Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0743758
Nº Convencional: JTRP00040731
Relator: CRAVO ROXO
Descritores: OFENSAS Á INTEGRIDADE FÍSICA
EXCLUSÃO DA ILICITUDE
MENOR
Nº do Documento: RP200711070743758
Data do Acordão: 11/07/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 287 - FLS. 63.
Área Temática: .
Sumário: Um catequista não tem o poder-dever de correcção em relação a menor a quem ministra catequese.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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No processo comum nº …../05.1GFVNG, do Tribunal Judicial de Castro de Aire, foi o arguido B…………… – após arquivamento pelo Ministério Público e abertura de instrução pelo assistente – pronunciado pela prática de 1 crime de ofensa à integridade física simples, previsto no Art. 143º, nº 1, do Código Penal.
É desse despacho que agora recorre o arguido.
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São estas as conclusões do recurso (que balizam e limitam o âmbito e o objecto do mesmo):
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O requisito de abertura de instrução não dá cumprimento ao requisito de obrigatoriedade de narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, parcialmente quanto aos elementos objectivos e na integra quanto aos elementos subjectivos do crime imputado ao arguido, mostrando-se, assim, inábil para sustentar o despacho de pronúncia em crise, circunstância que determina a inadmissibilidade legal da instrução em apreço e, de igual modo, a nulidade do despacho de pronúncia (ut arts. 283°, n.° 3, e 287°, n.°s 2 e 3, do CPP);
Não se mostram indiciariamente provadas nos autos quer as alegadas agressões, quer sobretudo que o ofendido tenha sofrido qualquer ofensa no corpo ou na saúde, inexistindo, pois, no caso sub judice indícios suficientes que sustentem o despacho de pronúncia em crise (ut arts. 283°, n.°s 1 e 2, e 308°, n.° 1, do CPP);
A entender-se que a factualidade apurada no caso sub judice é susceptível de, abstractamente considerada, preencher os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena pela prática do crime que lhe é imputado, no que se não concede, in casu sempre estaria excluída a ilicitude desses factos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 31°, n.°s 1 e 2, al. b), do CP;
O despacho em crise violou, designadamente, as disposições constantes dos art.s 31°, n.°s 1 e 2, al. b), do CP, e dos arts. 283°, n.°s 1, 2 e 3, 287°, n.°s 2 e 3, 308°, n.° 1, 311°, n.° 3, als. b) e c), do CPP e dos arts. 32° e 61°, n.° 1, als. b) e f), da CRP.
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A estas alegações respondeu o Ministério Público, entendendo que o despacho deve ser mantido e o recurso não provido.
Respondeu também a assistente C………………… (em representação do seu filho menor), entendendo que o despacho de pronúncia deverá ser mantido e o recurso julgado improcedente.
Já neste Tribunal, entregou o Senhor Procurador-geral Adjunto o seu parecer, no qual defende que o recurso não merece provimento.
Cumprido o disposto no Art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, respondeu ainda o arguido, considerando que ao requerimento de abertura de instrução falta o elemento subjectivo da infracção, pelo que a pronúncia deve ser revogada e ser concedido provimento ao recurso.
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Foram colhidos os vistos.
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Eis o despacho em crise:
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A ilustre magistrada do Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito, ao abrigo do disposto no art° 277°, n° 1, do C.P.P., no que concerne ao crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art° 143°, n° 1, do C.P., relativamente a ambos os arguidos, B……………….. e D…………………..
Inconformada com o despacho de arquivamento proferido, pela ilustre magistrada o Ministério Público, a assistente, C………………., requereu a abertura da instrução.
No contexto do seu requerimento, para a abertura da instrução, a assistente pediu que posse proferido despacho de pronúncia, contra o arguido, pela prática, pelo mesmo, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art° 143°, n° 1, do C.P..
Fez a assistente juntar, ao seu requerimento, para a abertura da instrução, três documentos.
O requerimento, para a abertura da instrução, foi admitido, através de despacho.
No despacho, que admitiu o requerimento, para a abertura da instrução, foi designada data, para a inquirição de cinco das testemunhas, que a assistente pretendia que fossem ouvidas.
Procedeu-se à inquirição de cinco das testemunhas, que a assistente pretendia que fossem ouvidas.
Na sequência de requerimento, em tal sentido, foi designada data, para a inquirição de duas testemunhas, que foram indicadas, pelo arguido.
Procedeu-se à inquirição das duas testemunhas, que foram indicadas, pelo arguido.
Foi designada data, para a realização do debate instrutório.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância de todas as formalidades legais.
No âmbito do debate instrutório, foi admitida a junção, aos autos, de um Documento, que foi apresentado, pelo arguido.
Inexistem quaisquer nulidades ou outras questões prévias ou incidentais, de que cumpra conhecer.
DECISÃO:
Dispõe o art° 286°, n° 1, do C.P.P., que: “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”.
Por seu lado, o art° 308°, n° 1, do C.P.P., estatui que: “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”.
Ora, os indícios consideram-se suficientes, por força do disposto no art° 283°, n° 2, do .P.P. (aplicável ex vi art° 308°, n° 2, do C.P.P.), “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”.
Em face do exposto, fácil é de ver que, se da apreciação crítica das provas recolhidas, no inquérito e na instrução, resultar a convicção de uma forte probabilidade ou de uma possibilidade razoável de que o arguido tenha cometido um crime, impõe-se proferir despacho de pronúncia.
No que ao caso dos autos concerne, importa, então, averiguar se foram recolhidos indícios suficientes da prática, pelo arguido, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art° 143°, n° 1, do C. Penal.
Dispõe o art° 143°, n° 1, do C.P., que: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”.
Como refere Paula Ribeiro de Faria, invocando Eser e Maiwald (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo 1, 1999, Coimbra Editora, pág. 205), ‘Por ofensa no corpo poder-se-á entender “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante” (...).“.
Resulta da própria definição acabada de reproduzir, que a “ofensa no corpo” não pode ser insignificante.
Ora, para efeitos de valoração da “ofensa no corpo” como significante ou insignificante, há que lançar mão, em primeira linha, de critérios objectivos e não de “pontos de vista pessoais cio ofendido, necessariamente subjectivos e arbitrários” (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Torno 1, 1999, Coimbra Editora, pág. 207).
Já por “ofensa na saúde” deve considerar-se, segundo a mesma autora supra evocada, por referência a Maiwald (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo 1, 1999, Coimbra Editora, pág. 207), “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a; ...“.
Noutra ordem de ideias, por “outra pessoa” deve entender-se qualquer pessoa diferente do agente do crime.
Isto posto, impõe-se, desde logo, recordar que, no âmbito do inquérito, foram produzidos os seguintes meios de prova: pericial - vide fls. 10 a 12; testemunhal - vide fls. 17 a 18 e 20 a 25 verso; e por declarações dos arguidos - vide fls. 28, 33 e 44 a 45.
No que concerne à prova testemunhal, há que destacar que foram inquiridos a ora assistente, que à data da sua inquirição ainda não o era; E…………………, F………………., G………………. e H…………………..
Já no âmbito da instrução, foram produzidos os seguintes meios de prova: testemunhal – vide fls.133 a 138 e 189 a 192,e documental - vide fls. 77 a 81 e 247 a 259.
No que respeita à prova testemunhal, há que salientar que foram inquiridos I………………, J………………., L………….., M………………., N…………………, O……………… e P………………….
Ora, da análise, crítica, conjugada e à luz das regras da experiência comum, de todos os meios de prova, que foram produzidos, em sede de inquérito e de instrução, entendo que existem indícios suficientes da prática, pelo arguido, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art° 143°, n° 1, do C.P..
Efectivamente, atentos os elementos de prova recolhidos, considero que se encontra suficientemente indiciado:
- que, entre os dias 1 a 3, de Julho de 2005, o grupo da catequese da paróquia de ………….., composto por catequistas e por catequizandos, efectuou um acampamento, no Q…………….., área da comarca de Castro Daire;
- que, antes do início do acampamento, foram dadas instruções, aos catequizandos, no sentido de ser proibida a entrada dos membros do sexo feminino do grupo nas tendas de campismo dos membros do sexo masculino e vice-versa;
- que o arguido era o catequista de E…………………;
- que E…………… nasceu em 12 de Setembro de 1991;
- que, em hora, em concreto não apurada, da noite de 1 para 2, de Julho de 2005, o arguido desferiu duas bofetadas na face direita de E…………….., por motivos que se prenderam com a entrada do mesmo na tenda de campismo de alguns membros do sexo feminino do grupo;
- que, como consequência, directa e necessária, da primeira bofetada, E……………… ficou zonzo;
- que, como consequência, directa e necessária, da segunda bofetada, E………………. caiu no chão;
- que, como consequências, directas e necessárias, das duas bofetadas, E…………. sangrou das gengivas; ficou com os lábios e com a face direita, inchados; sentiu dificuldades em mastigar os alimentos, durante cerca de 15 dias; e precisou de m acompanhamento psicológico;
- que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo estar, com a sua conduta, a molestar o corpo e a saúde de E……………. e tendo esse mesmo intuito; e
- que o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Isto posto, cumpre realçar que, ao contrário do defendido, pela ilustre magistrada do Ministério Público, no âmbito do despacho de arquivamento do inquérito, sou da opinião que a ilicitude da conduta do arguido, que resulta como suficientemente indiciada, não se encontra excluída.
Dispõe o art° 31°, n° 1, do C.P., que: “O facto não é punível quando a sua ilicitude foi excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.”.
Atento o teor do normativo legal acabado de reproduzir, é possível afirmar que “as causas de justificação devem deduzir-se do ordenamento jurídico no seu conjunto, pelo que verificando-se uma causa de justificação segundo outros ramos do direito, ela terá relevância no direito criminal, sem embargo de certas proposições permissivas poderem estar vinculadas a determinados tipos e, então, não ser lícita a sua aplicação a tipos diferentes. É que sendo o direito penal a ultima ratio da política social, dado o gravame das suas reacções, nunca uma conduta poderá ser ilícita para o direito penal se for lícita à face de qualquer ramo do direito.” (“Código Penal Anotado”, 1° Volume, Parte Geral, Manuel de Oliveira Leal Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Editora Rei dos Livros, 3 Edição, 2002, págs. 494 e 495).
Quanto ao art° 31°, n° 2, do C.P., o mesmo estatui que: “Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: a) Em legítima defesa; b) No exercício de um direito; c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado.”.
Tal normativo legal faz uma enumeração de algumas das causas de justificação admissíveis.
A propósito das causas de justificação, que se podem considerar abrangidas pelo art° 310, nº 1, do C.P., importa destacar o referido por Paula Ribeiro de Faria (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo 1, 1999, Coimbra Editora, págs. 214 a 16): “É por demais discutida a natureza do direito de castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando. Independentemente do ponto de vista justificador a que se faça apelo (direito de correcção, adequação social), restam controvertidos não só a sua admissibilidade, como os seus limites. ...Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estariam em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal (...). Já relativamente a crianças estranhas este poder estaria por regra excluído, se bem que em certos casos (baby-sitter, por exemplo) se possa aceitar a transmissibilidade do seu exercício dentro de determinados limites (...) uma vez que o direito de correcção resulta da relação familiar entre pais e filhos, a transferência desse direito apenas poderá ocorrer relativamente a pessoas próximas da criança ou que gozem da confiança pessoal dos encarre­gados de educação De uma forma geral são sempre de considerar ilegítimos castigos torturantes, lesivos da saúde ou da dignidade da pessoa, de natureza preventivo-geral (...), perigosos, ou que não tenham em conta a gravidade e o tipo de motivo que lhes deram causa, bem como a constituição física e a idade do atingido (...). Parece ser de afastar, no momento actual, qualquer direito de castigo corporal por parte dos professores, já que não se pode considerar coberto pela tarefa pedagógica e de ensino. Tradicionalmente esse direito existia, e era reconhecido, à sombra de uma espécie de direito consuetudinário (...), tendo progressivamente vindo a reduzir-se até não se poder mais admiti-lo como direito próprio e autónomo face ao direito dos próprios encarregados de educação.”.
No que diz respeito ao chamado “direito de castigo corporal”, cumpre, desde logo, atentar no art° 69°, n° 1, da C.R.P., segundo o qual: “As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.”.
Por força do normativo constitucional acabado de reproduzir, as crianças têm, actualmente, que ser consideradas como autênticos sujeitos de direitos.
Mais importa considerar o art° 19°, n° 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança - assinada em Nova Iorque, em 26/01/1990, e aprovada e ratificada, por Portugal -, o qual estabelece que: “Os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.”.
Em face de todo o exposto, considero não existir um qualquer “direito de castigo corporal”, por parte dos catequistas, que possa ser invocado, no caso em apreço, como causa de justificação da conduta do arguido, que resulta como suficientemente indiciada.
Assim, pronuncio, nos termos do art. 308°, n° 1, do C.P.P., para julgamento, em processo comum e com intervenção do tribunal singular:
B……………, casado, engenheiro civil, filho de R……………. e de S……………., natural da freguesia de ……………., concelho do Porto, nascido em 16/06/1965 e residente na Rua ………….., n°….., ……, Vila Nova de Gaia;
Porquanto indiciam suficientemente os autos que:
1º - Entre os dias 1 a 3, de Julho de 2005, o grupo da catequese da paróquia de …….. composto por catequistas e por catequizandos, efectuou um acampamento, no Q…………………, área da comarca de Castro Daire.
2°- Antes do início do acampamento, foram dadas instruções, aos catequizandos, no sentido de ser proibida a entrada dos membros do sexo feminino do grupo nas tendas de campismo dos membros do sexo masculino e vice-versa;
3°- O arguido era o catequista de E………………..
4°- E…………….. nasceu em 12 de Setembro de 1991.
5°- Em hora, em concreto, não apurada, da noite de 1 para 2, de Julho de 2005, o arguido desferiu duas bofetadas na face direita de E………….., por motivos que se prenderam com a entrada do mesmo na tenda de campismo de alguns membros do sexo feminino do grupo.
6°- Como consequência, directa e necessária, da primeira bofetada, E…………………. ficou zonzo.
7°- Como consequência, directa e necessária, da segunda bofetada, E………………. caiu no chão.
8°- Como consequências, directas e necessárias, das duas bofetadas, E……………… sangrou das gengivas; ficou com os lábios e com a face direita, inchados; sentiu dificuldades em mastigar os alimentos, durante cerca de 15 dias; e precisou de m acompanhamento psicológico.
9°- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo estar, com a sua conduta, a molestar o corpo e a saúde de E……………….. e tendo esse mesmo intuito.
10°- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, incorreu o arguido na prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo art° 143°, n° 1, do C.P..
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Questões a decidir:
Neste recurso do arguido, relativo à pronúncia, importa considerar se o requerimento de abertura da instrução carece da narração do elemento subjectivo da infracção, se nos autos existem elementos probatórios suficientes para pronunciar o arguido pelo crime do Art. 143º, nº 1, do Código Penal e se, em caso afirmativo, se verifica alguma causa de exclusão da ilicitude [Art. 31º, nº 2, alínea b), do Código Penal].
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Decidindo:
A primeira apreciação a fazer prende-se com a existência ou inexistência, no requerimento de abertura de instrução da assistente, do chamado elemento subjectivo da infracção pela qual o arguido acabou por ser pronunciado.
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A instrução destina-se, conforme as situações: a) a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação; b) a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (Art. 286º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Sobre o tema, escreveu Mouraz Lopes que a instrução surge, assim, essencialmente como função garantística, fundamentalmente perante uma autoridade autónoma (o Ministério Público) que detém o poder de acusar ou arquivar, obedecendo naturalmente a critérios de legalidade, mas que não deixa de estar, diríamos de uma maneira provocatória, no lado acusatório, em conflito com o cidadão (Garantia Judiciária no Processo Penal, do Juiz e da Instrução, Coimbra Editora, pág. 69).
Como fase jurisdicional (facultativa), a instrução compreende a prática dos actos necessários, que permitirão ao juiz de instrução proferir a decisão final de submeter ou não a causa a julgamento: isto é, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, de modo a fundar a sua convicção, para pronunciar ou não pronunciar o arguido, mas “tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o nº 2 do Art. 287º do Código de Processo Penal”: Art. 288º, nº 4 do mesmo código.
Porém, importa recordar que essa liberdade de investigação, reafirmada na primeira parte do nº 1 do Art. 289º, do mesmo diploma legal, não é absoluta, estando antes limitada pelo objecto da acusação (princípio da vinculação temática).
Ao vedar os poderes de cognição do juiz a outros factos, que não os contidos na acusação (ou no requerimento de instrução), está a garantir-se ao arguido que só deles tenha de defender-se e que por outros não poderá ser condenado (no processo em curso). A relevância do conceito, em sede de acusação, tem pois uma dimensão de garantia dos direitos e da posição do arguido” (Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e a Sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, pág. 54).
Mutatis mutandis, a actividade processual desenvolvida na instrução só poderá ser materialmente judicial e não policial ou de averiguações: apud Ac. da R.L. de 12.07.1995, Col. Jur., XX, 4º, pág. 140.
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O Art. 287º, nº 2, do Código de Processo Penal prevê que o requerimento (de abertura da instrução) não está sujeito a formalidades especiais; porém, impõe que o mesmo contenha as razões – de facto e de direito – de discordância relativamente à não acusação (no caso concreto, único que nos interessa e preocupa).
Mais acrescenta a norma em causa que tal peça deve conter os factos que se espera provar, sendo aplicável ao requerimento do assistente o disposto no Art. 283º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo diploma; ainda, como conforto e confirmação desta tese, o Art. 303º, nº 1.
Reportando-nos a esta última norma, concluímos que o requerimento em causa deve assim ser idêntico, semelhante a uma acusação: nos termos da referida alínea b), deve o mesmo conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção; ou seja, deve tal requerimento obedecer à praxe de uma acusação, mediante a descrição dos factos integradores de um crime e a indicação da correspondente disposição legal que o tipifica: Ac. da R.L., de 3.11.2001, Col. Jur., 2001, II, pág. 131.
Na mesma sequência, no seu nº 3 estão previstas as situações em que o requerimento pode ser rejeitado: quando é extemporâneo, quando dirigido a juiz incompetente ou por inadmissibilidade legal.
E se assim é, deveremos concluir que a lei impõe limites de ordem substantiva, mas também de carácter adjectivo, exigindo que o requerimento obedeça a uma forma (àquela forma) mais ou menos determinada: trata-se de formular um “pedido” de instrução sob a forma “acusatória”, que contenha todos os factos a investigar, os quais deverão desse modo comportar todos os elementos que hão-de constituir a pronúncia, se a mesma vier a ter lugar.
Deve tal requerimento, pois, respeitar formalmente, descrever e mencionar os elementos objectivos e subjectivos de um determinado crime, que irão permitir a posterior remessa do processo para julgamento, assim se limitando o tema decisório, enquanto vinculador da actividade do juiz de instrução: com efeito, não é a este magistrado que incumbe a procura e formulação do texto que há-de enunciar na sua pronúncia, nem é isso que a lei lhe impõe: apenas lhe cabe investigar se os factos apontados pelo assistente estão indiciados, de modo a pronunciar o arguido pelos mesmos, imputando-lhe então o crime que estes preenchem.
Não respeitando tais ditames, o requerimento seria nulo, o que obrigaria à sua rejeição pelo juiz de instrução (e exactamente por inadmissibilidade legal).
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Diremos, em primeira água, que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente e constante de folhas 121 e seguintes destes autos, é prolixo e extenso, pecando por excesso de pormenores, de esclarecimentos e de conclusões.
Só fazendo um exercício hábil de exegese e poder de síntese se permite pesquisar e isolar, da complexidade daquele requerimento, os factos relevantes; mas, como diziam os latinos, quod abundat, non nocet.
Com efeito, o requerimento em causa, apesar dos excessos, contem todos os elementos necessários à prolação de uma pronúncia, incluindo o chamado elemento subjectivo da infracção: como é claro, não se pode aqui exigir uma fórmula única, estandardizada, para incluir tais factos, quer na acusação, quer na instrução, quer na pronúncia: bastará indiciar que o arguido, ao agir como descrito, o fez de forma voluntária e sabendo que estava a praticar aqueles factos ilícitos, com aquelas consequências.
Relendo toda a peça processual em questão, não restam dúvidas que tais elementos (subjectivos, porque atribuídos a alguém em concreto) ali estão presentes: resumindo o que consta dos números 9, 10, 14, 16, 17, 28, 29, 31, 32, 38, 40 (maxime), 43, 48, 62 e 63, sempre será possível dali retirar aqueles conceitos de culpa e de consciência da ilicitude que o arguido alega não existirem na peça.
O senhor Juiz de Instrução, ao referir e incluir tal elemento na pronúncia, mais não fez que – alicerçado naquele factualismo complexo – habilmente resumir a conduta e fixar os factos e a culpa do arguido, para assim levar o mesmo a julgamento pelo crime referido.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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Em relação à pretendidas ausência de indícios do crime:
O Art. 286º, nº 1, do Código de Processo Penal refere que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento; é, assim, um acto jurisdicional.
O Art. 308º, nº 1, do mesmo diploma legal refere que, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Nos termos do disposto no Art. 283º, nº 2, ainda daquele diploma, por força do disposto no seu Art. 308º, nº 2, consideram-se suficientes os indícios, sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Trata-se, tão-só, de fazer uma análise perfunctória de toda a prova existente, produzida antes ou durante aquela fase processual, no sentido de se concluir pela maior ou menor probabilidade de o arguido vir a ser condenado, em julgamento, por aqueles mesmos factos.
Se a probabilidade de o processo terminar em condenação for razoável, o juiz deve pronunciar o arguido: como se sabe, todo o processo tem na sua base uma dúvida e o seu fim é obter uma certeza; mas em sede de instrução, ainda não se exige tal segurança.
Compulsada toda a prova existente nos autos, quer a testemunhal (incluindo a descrição de testemunhas presenciais, colegas da vítima no acampamento), quer a documental (exames médicos e psicológicos), a única atitude possível do juiz de instrução seria a que tomou: pronunciar o arguido; concretamente, existem indícios suficientes (diremos mesmo, fortes indícios) da prática, pelo arguido, dos factos que vieram a ser fixados no despacho de pronúncia.
Pelo que, decididamente, também improcede este fundamento do recurso.
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Resta o argumento final do arguido, dizendo existir uma causa de exclusão de ilicitude da sua conduta.
Assim, alega que, a ter havido agressão, ele teria agido no exercício de um direito, nos termos do disposto no Art. 31º, nº 2, alínea b), do Código Penal.
Aquele Art. 31º do Código Penal refere que o facto não é punível, quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade: isto é, um facto não é ilícito, quando a sua ilicitude é afastada por qualquer norma jurídica, e não apenas de âmbito penal e criminal.
Ou seja, se um agente pratica um facto que reflecte o exercício de um direito, seja ele de que natureza for, esse facto não é ilícito.
Sobre o chamado direito de correcção, leia-se Figueiredo Dias (Direito penal, Parte Geral, Tomo 1, pág. 467): um direito de correcção, como justificação do facto, coloca-se hoje praticamente apenas – e cada vez de forma mais restritiva – relativamente aos pais e aos tutores (Arts. 1878º, 1885º, nº 1 e 1935º, todos do Código Civil). O círculo de factos relativamente aos quais o exercício de um tal direito pode actuar tem que ver predominantemente - e para alguns até exclusivamente – com as ofensas à integridade física, os chamados “castigos corporais”, desde que se trate de factos típicos.
É desde logo relevante que, para este autor, tal direito apenas existe para os pais e tutores (estes últimos, dentro do conceito legal das suas atribuições), por aí se ficando a causa de justificação do facto (que nem sequer é permitido aos professores).
E acrescenta o autor (pág. 468) que tal justificação só ocorre dentro de três condições: que o agente actue com finalidade educativa e não para dar voz à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou ainda menos pelo prazer de infligir sofrimento ao dependente; que o castigo seja criterioso e portanto proporcional, no sentido de que deve ser o mais leve possível; e que ele seja sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou atentatória da dignidade do menor.
Finalmente, Figueiredo Dias afasta, decidida e sintomaticamente, o poder de castigo in loco parentium, ou seja, o direito de correcção relativo a filhos alheios (ibidem).
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Pretende o arguido que, enquanto catequista e encarregado do acampamento que era frequentado pelo menor, lhe cabia tal poder-dever de correcção, sendo-lhe lícito exercer castigos corporais sobre o mesmo, por ter agido no âmbito da guarda de todos os menores que compunham aquele acampamento da catequese.
É desde logo paradoxal que um catequista venha alegar que pode aplicar castigos corporais a alguém pretensamente sob a sua guarda, quando a própria moral e doutrina cristã proíbe qualquer forma de violência.
Aliás, enquanto catequista e responsável pelo acampamento, não recebeu o arguido nenhum mandato (real ou presumido), nenhum consentimento, ou nenhuma procuração que lhe permitissem ou justificassem tais atitudes e actos violentos (especialmente, quando até o próprio poder-dever de correcção dos pais é hoje, justamente, posto em causa e por muitos negado).
Por outro lado, esquece o arguido os princípios e as leis constitucionais e internacionais de defesa dos direitos das crianças, que não devem, em situação alguma, ser sujeitas a violência física ou psicológica – princípios e determinações essas que estão bem patentes e referidos no despacho sob censura: Art. 69º da Constituição e Art. 19º da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Em conclusão, a acção do arguido é ilícita.
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Por todas estas razões, não agiu o arguido no exercício de um direito, pelo que não estão verificados os requisitos de qualquer causa de exclusão da ilicitude, nomeadamente os descritos no citado Art. 31º do Código Penal.
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Decisão.
Pelo exposto, acordam em conferência nesta Relação em julgar o recurso do arguido totalmente improcedente, confirmando assim o despacho recorrido.
O arguido pagará 4 Ucs de taxa de Justiça.
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Porto, 07 de Novembro de 2007
António Luís T. Cravo Roxo
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Isabel Celeste Alves Pais Martins