículo.
Esse receio entronca, em primeiro lugar, no incumprimento do contrato por parte dos requeridos mas, mais do que isso, surge reforçado se pensarmos na alegada actuação deles que, para além do incumprimento, se recusam a entregar voluntariamente o veículo, que continuam a deter ilicitamente, com os inerentes riscos e inconvenientes para a requerente, não obstante as várias tentativas para obter a entrega.
Na verdade, é lícito ao julgador extrair presunções de facto. Partir dos factos conhecidos e, atentas as regras da vida, do normal evoluir dos acontecimentos – cfr. Manuel Andrade, NEPCivil, pág. 215 -, chegar a factos desconhecidos.
Na aferição deste normal evoluir dos acontecimentos, temos de dar especial atenção ao normal da vida quotidiana, o que é permitido pelo recurso aos factos de conhecimento geral a que alude o artº 514º, nº 1, do CPCivil.
Ora, foi alegado que os requeridos não pagam as mensalidades, não devolvem um veículo sobre o qual não têm quaisquer direitos e o tempo vai passando.
E o que está em causa não é tanto a conduta dos requeridos pelo não pagamento dos alugueres que se obrigaram a liquidar mas, sobretudo, a não restituição do veículo objecto do contrato, que foi resolvido.
Com efeito, o que a requerente pretende salvaguardar com a presente providência é que não continue a verificar-se a lesão do seu direito de poder dispor de veículo que lhe pertence, evitando assim a sua perda e possibilitando o pleno exercício do direito de propriedade que detém sobre ele, sendo que a indemnização que for devida pelo incumprimento imputado aos requeridos não ressarcirá de todo a violação desse direito.
Esse direito de restituição do veículo só logrará ser obtido e prevenido com a sua apreensão pois que a alegada actuação dos requeridos de não cumprirem com o pagamento das mensalidades que se obrigaram a liquidar e de deterem tal veículo em seu poder sem responderem às solicitações que lhes foram feitas para o devolver, legitima, caso venham a provar-se, a constatação da existência de um risco acrescido de a requerente não poder vir a ser restituída à posse do veículo – neste sentido o Ac. desta Relação de 23/10/03, CJ, Tomo IV, pág. 190.
Em conclusão, os factos alegados pela requerente, a provarem-se, são suficientes e apontam para a medida requerida.

III – DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em dar provimento ao agravo, revogando-se o despacho agravado, o qual deve ser substituído por outro que ordene o normal prosseguimento dos autos.
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Sem custas.
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Porto, 11 de Novembro de 2004
António do Amaral Ferreira
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha
Estevão Vaz Saleiro de Abreu