Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0555803
Nº Convencional: JTRP00038545
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
NATUREZA URGENTE DO PROCESSO
FÉRIAS JUDICIAIS
SUSPENSÃO
PRAZO
Nº do Documento: RP200511280555803
Data do Acordão: 11/28/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: A apresentação das alegações de recurso, num procedimento cautelar, é um acto praticado em processo que a lei define como urgente, logo tramita em férias, não valendo aí a regra de suspensão dos prazos judiciais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B.........., Ldª”, requereu pelo Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão – .º Juízo de Competência Cível – Procedimento Cautelar Comum, contra:

C..........

“Banco X.........., S.A.”.

Pedindo a notificação, pelo meio mais expedito, do 2° requerido para suspender qualquer procedimento tendente ao pagamento da factura MTM/EXP/..-....-....., datada de 21.04.2004, relativo à carta de crédito documentário LIC .../......, ordenada pela B.........., Ldª, em benefício de “C..........”, no valor USD 31.459,53.

Tal pretensão foi deferida por despacho de 24.9.2004.

Notificada, a requerida “C..........” interpôs recurso da decisão, em 28.2.2005, não indicando pretender recorrer da matéria de facto.

Tal recurso foi admitido por despacho de 3.3.2005 e notificado à recorrente, tendo o prazo para apresentação de alegações começado a correr em 8.3.2005.

As alegações da recorrente foram apresentadas em 31.3.2005.
***

Por despacho de fls. 203 do processo principal, foi considerado deserto o recurso, por extemporânea apresentação das alegações da recorrente, por se ter entendido que o processo, pelo seu carácter urgente, implicava a não suspensão dos prazos durante as férias judiciais da Páscoa, prazo esse que foi excedido pela recorrente, já que procedeu à contagem do prazo de que dispunha para alegar, entendendo-o suspenso durante tal período.
***

Inconformada recorreu a requerida que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

I. O carácter urgente dos procedimentos cautelares, previsto no n°1 do art. 382° do Código de Processo Civil verifica-se apenas até ao decretamento da providência requerida;

II. A interpretação deste preceito, constante do despacho recorrido, encontra um débil suporte na letra do artigo e falece completamente quando confrontada com os elementos teleológico e sistemático do exercício interpretativo;

III. A finalidade das providências cautelares é a de evitar o periculum in mora, obviando-se a que o decurso da acção principal cause ao titular do direito ameaçado lesão grave e dificilmente reparável;

IV. O carácter urgente que a lei prevê para a tramitação do procedimento cautelar intentado para esse fim encontra a sua plena justificação até que o direito ameaçado se mostre acautelado;

V. É discutível, de jure constituendo, a bondade e a justiça de imprimir ao recurso de agravo, enquanto meio de defesa da medida cautelar, o mesmo carácter urgente estabelecido para o procedimento cautelar propriamente dito;

VI. Mas não o é de jure constituto.

VII. Na verdade, a solução legal positivada foi a de estabelecer a possibilidade de o requerido de uma providência cautelar por si considerada ilegal, de “Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida.” – art. 388º, n°1, a) do Código de Processo Civil;

VIII. A expressão “nos termos gerais” foi concretizada pelo legislador, ordenando que os recursos de agravo dos despachos que ordenem uma providência cautelar sigam os seus termos normais (“gerais”), e não estabelecendo qualquer regra especial que os faça serem julgados de modo mais urgente ou expedito, quer quanto a prazos ou outros aspectos formais, quer quanto a aspectos substanciais

IX. Da comparação entre o regime (especial) fixado para os procedimentos cautelares e o regime (geral) fixado para os respectivos recursos, resulta, quanto aos prazos, que os procedimentos cautelares devem ser decididos em 1ª instância, no prazo máximo de dois meses, ou se o requerido não tiver sido citado, de 15 dias — n° 2 do art. 382° e que a audiência se realiza em cinco dias — n°2 do art. 386°; para os recursos, não existe qualquer regra especial quanto a prazos de interposição, nem tão pouco quanto a prazos a observar pelo Tribunal de recurso para que seja proferida a respectiva decisão.

X. Quanto ao processamento urgente, os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente — n°1 do art. 382° do Código de Processo Civil, sendo os seus actos praticados, ainda que em férias judiciais; Nos recursos, não é prática as secções cíveis das Relações reunirem em férias judiciais, nem serem organizados turnos para a decisão em férias deste tipo de recursos;

XI. Quanto ao contraditório, os procedimentos cautelares podem ser julgados e decididos sem a audiência prévia do requerido – n° 1 do art. 385° do CPC; em caso algum, os recursos serão apreciados e decididos, sem que o recorrido conheça o teor da alegação do recorrente e sem que lhe seja dada a possibilidade de contra-alegar — n° 3 do art. 743º do Código de Processo Civil;

