Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0812492
Nº Convencional: JTRP00041358
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
Nº do Documento: RP200805210812492
Data do Acordão: 05/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 529 - FLS 183.
Área Temática: .
Sumário: I - Apenas se podem considerar jogos de fortuna ou azar, integradores do crime de exploração de jogo ilícito previsto no art. 108º, nº 1, do DL nº 422/89, de 19 de Janeiro, os enunciados no art. 4º do mesmo diploma.
II - Não se enquadra na alínea g) do nº 1 deste último preceito a máquina que, mediante a introdução de uma moeda de € 1, proporciona a atribuição de brindes previamente fixados em catálogo e indicados por número ou letra.
III - Só pode afirmar-se a verificação de um jogo de fortuna ou azar quando se está perante um acto de jogar fundamentalmente dependente da sorte e em que há total indefinição e desproporção entre aquilo que se arrisca e o resultado que se pode obter.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 2492/08-1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunto: Jorge França;

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto.

I.- RELATÓRIO

1.- No processo n.º …/06.6GAVLG do .º Juízo do Tribunal de Valongo, em que são:

Recorrente: Ministério Público.

Recorridos/arguidos: B………., C………. e D………. .

foi proferido despacho em 2007/Out./095, a fls. 123141, que não pronunciou o arguido B………. pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artigo 108º, nº1, do DL 422/89 de 2 de Dezembro, com a redacção dada pelo DL 19/95 de 19 de Janeiro, relativamente à máquina extractora de cápsulas de cores amarela e azul, tendo afastado da pronúncia das demais arguidas a conduta destas relativamente à exploração dessa mesma máquina.
2.- O Ministério Público insurgiu-se contra esta decisão, interpondo recurso da mesma em 2007/Out./26, a fls. 149-160, pugnando pela sua revogação nesta parte e substituição por uma outra que pronuncie os arguidos pela prática de tal crime, apresentando as seguintes conclusões:
1.ª) A atento o bem jurídico multiforme protegido pela previsão do crime de exploração ilícita de jogo, o legislador, no artigo 1° da Lei do Jogo, optou por uma definição material e ampla de jogo de fortuna ou azar, segundo a qual o mesmo tem lugar sempre que o resultado do jogo depende exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
2.ª) Por forma a evitar os efeitos perniciosos que a prática não regulamentada de jogo poderá acarretar e de modo a controlar as receitas fiscais estaduais, o legislador português adoptou a orientação de autorização regulamentada, de acordo com a qual a exploração lícita de tais jogos é circunscrita às zonas de jogos autorizadas.
3.ª) Deste modo, independentemente da natureza do prémio atribuído e da sua pré-determinação, todos os jogos que tenham resultados essencial ou exclusivamente dependentes do acaso apenas poderão ser praticados em tais zonas de autorizadas.
4.ª) Por seu turno, o critério distintivo das modalidades afins previstas na lei entronca no facto de as mesmas consistirem em operações oferecidas ao público, o que implica a sua promoção e interpelação directa do público, inexistente nos jogos de fortuna ou azar.
5.ª) “in casu”, o jogo desenvolvido pela segunda máquina pertença do arguido B………., não se enquadra nas operações de oferta ao público, sendo que para o seu resultado não intervém a perícia ou destreza do jogador.
6.ª) Com efeito, ao jogador cabe apenas introduzir uma moeda de 1,00 euro, esperando que à senha obtida corresponda a atribuição de um prémio ou de um brinde, consoante a correspondência feita pelo cartaz de plano de prémios e brindes e dependendo esta última de o valor do prémio ser superior ou inferior, respectivamente, ao montante da aposta.
7.ª) Por conseguinte, o resultado do jogo é contingente e aleatório, dependendo exclusivamente da sorte a obtenção de um ou outro tipo de prémio.
8.ª) Pese embora o jogador saber que lhe sai sempre um prémio, o mesmo corre sempre um risco, apostando na expectativa de ser premiado com o melhor prémio.
9.ª) Acresce que, o crime de exploração ilícita de jogo consuma-se com a colocação da máquina de jogo em local acessível ao público e em condições de funcionamento, o que no caso dos autos se verifica, já que a mesma se encontrava no estabelecimento comercial denominado "E……….", pertença da arguida D………. e explorado pela arguida C………. .
10.ª) Termos em que, o Meritíssimo Juiz de Instrução a quo fez uma incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 1°, 3°, 4°, n.º 1 alínea g) in fine e 108°, n.º 1 da Lei do Jogo, tendo a decisão instrutória violado tais normas.
11.ª) Igualmente violado se mostra o estabelecido no artigo 308°, n.º 1, 1ª parte do Código de Processo Penal, tendo em consideração a circunstância de os autos reunirem os indícios reputados suficientes em ordem à prolação de uma decisão de pronúncia dos arguidos.
3.- As arguidas C………. e D………. contra alegaram em 2007/Nov./23, a fls. 161-164, pugnando pela manutenção do decidido, o mesmo sucedendo com o arguido B………., que respondeu em 2007/Dez./03, a fls. 165-182, que, em síntese, concluiu do seguinte modo:
1.º) A distinção entre jogos de fortuna ou azar e modalidades afins desses jogos não poderá colher no factor ou critério da aleatoriedade do resultado, porquanto, tanto uns como as outras perfilham dessa mesma aleatoriedade;
2.º) A linha de fronteira entre estas figuras jurídicas está demarcada pelo simples facto de, nas modalidades afins, as promotoras oferecerem os jogos ao público, enquanto que nos jogos de fortuna ou azar elas se limitam a colocá-los em estabelecimentos, aos quais o público se dirige para os praticar.
3.º) No caso “sub júdice” não estamos perante um qualquer jogo de fortuna ou azar, mas sim, quanto muito, perante uma modalidade afim desses jogos de fortuna ou azar, pois, os prémios atribuídos, além de o serem sempre em espécie, estavam previamente fixados e o número de jogadores podia ser indeterminado;
4.º) A oferta ao público do jogo ora em causa sempre resultará explícita da colocação da máquina em questão sobre o balcão do estabelecimento comercial, o que sempre exigirá uma qualquer actuação por parte do explorador de tal jogo, que não é passível de utilização sem o auxilio imediato do seu explorador, até porque, conforme resulta da douta Acusação Pública, toda e qualquer jogada daria sempre direito a prémio.
5.º) Além do que, o jogo desenvolvido por tal máquina sempre deverá ser considerado como "operação" no sentido que a essa expressão é atribuída na nossa Jurisprudência, pois que, tem sempre uma vida útil limitada, uma vez que se encontra limitada pelo número de apostas possíveis, limitada ao número de senhas existentes, bem como, se encontra limitada pelo número de prémios a atribuir, que, como referido, se encontram previamente definidos.
6.º) A que sempre acresce o facto de não existir uma qualquer definição legal do que será de entender por "operações oferecidas ao público", e bem assim, o facto de a máquina não estar presente num estabelecimento onde o público se dirigia para a prática do jogo por ela oferecido, pois que, ao invés, a máquina estaria presente, isso sim, para serem "oferecidos" os seus jogos, a quem àquele estabelecimento comercial se dirigisse no intuito de consumir os produtos no mesmo disponibilizados.
4.- Nesta instância o Ministério Público apôs o seu visto em 2008/Abr./07, a fls. 191.
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A questão suscitada neste recurso é saber se o modo de funcionamento da máquina/expositor em causa nestes autos, representa um jogo de fortuna ou azar, já que não está em causa a falta de indícios das condutas imputadas aos arguidos.
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II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1.- Factos a considerar.
1.- A decisão recorrida, na parte que aqui releva e na sequência da acusação pública, descreveu a respectiva factualidade do seguinte modo:
“No dia 29/07/2006, cerca das 00.00 horas, militares da GNR procederam a uma acção de fiscalização no estabelecimento comercial denominado “E……….”, sito na Rua ………., em ………., nesta comarca.
O aludido café pertence à arguida D………. sendo que, à data, quem procedia à exploração comercial do mesmo era a arguida C………. .
Assim, na sequência da referida fiscalização foram apreendidas, no interior do aludido café, duas máquinas de jogo, sendo que dentro de uma delas se encontravam €18,50, e dentro da outra €53,00.
Sujeitas ambas as máquinas apreendidas ao respectivo exame pericial, foram as mesmas descritas da seguinte forma:
……………………………………………………………………………………………………………………….
2 - Máquina extractora de pequena dimensão, com cores amarela e azul, e cartaz expositor com diversos objectos todos numerados.
Na parte frontal inferior da máquina situa-se um mecanismo para introdução de moedas (€1,00) e extracção de cápsulas ovais e um receptor de cápsulas extraídas.
(…)
Da parte superior em acrílico foram retirados do seu interior três papéis com diversa informação e com os seguintes títulos “BRINDES CORRESPONDENTES AOS NÚMEROS”; “BRINDES CORRESPONDENTES ÀS LETRAS” e “MÁQUINA DISTRIBUIDORA DE BRINDES”.
(…)
A aquisição das senhas efectua-se da seguinte forma:
- Introduzir uma moeda no mecanismo de introdução de moedas;
- Dar uma volta completa com o manípulo rotativo, situado no mesmo mecanismo;
- Pegar na cápsula extraída, que se encontra no receptor, abrir ao meio e desdobrar a senha que se encontram no seu interior.
Depois de introduzida a moeda, extraída a cápsula com uma senha no seu interior e desdobrada essa mesma senha, temos dois resultados possíveis:
- O número ou letra constante na senha corresponde, de acordo com o Plano de Prémios e Brindes, a um objecto de valor económico superior ao valor introduzido e neste caso o jogador tem direito ao respectivo prémio, exemplo: relógio;
- O número ou letra constante na senha corresponde, de acordo com o Plano de Prémios e Brindes, a um objecto de valor económico inferior ao valor introduzido e neste caso o jogador tem direito ao respectivo brinde, exemplo: abre-latas.
(…)
O objectivo do jogo é o de conseguir combinações (números ou letras) premiadas com base, exclusivamente, na sorte, de nada valendo, para a obtenção do resultado final a perícia e destreza do jogador.
A máquina referida em 2) pertencia ao arguido B………. que a tinha colocado no E………. para efeitos de exploração e recepção posterior de parte dos lucros com a mesma obtidos.
Os arguidos, actuando em conjugação de esforços e comunhão de vontades, agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Os arguidos exploravam as máquinas descritas no café supra aludido, bem sabendo que se tratavam de jogos de fortuna e azar.
Os arguidos tinham igualmente conhecimento de que não podiam explorar as ditas máquinas, por a sua exploração ser vedada fora dos locais legalmente autorizados”.
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2.- Os fundamentos do recurso.
O crime de exploração ilícita de jogo, da previsão do art. 108.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 422/89, na redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 10/95, designada por Lei do Jogo, pune “Quem, por qualquer forma, fizer a exploração ilícita de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados …”.
A definição legal de jogos de fortuna ou azar encontra-se no art. 1.º desta Lei do Jogo, considerando-se como tal “aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte”.
Mediante este ilícito pretende-se acautelar a integridade das explorações dos jogos de fortuna e azar, circunscrevendo-as a zonas devidamente autorizadas.
Trata-se de um tipo totalmente aberto, cujo núcleo central corresponde a uma autêntica cláusula geral, que tem vindo a suscitar sérias dificuldades interpretativas, quando se pretende distinguir este ilícito criminal dos ilícitos contra-ordenacionais que correspondem a modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar e outras formas de jogo quando estas não se encontrem autorizadas, da previsão do art. 159.º e 160.º.
Para o efeito, convém ter presente que neste art. 159.º, consideram-se como modalidades afins “as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico”.
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A jurisprudência[1] não tem sido uniforme ao estabelecer os critérios diferenciadores destes ilícitos criminal e contra-ordencional, os quais passariam:
a) pelo carácter totalmente aleatório do resultado, considerando-se como exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, partindo-se essencialmente da definição legal do art. 1.º, todo aquele que dependa essencialmente do acaso e da sorte do jogador, de modo que este não tem qualquer possibilidade de influenciar ou condicionar o correspondente resultado – Ac. R. E. de 1999/Out./12 [CJ IV/296], Ac. R. P. de 1995/Mai./24 [CJ III/259], 2000/Mar./13 [CJ I/249, II/244] e mais recentemente os de 2007/Fev./21, 2007/Set./26 e 2008/Fev./27[2];
b) pela natureza pecuniária dos prémios atribuídos, de modo que, atento o preceituado no art. 4.º, n.º 1, al. g) e 161.º, n.º 3, parte final, da Lei do Jogo, quando tais prémios consistissem em dinheiro ou em fichas convertíveis em moeda corrente, estar-se-ia perante um ilícito criminal, ao passo que se apenas houvesse a atribuição de prémios de outra natureza, já haveria um ilícito de mera ordenação social – Ac. da R. E. de 2007/Fev./13 [CJ I/258], R. L. de 2007/Fev./07, R. C. de 2008/Abr./09;
c) pelo tipo das operações oferecidas ao público, considerando-se como modalidades afins, atento o disposto no art. 159.º, n.º 1 e a enumeração exemplificativa do seu n.º 2, aquelas que correspondem a uma interpelação ou promoção directa junto do público, enquanto que no crime de jogo de fortuna ou azar este é colocado em estabelecimentos pré-determinados – Ac. R. Porto de 1997/Fev./05 [CJ I/249], 2000/Abr./26 [CJ II/240].
d) pela pré-determinação do subsequente prémio, considerando-se como modalidades afins aquelas operações em que o prémio está pré-fixado e de dirija a um número indeterminado de pessoas, pois caso contrário tratar-se-á de uma exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar – Ac. R. E de 1990/Nov./06 [CJ V/276][3], Ac. R. L. de 1990/Nov./06 [CJ V/276] Ac. R. C de 2007/Mai./16;
e) pela temática do jogo ou pela natureza dos prémios, considerando-se crime a exploração de máquinas que desenvolvam temas próprios de jogos de fortuna ou azar, independentemente do pagamento de qualquer prémio ou então aquelas que não desenvolvendo jogos com esses temas atribuem prémios em dinheiro ou convertíveis em dinheiro, situando-se fora desta descrição as modalidades de jogo afins, ainda que o seu resultado dependa exclusiva ou fundamentalmente da sorte – Ac. R. L. de 2007/Out./10; Ac. STJ de 2007/Nov./28 [CJ III/256]
f) pela temática do jogo, considerando-se apenas como jogos de fortuna ou azar aqueles cuja exploração está reservada aos casinos, pelo que apenas haveria crime de exploração desses jogos quando os mesmos fossem efectuados fora das zonas concessionadas – Ac. R. L. de 2005/Out./26 [CJ IV/147].
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Naturalmente que a estes posicionamentos não é estranho toda a evolução histórica do crime de exploração ilícita de jogo de fortuna ou azar, que no Código Penal de 1886, encontrava-se tipificado no seu art. 265.º, e 266.º, sem que contudo se definisse o que se considerava como tal.
No primeiro punia-se “O que for achado, jogando jogo de fortuna ou azar, …”, enquanto no segundo seriam “Aqueles que em qualquer lugar derem tavolagem de jogo de fortuna ou azar, e os que forem encarregados da direcção do jogo, posto que o não exerçam habitualmente, e bem assim qualquer administrador, proposto ou agente, …”.
Todo o regime penal relativo aos jogos de fortuna ou azar foi revogado pelo Dec. n.º 14.643 de 1927/Dez./03, mais concretamente pelo seu art. 63.º, passando o regime de exploração de jogos de fortuna ou azar a ser regulado pelo Dec.-Lei n.º 48.912, de 1969/Mar./18.
Para o efeito, considerava-se no art. 1.º, deste último diploma, que “Denominam-se de fortuna ou azar os jogos cujos resultados são contingentes, por dependerem exclusivamente da sorte”, sendo a sua prática apenas “permitida nos casinos existentes nas zonas de jogo e nas épocas estabelecidas para o seu funcionamento” [n.º 2].
Por sua vez, modalidades afins seriam, segundo o subsequente art. 43.º, “As operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside essencialmente na sorte …”, acrescentando-se no seu § 1 que “São especialmente abrangidos por este artigo as rifas, tômbolas, sorteios, assim como quaisquer máquinas automáticas cujo funcionamento não dependa da utilização, nem origine a atribuição de fichas e para cujos resultados não influa a perícia e, ainda, os concursos de publicidade, ou outros em que se verifique a atribuição de prémios.”
Assim, enquanto os jogos de fortuna ou azar se centram na exclusividade da sorte, as modalidades afins assentam essencialmente na sorte das “operações oferecidas ao público”.
O Dec.-Lei n.º 22/85, veio no entanto alterar este regime, modificando a redacção daquele § 1.º, do art. 43.º, restringindo o carácter exemplificativo das modalidades afins às “…rifas, tômbolas, sorteios e concursos de publicidade ou outros em que se verifique a atribuição de prémios”.
Tal alteração foi, a dado momento, abonada no seu preâmbulo do seguinte modo:
“2. São muitas e sofisticadas as modalidades de máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas, que, embora não pagando directamente prémios em dinheiro ou em fichas, se têm revelado meios apropriados para a prática ilegal de jogos de fortuna ou azar, na medida em que favorecem a aposta de dinheiro sobre os créditos representados nas pontuações em que se traduzem os seus resultados, dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
3. A solução legal até agora adoptada, consistente na qualificação de tais máquinas como de diversão e na sua sujeição ao regime instituído para as máquinas de tipo flipper, tem-se revelado ineficaz para prevenir e reprimir o seu emprego na aludida prática de jogo ilícito.
4. Justifica-se, assim, a revisão do enquadramento legal daquelas máquinas, qualificando-se as mesmas como verdadeiros jogos de fortuna ou azar e, consequentemente, restringindo-se o seu uso aos casinos das zonas de jogo autorizadas.
5. Permanecem fora deste regime, embora sujeitas a uma regulamentação própria, as máquinas de mera diversão, cujos resultados, por dependerem exclusiva ou fundamentalmente da perícia, como sucede com as do tipo flipper, não favorecem as apostas ilícitas.”
Mediante esta alteração e sem se proceder a qualquer modificação dos critérios operativos enunciados nos art. 1.º e 43.º, do Dec.-Lei n.º 48.912, teve-se o propósito explícito de passar-se a enquadrar como jogos de fortuna ou azar as máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas, que, embora não pagando directamente prémios em dinheiro ou em fichas, favorecem a aposta de dinheiro sobre os créditos representados nas pontuações em que se traduzem os seus resultados, dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
Nesta conformidade, o critério da exclusividade ou da essencialidade da sorte, deixou de ser distintivo entre os jogos de fortuna ou azar das suas modalidades afins, de modo que o posicionamento jurisprudencial enunciado em a) não pode ter qualquer sustentabilidade[4].
Por outro lado, podemos também daqui concluir que o legislador passou a dar prevalência, na descrição do tipo legal de crime, às exemplificações dos jogos de fortuna ou azar ou das suas modalidades afins, em detrimento das cláusulas gerais enunciativas daquele ilícito criminal.
Com o Dec.-Lei n.º 422/89, de 02/Dez., passou a instituir-se um novo quadro normativo que relativamente á definição do que seria o jogo de fortuna ou azar passou a ser essencialmente o mesmo.
E isto porque no seu art. 1.º, a que já fizemos referência, o jogo de fortuna ou azar continuava a consistir naquele cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte, mantendo-se em vigor o capítulo VI do Decreto-Lei n.º 48912, de 18 de Março de 1969, com a redacção do § 1.º do artigo 43.º dada pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 22/85, de 17/Jan. – para além do corpo do artigo 59.º e seus §§ 1.º e 2.º.
No entanto, não podemos deixar de salientar que o Dec.-Lei n.º 422/89, passou a enunciar no seu art. 4.º, alguns, como se diz no seu proémio, desses tipos de jogos de fortuna ou azar, sendo a sua redacção a seguinte:
“1.- Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;
b) Jogos bancados em bancas simples: black jack/21, chukluck e trinta e quarenta;
c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;
d) Jogo bancado: keno;
e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;
f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.”
Este regime jurídico foi alterado com o Dec.-Lei n.º 10/95, de 19/Jan., em cujo preâmbulo se pode ler:
“Neste contexto, tendo não só em conta essas mutações mas também a resposta que, em países de tradição cultural próxima da portuguesa, lhes vem sendo dada a nível legislativo, importa encontrar novas soluções que, não pondo em causa os interesses de ordem pública cuja tutela sempre foi assumida neste domínio, criem um enquadramento susceptível de melhorar as condições de exploração da actividade e de assegurar uma efectiva repressão das infracções, através do reforço da responsabilidade das concessionárias, dos seus administradores, trabalhadores e frequentadores.
Por outro lado, opta-se por regular no âmbito do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro, a matéria relativa às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, revogando-se assim por completo o Decreto-Lei n.º 48912, de 18 de Março de 1969, diploma onde tal matéria se encontra presentemente disciplinada, por razões que se prendem não tanto com a necessidade de alterar o regime vigente, cujas soluções se mantêm no essencial, mas antes com a conveniência de disciplinar unitariamente uma realidade próxima da que já é regulada pelo referido Decreto-Lei n.º 422/89.”.
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Neste preâmbulo faz-se alusão aos “países de tradição cultural próxima da nossa” não se percebendo no entanto a quais, uma vez que ao nível do direito comparado, mormente dos países que integram a união europeia, as realidades jurídicas que disciplinam os jogos de fortuna ou azar são distintas – veja-se a propósito “Gaming Regulators European Fórum”, em www.gref.net e o estudo “Gaming regulation Structures in Europe”, de Jaap Wils e André Oostdijk, em www.toezichtkansspelen.nl.
A propósito podemos afirmar que a generalidade dos países regulamenta a exploração de jogos de fortuna ou azar, muito embora seja distinta a natureza dos diversos regimes sancionatórios dos jogos ilícitos, podendo até se distinguir dois grandes sistemas.
Assim, enquanto alguns deles apenas estabelecem sanções administrativas ou contravencionais para a actividade de exploração ilícita dos jogos de fortuna ou azar outros criminalizam essa actividade.
Nesse primeiro sistema, podemos encontrar a Espanha, que através da Ley 34/1987, de 26/Dez., qualifica como infracções administrativas muito graves, graves ou leves as acções ou omissões tipificadas nos seus art. 2.º, 3.º e 4.º, estando aquelas duas primeiras aí descritas de forma exaustiva enquanto a última estabelece uma cláusula geral.
Será de referir que a par desta lei foi estabelecido, através da “Orden Ministerial de 9 de Octubre de 1979”, modificada em 1984/Jan./23, um catálogo dos jogos de “suerte, envite o azar”, que teve como preocupação fundamental a entrada em funcionamento dos casinos de jogo.
No mesmo sentido surge o Código Penal Italiano, que integra tanto os ilícitos criminais, como contra-ordenacionais, mas que classifica como “contravvenzioni” o exercício do jogo de azar, através do seu art. 718.º, considerando como elementos essenciais desse jogo, tal como se estabelece no art. 721.º, quem recorre ao mesmo com fins lucrativos, sendo o seu resultado (“la vincita o la perdida”) “interamente o quasi interamente aleatória”.
Nos antípodas deste sistema, optando pela criminalização da actividade de jogo ilegal, podemos encontrar a França, através da “Loi n.º 83-628”, que sofreu entretanto várias modificações.
Através do seu art. 1.º, pune-se como crime quem proceda à exploração ilegal de uma casa de jogos de azar, onde o público tenha livre acesso, mesmo que subordinado a qualquer condição, enquanto no seu art. 2.º comina-se quem efectue a importação ou fabricação de aparelhos cujo funcionamento consista no azar e que permita, eventualmente, o surgimento de sinais, como modo de possibilitar uma vantagem directa ou indirecta de qualquer natureza, mesmo que seja gratuita.
Mediante este artigo 2.º também se pune aqueles que detenham ou ponham à disposição de terceiros, instalando ou explorando estes aparelhos, em lugares públicos ou abertos ao público ou nas suas dependências, mesmo que privadas, salvo se essa detenção ou posse ocorrer em certos períodos (“fêtes foraines”) ou esse aparelhos corresponderem à distribuição de produtos de confeitaria.
Também são igualmente excluídos os aparelhos de jogos existentes nos casinos e cuja prática esteja prevista na lei.
Por sua vez, a regulamentação dos jogos nos casinos, encontra-se actualmente prevista no “Arrêté” de 2007/Mai./14, onde se descrevem o modo de funcionamento dos aparelhos que podem ser explorados na zonas concessionadas.
O mesmo sucede na Suiça, através da Lei Federal de 18 de Dezembro de 1998, que a par das contravenções previstas no seu art. 56.º, em que se descrevem nove situações nas suas al. a) a i), tipifica como crime as condutas enumeradas nas al. a) a d) do precedente art. 55.º.
Assim, enquanto naquela al. a) alude-se à abertura ou exploração de uma casa de jogo sem que a mesma esteja concessionada ou autorizada, já a al. b) se reporta à prestação de informações falsas para obtenção dessa concessão ou autorização, a al. c) à falta de diligência contra as medidas previstas nesse diploma relativamente ao branqueamento de capitais e a al. d) à fuga de impostos relativo às casas de jogo.
Assim podemos constatar que a nível da União Europeia, a par de uma descriminalização das condutas que representem a exploração de jogo ilícito, existe um propósito, nos países que criminalizam essa actividade, de restringir os respectivos tipos legais de crimes à exploração de casas de jogos ilegais ou então de jogos de fortuna ou azar existentes nos casinos, surgindo os demais ilícitos como contra-ordenações.
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Retomando o nosso regime legal, mormente a nossa Lei do Jogo, convém então precisar quais são as condutas que integram o crime de exploração ilícita de jogo, sob pena da sua indeterminabilidade poder violar o princípio da legalidade, violando-se assim o art. 29.º, n.º 1 da C. Rep. e o art. 1.º do Código Penal.
Tal questão já foi abordada no Ac. n.º 93/2001, do Tribunal Constitucional [DR II, de 2001/Jun./05], onde se concluiu que “o eixo sintagmático por qualquer forma, contido no n.º 1 do art. 108.º, mesmo quando se entenda este artigo integrado pela definição de jogos de fortuna ou azar feita pelo artigo 1.º – não obstante a expressão adverbial fundamentalmente – respeita os parâmetros constitucionais do princípio da tipicidade, não se surpreendendo, …, qualquer imprevisibilidade, verificando-se uma subsunção à previsão normativa que retira sentido seja a uma interpretação extensiva seja, muito menos, a uma interpretação analógica”.
No entanto logo acrescenta, que “Com efeito, a exemplificação do art. 4.º integra a definição do tipo, apenas na medida em que os jogos referidos nas suas alíneas são, todos eles, subsumíveis ao conceito de jogos de fortuna ou azar, sem pôr em questão a determinação do tipo”.
Aqui chegados e perante a cláusula geral do art. 108.º, n.º 1, deverá a mesma ser integrado pelos exemplos-padrão dos jogos de fortuna ou azar do art. 4.º, surgindo os mesmos como sub-tipos orientadores daquele tipo legal de crime.
Só assim e perante o grau de ambiguidade daquele art. 108.º, n.º 1, é que se poderá observar o princípio da legalidade, aqui na vertente de “nullum crimen sine lege certa” segundo o qual todo o crime deve ser claro e preciso quanto às condutas aí anunciadas, adoptando-se uma interpretação constitucionalmente correctiva.
Nesta conformidade, apenas podemos considerar como jogos de fortuna ou azar, integradores do crime de exploração de jogo ilícito, os enunciados no catálogo do art. 4.º da Lei do Jogo.
No caso em apreço, apenas poderiam estar em causa, os jogos descritos nas al. f) e g), do n.º 1 do citado art. 4.º, da Lei do Jogo.
Para o efeito, importa que se trate de uma máquina, considerando-se como tal qualquer aparelho, automático, mecânico, eléctrico ou electrónico, não sendo integrável neste conceito os painéis expositores de produtos, como é o caso daqueles que correspondem à exposição de chocolates ou cujos brindes estejam aí fixados.
Por sua vez, o funcionamento desse aparelho, enquanto jogo de fortuna ou azar, deverá corresponder a um acto de jogar fundamentalmente dependente da sorte, em que existe uma total indefinição e desproporção entre aquilo que se arrisca e o resultado que se pode vir a obter (prémio).
No que concerne à máquina referenciada na al. f) o seu prémio deverá corresponder a moedas ou a fichas que possam ser cambiadas por dinheiro, o que aqui não se verifica.
Relativamente à máquina descrita sob a al. b), a mesma deverá desenvolver um tema próprio dos jogos de fortuna ou azar ou seja, deverá corresponder a um acto de jogar, tal como o definimos anteriormente.
Como se pode constatar, através da sua descrição, a máquina aqui em causa, que proporciona, mediante a introdução de uma moeda de 1 €, a atribuição de brindes, previamente fixados em catálogo e mediante indicação, por número ou letras, constante nas senhas existentes nos invólucros proporcionados por esse aparelho, quase que se assemelha ou se situa no mesmo plano de uma tômbola ou mesmo de uma rifa, pelo que o seu funcionamento não traduz qualquer acto de jogar, no sentido de que não representa tema próprio dos jogos de fortuna ou azar, sendo antes uma modalidade afim destes jogos.
Alias e para sermos mais impressivos, podemos afirmar que este tipo de máquinas não tem qualquer correspondência com nenhuma existente nos casinos, antes pelo contrário.
Nesta conformidade e sem necessidade de mais considerações, o recurso do Ministério Público não merece procedência.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Não é devida tributação.

Notifique.

Porto, 21 de Maio de 2008
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira

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[1] Todos os acórdãos a que não se faça referência onde foram divulgados, são acessíveis em www.dgsi.pt
[2] Estes três últimos relatados, respectivamente, pelo signatário e igualmente subscrito pelo mesmo adjunto, Des. Ernesto Nascimento e Francisco Marcolino.
[3] Este aresto incidiu sobre o regime instituído pelo Dec.-Lei n.º 48.912, de 18/Mar. de 1969.
[4] Revemos assim a nossa anterior posição.