XII. Os procedimentos cautelares, a providência requerida será decretada, com base em prova sumária, se o Tribunal concluir que se verifica a probabilidade séria da existência do direito ameaçado – n° 1 do art. 387° do Código de Processo Civil, ao passo que o grau de certeza exigido para o julgamento dos recursos em nada difere do de qualquer outro recurso de agravo ou de apelação;

XIII. Da comparação do regime dos procedimentos cautelares com outras acções urgentes, resulta que o legislador atribui expressamente carácter urgente aos recursos, sempre que essa é a sua intenção;

XIV. Da análise do art. 100º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (CPEREF) – que atribuía expressamente carácter urgente aos “processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e recursos a que houver lugar” – e do art. 9° do novo Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa (CIRE), que estipula que “o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, têm carácter urgente”, resultam duas conclusões:

a) que o legislador quis atribuir carácter urgente a procedimentos que não o tinham – todos os seus apensos; e
b) que, quando o legislador pretende atribuir carácter urgente aos recursos, di-lo expressamente.

XV. Aparentemente, foi o vocábulo “sempre”, constante do n°1 do art. 382° do Código de Processo Civil, que induziu o Tribunal a quo na conclusão de que também ao recurso do despacho que decretou a providência deve ser conferido carácter de urgência, leitura que não perece ser a mais correcta;

XVI. A expressão “sempre” aparece utilizada no texto deste preceito com o sentido de “em todas as situações”, “em todos os casos, sem excepção”.

XVII. Quer dizer, o procedimento cautelar tem sempre carácter urgente, seja qual for a providência concretamente requerida e seja qual for o momento processual em que é requerida, ou seja, antes ou depois de intentada a acção principal;

XVIII. Para este sentido, não se encontra vocábulo mais apropriado do que “sempre”;

XIX. Já para o sentido defendido no despacho recorrido, “sempre” não seria seguramente o vocábulo mais apropriado, bastando uma redacção semelhante ao art. 100 do CPEREF ou do art. 90 do CIRE, que prevê expressamente o carácter urgente dos recursos e não utiliza o vocábulo “sempre”;

XX. Na interpretação das normas jurídicas, deve presumir que o legislador soube exprimir-se da forma mais adequada, não devendo, em todo o caso, o intérprete cingir-se à letra da lei – art. 9° do Cód. Civil;

XXI. A revogação do despacho recorrido, para além de repor a legalidade, servirá também para levar à esclarecida apreciação de uma decisão, relacionada com crédito documentário, (i) gritantemente ilegal; (ii) perigosa para o comércio internacional; (iii) e pouco abonatória para a credibilidade de Portugal no plano das relações comerciais internacionais.

Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida, só assim se fazendo Justiça.

A requerida B.........., Ldª” contra-alegou, pugnando pela confirmação do julgado.

A Ex.ma Juíza sustentou o seu despacho.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que os factos relevantes são os que constam do Relatório.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente, que se delimita o objecto do recurso, afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber se o prazo para alegação do recorrente de decisão proferida no procedimento cautelar, corre em férias judiciais ou, ao invés, se suspende durante tal período.

A decisão recorrida e o agravado entendem que tal prazo é contínuo; a recorrente entende que se suspende.

Vejamos:

Os procedimentos cautelares são meios provisórios de tutela do direito, destinados a evitar o perigo de demora do desfecho definitivo de acções ou execuções, devendo o requerente provar: ser titular do direito, a existência de “justo receio” de que outrem cause ao direito tutelando, lesão grave e de difícil reparação.

As Providências Cautelares – visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, que a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela.
Pretende-se deste modo combater o "periculum in mora" (o prejuízo da demora inevitável do processo) a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica (Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, 23).
Chama-se-lhes procedimentos e não acções porque carecem de autonomia – dependem de uma acção já pendente ou que vai ser seguidamente proposta pelo requerente (ibidem)”.

Dispõe o nº1 do art. 381º do Código de Processo Civil – (Procedimento Cautelar Comum):

“Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.

Consigna o art. 382º do citado Código:

“1. Os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente, precedendo os respectivos actos qualquer outro serviço judicial não urgente.
2. Os procedimentos instaurados perante o tribunal competente devem ser decididos, em 1ª instância, no prazo máximo de dois meses ou, se o requerido não tiver sido citado, de 15 dias”.

Nos termos do art. 144º, nº1, do mesmo Código, o prazo processual fixado na lei ou por despacho judicial é contínuo, suspendendo-se nas férias, excepto se a sua duração for igual ou superior a seis meses “ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes”.

Sustenta a recorrente que o carácter urgente da tramitação cautelar apenas se aplica até ao momento do decretamento da decisão requerida, relacionando essa sua interpretação com o facto de, com a decisão de decretamento, se obstar ao “periculum in mora”, cessando aí o carácter de urgência.

Mais aduz que a lei – art. 381º, nº1, a) do Código de Processo Civil – ao conferir ao requerido o direito de recorrer nos “termos gerais”, não estabelece qualquer regra quanto aos prazos do recurso, pelo que a proposição “sempre”, constante do nº1 do art. 382º do Código de Processo Civil – “os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente”, não se aplica ao recurso, pelo que nas férias judiciais – art. 12.° da Lei nº3/99, de 13.1 – os prazos inerentes à tramitação recursiva se suspendem.

Salvo melhor opinião, esta não é a interpretação mais compaginável, quer com a atribuição de tramitação urgente aos processos cautelares, quer com o fim específico que visam (celeridade e decisão provisória), sendo, quiçá, infractora da norma constitucional que consagra o princípio da igualdade – art. 13º – e do acesso ao direito e aos Tribunais – art. 20º da Lei Fundamental – o entendimento, implícito, nas alegações da recorrente, que a tramitação urgente do processo cautelar apenas se refere aos casos em que a providência é decretada.

Não pode sufragar-se tal entendimento, porque o requerente que vê o procedimento indeferido tem interesse, de igual modo urgente, em ver a decisão reapreciada, em sede de recurso, porque o periculum in mora pode persistir, ou seja, não é pelo facto do procedimento ser indeferido que o requerente “perde” o direito à reapreciação urgente em sede de recurso.

Se assim não fosse entendido seria, infundadamente discriminado, em relação ao requerido, que poderia recorrer visando a revogação da decisão, recurso esse que, entendemos, tramitar em férias, porque a lei não distingue, entre a fase da tramitação cautelar e a fase recursiva, para desprover esta de urgência, apenas a atribuindo à tramitação de actos praticados na 1ª instância.

A lei processual civil, no art. 144º, nº1, refere-se a actos a praticar em processos urgentes, mandando que corram em férias.

A apresentação das alegações de recurso num procedimento cautelar é um acto praticado em processo que lei define como urgente, logo tramita em férias, não valendo aí a regra de suspensão dos prazos.

Lopes do Rego, na obra infra citada, pág.150, em nota ao art. 144º do Código de Processo Civil, comenta:

“Não se suspendem, portanto, durante os dias que, nos termos das leis de organização judiciária, se integram nas férias judiciais todos os prazos processuais que respeitem a actos incluídos na tramitação de processos urgentes (v.g. procedimentos cautelares – art. 382.° - processos de recuperação da empresa e de falência – art. 10° do Código provado pelo DL nº132/93, de 23/4), independentemente da sua duração”.

Lebre de Freitas/Montalvão Machado/ Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, em nota ao art. 381º do Código de Processo Civil, ensinam:

“A expressa consagração do carácter urgente do procedimento cautelar, sem distinguir entre a fase que precede a decisão e a que se lhe segue, por via de recurso interposto pelo requerente ou pelo requerido ou por dedução de oposição ex post, leva a concluir que respeita a todas as suas fases, devendo assim os actos do procedimento preceder sempre os actos a praticar em processos não urgentes”.

Lopes do Rego, in “Comentários ao Código de Processo Civil” Volume I, 2ª edição, pág.347, escreve:

“O regime estabelecido, em geral, para os procedimentos cautelares visou garantir simultaneamente a celeridade no decretamento das providências e a efectividade das mesmas, traduzida no seu acatamento pelos destinatários.
Nesta perspectiva, o nº1 do preceito – que corresponde ao artigo 325° do Anteprojecto de 1993 – afirma explicitamente algo que já se considerava ínsito na natureza dos procedimentos: o seu carácter de processos urgentes, incluindo naturalmente a fase de recurso, com as consequências daí decorrentes, nomeadamente em matéria de prazos”.

E, na pág. 382, depois de aludir a divergências jurisprudenciais acerca da contagem do prazo na fase do recurso, opina:

“…A nosso ver, não há razão para afastar a urgência do procedimento quanto a qualquer fase do respectivo processo, que abarca as fases do recurso e da oposição: o que, como atrás se referiu, sucede é que o legislador conferiu uma tutela específica e acrescida a tal urgência na fase anterior ao decretamento da providência, impondo um prazo máximo para a prolação da decisão em 1ª instância”.

No mesmo sentido Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. III -1998 - págs. 116-117.

Também o STJ, em Acórdão de 28 de Setembro de 1999, in BMJ – 489-227 sentenciou:

“Os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente — n.° l do artigo 382° do Código de Processo Civil.
Por isso que não se suspendam os prazos destes processos durante o período das férias judiciais, recursos incluídos”.

Pelo quanto expusemos, reafirmamos que o carácter de urgência atribuído por lei aos procedimentos cautelares implica a não suspensão dos prazos para a prática de actos durante as férias judiciais.

Haverá, assim, que concluir-se que as alegações do agravante foram extemporaneamente apresentadas, pelo que o recurso, interposto na 1ª instância ficou deserto por falta de alegações – art. 291º, nº2, do Código de Processo Civil – qua tale não merece censura o despacho recorrido.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pela agravante.

Porto, 28 de Novembro de 2005
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale