Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
552/06.1TAPGR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: SEGREDO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RP20110223552/06.1TAPGR.P1
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O segredo profissional de advogado é de interesse público, não sendo por isso suficiente para o afastar a vontade do cliente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 552/06.1TAPGR.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, foram julgados em processo comum, e perante tribunal singular, os arguidos B… e C…, devidamente identificados nos autos, tendo a final sido proferida sentença que decidiu:
“a) Absolver os arguidos da prática de um crime de ameaça grave, p. e p. pelos artigos 154º e 155º, 1 al. a) do C. Penal;
Condenar os arguidos B… e C…, pela prática, em co-autoria material, de um crime de coacção, p. e p. pelo art. 154º do C. Penal e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º,1 do C. Penal, nas seguintes penas:
- O arguido B…, na pena de 150 dias de multa, à razão diária de 7 (sete) euros, pela prática do crime de coacção e na pena de 75 dias de multa, à razão diária de 7 euros, pela prática de um crime de injúria.
- Em cúmulo jurídico, condena-se o arguido B… na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à razão diária de 7 (sete) euros, na multa global de 1400 euros.
- O arguido C… na pena de 140 dias de multa, à razão diária de 5 (cinco) euros, pela prática do crime de coacção, e na pena de 70 dias de multa, à razão diária de 5 euros, pela prática de um crime de injúria.
- Em cúmulo jurídico, condena-se o arguido C… na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de 5 (cinco) euros, na multa global de 900 euros.
Foi ainda julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra os demandados B… e C…, condenando-os a pagarem ao demandante D…, solidariamente, a quantia de €700,00 (setecentos euros).

Inconformados com tal condenação, os arguidos recorreram para esta Relação, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
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O assistente D…, inconformado com a absolvição dos arguidos da prática de um crime de ameaça grave e com a medida da pena aplicada pelo crime de injúria, recorreu para esta Relação, formulando as conclusões seguintes conclusões (transcrição):
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O assistente respondeu ainda à motivação do recurso interposto pelos arguidos, pugnando pela sua improcedência.

O MP na 1ª instância respondeu a ambos os recursos, entendendo que os mesmos não merecem provimento.

Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.

Cumprido o disposto no art. 417º, 2 do CPP, os arguidos responderam, pugnando pela sua absolvição e sublinhando que na sentença foi dado como provado que os factos ocorreram em 30 de Maio de 2006, sendo certo que tinham sido acusados pela prática dos factos, em 30 de Agosto de 2006.

Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência, para julgamento.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto
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2.2. Matéria de direito
A sentença proferida foi posta em crise pelo recurso de ambos os arguidos, descontentes com a respectiva condenação e, ainda, pelo recurso do assistente, descontente com a absolvição dos arguidos do crime de ameaça grave e com a medida das penas aplicadas.
Vejamos cada um dos recursos, começando por apreciar o recurso interposto pelos arguidos, pondo em causa a decisão proferida sobre matéria de facto e que, a proceder, condiciona o recurso do assistente.

2.2.1. Recurso dos arguidos.
Os arguidos insurgem-se, essencialmente, contra a convicção do Tribunal recorrido, por ter dado crédito ao depoimento do assistente. Em seu entender, tal depoimento não merecia a credibilidade que lhe foi atribuída, principalmente quando confrontado com o depoimento da testemunha Dr. E…. Insurgem-se ainda contra o entendimento de que o depoimento desta testemunha (E…) não podia ser valorado, por estar a coberto do segredo profissional. Finalmente, defendem que, em todo o caso, a sua conduta ocorreu a coberto da legítima defesa.

(i) Correcção de erro de escrita
No corpo da sua motivação e na resposta ao parecer da Ex.ma Procuradora Geral Adjunta, os arguidos referem uma divergência entre a acusação e a sentença, no que respeita à data da ocorrência dos factos, que efectivamente existe.

Vejamos então.

De acordo com a acusação, os factos ocorreram em 30 de Agosto de 2006 e, na sentença, foi dado como provado que ocorreram em 30 de Maio de 2006.

Não existe qualquer referência, no texto da sentença, sobre a alteração dos factos da acusação, nem qualquer referência, nos depoimentos das testemunhas ouvidas, no sentido de ter havido uma rectificação da data da ocorrência dos factos.
Trata-se, portanto, de um lapso que em nada altera o sentido da decisão e que, por isso, pode ser corrigido neste Tribunal – art. 380º, 2 do CPP.
Deste modo, deve ser rectificado o erro constante do ponto 7 da matéria de facto, que ficará a ter a seguinte redacção:

“No dia 30 de Agosto de 2006, quando o ofendido D…, novamente acompanhado de seu mandatário, referido em 5., se dirigiu ao dito seu prédio, o arguido C… começou aos empurrões ao ofendido, enquanto o arguido B… empunhava na direcção do ofendido um alicate, disseram-lhe: “põe-te lá fora, seu gatuno, seu ladrãozeco, se voltas a por aqui os pés, estoiramos-te os miolos”, o que fizeram de comum acordo e em conjugação de esforços.”

(ii) Impugnação da matéria de facto
Em seu entender, do depoimento do assistente resulta claro e inequívoco que a deslocação do ofendido e seu mandatário, a ter existido, foi ao prédio do B… e não ao do assistente (conclusão e), com o intuito de pedir ao B… uma passagem para a sua cave, e não com o intuito de tomar posse do seu prédio (conclusão f); no entanto, do depoimento da testemunha E… (mandatário do assistente, à data dos factos), resulta que eles se deslocaram ao local para tentar vender o prédio do assistente ao B… (conclusão g)). Do confronto de tais depoimentos, resulta que o local onde se encontrava o assistente, quando tudo se passou, também não é coincidente (conclusão h). Do depoimento do assistente resulta que o mesmo visitou o B… na propriedade deste e, por isso, os factos, a terem existido, ocorreram numa situação de legítima defesa (conclusões (i) a l)). Não podia assim o depoimento do assistente ter sido considerado credível (conclusão m), nem podia o tribunal ter deixado de considerar o depoimento do Dr. E…, o qual arrasou o depoimento do assistente (conclusão n). Face às contradições de tais depoimentos, os arguidos deveriam ter beneficiado do principio in dubio pro reo e, nessa medida, ser absolvidos dos crimes por que foram condenados (conclusões o) a q)).

Apreciaremos, antes de mais, a questão do segredo profissional, com base no qual o Tribunal “a quo” não considerou o depoimento do Dr. E…, mandatário do assistente à data dos factos (cfr. motivação da decisão de facto, 387/9), pois da solução encontrada resultará a possibilidade de confrontarmos (ou não) o seu depoimento com o do assistente.

(a) Segredo profissional
De acordo com as conclusões formuladas na motivação do recurso (acima transcritas), os arguidos insurgem-se contra a convicção do tribunal, por entenderem que o depoimento do assistente não é credível. Para tanto, alegam além do mais que, não poderia ter-se negado relevância ao depoimento da testemunha do assistente, Dr. E…, pois o mesmo “arrasava” a versão do assistente.

A decisão recorrida entendeu que o depoimento da referida testemunha não podia ser atendido, por ser advogado do assistente e, por isso, estar obrigado a guardar segredo profissional, nos termos do artigo 87º do EOA (Lei 15/2005, de 26 de Janeiro). Concluiu assim a sentença que o depoimento desta testemunha só poderia ter sido valorado “…se tivesse sido obtida a competente autorização da respectiva entidade reguladora”.

Os arguidos alegam no entanto que, sendo o advogado indicado como testemunha pelo próprio assistente, tal significa que dispensou o segredo profissional e, portanto, o seu depoimento deveria ter sido valorado.

Vejamos a questão.

Nos termos do art. 87º, 5, da Lei 15/2005, de 16/01, “Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”. Ressalvam-se “os factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento” – n.º 4 do mesmo artigo 87º.

No caso em apreço, não há dúvida que os factos sobre que depôs o advogado estavam a coberto do segredo profissional e também é certo que não foi pedida prévia autorização aos órgãos competentes da Ordem dos Advogados.

Os arguidos alegam que pelo facto de o assistente ter indicado o advogado como sua testemunha deve ser visto como uma dispensa do segredo profissional, invocando a seu favor um acórdão da Relação do Porto, de 19-09-91.

Contudo, o entendimento dominante sobre a natureza jurídica do segredo profissional do advogado é a de se trata de um segredo imposto por razões de ordem pública e, portanto, não pode ser dispensado pela parte.

“Trata-se de um manifesto interesse público, directamente ligado à função de Advogado como servidor da Justiça. Ao reconhecer a honra, dignidade e eminente função social da Advocacia (cfr., designadamente, os arts. 3º, 22º, 76º e 78º do E.O.A), a lei reconhece, do mesmo modo, a natureza pública da profissão. Daí que, por conseguinte, tal dever não possa ser, afastável por “vontade ou autorização do cliente”; a desvinculação depende do preenchimento dos pressupostos do art.º 81º, n.º 4 do E.O.A.. Nesse sentido, o Acórdão do Conselho Geral de 3 de Junho de 1965, in R.O.A., 25, 274: “O segredo profissional tem carácter social ou de ordem pública e não natureza contratual: para a sua desvinculação não basta a vontade ou autorização do cliente” – cfr. MARIA CARLOS, O segredo profissional do advogado, Setembro 2004, pág.5.

Neste mesmo sentido decidiu o Acórdão da Relação de Coimbra, de 18-02-2009, proferido no processo 436/08.9YRCBR:

“O dever de sigilo dos advogados tem subjacentes razões de natureza pública, porquanto a rigorosa tutela a que se acha submetido tem por base um interesse social e não o interesse dos profissionais que recebem confidências, nem o interesse daqueles que revelam as suas confidências, correspondendo a sua preservação ainda a uma exigência de protecção da privacidade do defensor, dos seus demais clientes, e por via disso, da própria liberdade do exercício da profissão”

Também neste sentido podemos ver o Parecer n.º 110/566, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, citado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Fevereiro de 2000, publicado in CJ/STJ, tomo I, pág. 85.

“O exercício de certas profissões, como o funcionamento de determinados serviços, exige ou pressupõe, pela própria natureza das necessidades que tais profissões ou serviços visam satisfazer, que os indivíduos que a eles tenham de recorrer revelem factos que interessam à esfera íntima da sua personalidade, quer física, quer jurídica. Quando esses serviços ou profissões são de fundamental importância colectiva, porque virtualmente todos os cidadãos carecem de os utilizar, é intuitivo que a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu funcionamento ou exercício constitui, como condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades, um alto interesse público”.

Note-se finalmente que a lei não prevê a dispensa do segredo profissional por parte do cliente, nem mesmo que essa dispensa se possa presumir, pelo simples facto de o advogado ter sido indicado como testemunha – como acontece, por exemplo, com o sigilo bancário - cfr art. 79,1, do DL 298/92, de 31/12, segundo o qual “os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida á instituição”.

Do exposto resulta que o Tribunal recorrido decidiu bem, ao não ter valorado (“considerado”) o depoimento do Dr. E…, uma vez que tal depoimento versou sobre factos abrangidos pelo segredo profissional e não tinha sido obtida a necessária dispensa (autorização), nos termos legalmente previstos Na verdade, nos termos do artigo 87º, 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei 15/2005, de 16/1), tal depoimento não poderia fazer prova em juízo.

Impõe-se assim apreciar a validade da convicção do julgador, sem dar qualquer relevância probatória ao depoimento da testemunha Dr. E….

(b) Convicção do Tribunal
O Tribunal entendeu que o depoimento do assistente era credível, sublinhando: “Este (ofendido) relatou os factos de forma que se nos afigurou credível, por ser simples, detalhada, coerente e sem contradições. De resto, do seu próprio depoimento resultou que a ameaça que sentiu foi na sua integridade física e não na sua vida, razão pela qual esse facto se deu como não provado. Desta forma, não vislumbramos razões para não dar credibilidade às suas declarações, sendo certo que a versão dos factos apresentada pelos arguidos se limitou a pura negação e a misturar esses factos com outros sem qualquer relevo e que têm a ver com acções cíveis tudo conjugado com altercadas e despropositadas menções a circunstâncias que nada têm a ver com os factos (mas que servem naturalmente, para aquilatar da respectiva personalidade)” – fls. 387.

Os arguidos insurgem-se contra este entendimento, mas, como vamos ver, sem razão.
A divergência quanto à data da ocorrência dos factos (referida a fls. 421) foi já esclarecida e feita a devida rectificação.

No que diz respeito à credibilidade do depoimento do assistente, os arguidos não apontam contradições internas desse depoimento, mas sim e fundamentalmente a divergência entre este depoimento e o da testemunha Dr. E….
Como acima vimos, este depoimento não podia ter sido valorado, pelo que essas contradições são irrelevantes.
Relativamente ao conteúdo do depoimento do assistente, alegam os arguidos alguns factos genéricos que não recortam com suficiente precisão, para os podermos analisar com mais pormenor. É o caso da alegação de que o depoimento foi demasiado complexo, confuso, incoerente e com inúmeras contradições (fls. 425, ponto 34).

Outras afirmações dos arguidos são pouco exactas. É o caso da alegação de que “o assistente, quando alcançava as conclusões a extrair das suas afirmações, quase sempre contra os seus interesses, as modificava e/ou rectificava” (fls. 425, ponto 35).
Tal não é exacto, porquanto é certo que o assistente admitiu – contra a própria tese da acusação e favoravelmente aos arguidos – que não receou pela sua vida, mas apenas pela sua integridade física.

Por outro lado, quando a análise é mais concreta e precisa, verificamos que o conteúdo do depoimento do assistente se mostra de acordo com os factos provados. Referem os arguidos (a fls. 422), depois de transcrever alguns excertos do depoimento do assistente:
“(…)
só se pode concluir que o assistente, quando foi ter com os arguidos, utilizou o terreno destes e efectuou tal deslocação não para visitar o seu prédio ou para pedir aos arguidos para saírem do seu prédio, mas sim para pedir ao arguido B… uma passagem, pelo terreno deste, para a sua cave.
(…)”.

Ora, se bem atentarmos na matéria de facto provada, não está dado como assente que os factos ocorreram no prédio adquirido pelo assistente. No ponto 7 deu-se como provado que os factos ocorreram quando o ofendido “se dirigiu ao dito seu prédio”. E, no ponto 8, deu-se como provado que o ofendido “já não entrou no seu prédio urbano”.
Não tem pois qualquer razão de ser a argumentação dos arguidos, pois o depoimento do assistente e as ilações que dele pretendem retirar são perfeitamente compatíveis com os factos, tal como foram dados como provados.

Assim, e após análise do conteúdo do depoimento do assistente, verifica-se que não se impõe decisão diversa da recorrida. Na verdade, tendo a prova sido obtida em audiência de discussão e julgamento, perante a imediação e a oralidade e sujeita ao contraditório, a impugnação da convicção do julgador sobre a credibilidade de um depoimento deve ser feita através de elementos de onde resulte, com toda a clareza, a impossibilidade ou a manifesta falta de plausibilidade dessa convicção - cfr, neste sentido, entre muitos outros aí citados, os Acórdãos do TC 198/2004, DR II Série, 2/6/2004; Acórdão desta Relação de 10-12-2008, recurso 0814391; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/2/05, proc. n.º 04P4324 e Acórdão da Relação de Guimarães de 20/3/06, processo nº 245/06-1.

No presente caso, é manifesta a possibilidade e plausibilidade do depoimento do assistente, perfeitamente enquadrado na sequência dos acontecimentos descritos na matéria de facto: foi reconhecido ao ofendido um crédito laboral sobre os arguidos; o assistente adquiriu um prédio pertença dos arguidos, em execução judicial; esse prédio foi-lhe entregue judicialmente; o ofendido pôs cadeados no prédio; os arguidos cortaram os cadeados e continuaram a usar o prédio; os factos relativos aos crimes por que os arguidos foram condenados ocorreram quando o ofendido se dirigia ao prédio que adquiriu.
O quadro factual e o anterior comportamento dos arguidos mostram que a versão do ofendido é possível e plausível. As declarações ocorreram sob contraditório e a versão dos arguidos evidenciou (como sublinhou a sentença recorrida)“ (…) altercadas e despropositadas menções a circunstâncias que nada têm a ver com os factos (mas que servem, naturalmente, par aquilatar da respectiva personalidade)”.
Podemos assim concluir com toda a segurança que a convicção do julgador, relativamente a credibilidade do depoimento do assistente, se mostra adequada e validamente formada.

(iii) Legítima defesa
Os arguidos alegam finalmente que agiram em legitima defesa, pois as expressões foram proferidas quando o ofendido se encontrada no seu (deles) terreno.

A legítima defesa deve ser aferida em função da matéria de facto dada como provada e dela não resulta, de modo algum, que os arguidos tenham agido em legítima defesa.
Vejamos porquê.

Nos termos do art. 32º do Código Penal “Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.

Ora, como é claro, a matéria de facto dada como provada não permite ver no comportamento do assistente (que se dirigia a um prédio por si adquirido) uma “agressão actual e ilícita”.

O que se provou foi que o ofendido, quando se dirigia ao prédio que adquiriu em execução judicial, “o arguido C… começou aos empurrões ao ofendido, enquanto o arguido B… empunhava na direcção do ofendido um alicate disseram-lhe: põe-te lá fora, seu gatuno, seu ladrãozeco, se voltas a por aqui os pés estoiramos-te os miolos” (ponto 7). Provou-se ainda que o ofendido, “receando pela sua integridade física, … já não entrou no prédio urbano, abandonando o local, e nunca mais ali se deslocou…” (ponto 8).

Estes factos ocorreram na sequência do seguinte:
- Os arguidos foram condenados, no Tribunal de Trabalho de Lamego, a pagar ao ofendido diferenças salariais, férias, subsídio de férias e de natal, e indemnização (ponto 1).
- Na execução de sentença, foi adjudicado ao ofendido o imóvel referido no ponto 3 (ponto 2);
- Foi feita a investidura judicial da posse, sendo que o arguido B… se recusou a assinar (ponto 4).
- O ofendido colocou cadeados nos portões (ponto 5).
- Os arguidos cortaram os cadeados e “continuaram a ocupá-lo” (ponto 6).

A descrição da sucessão dos factos, tal como foram provados, é, como facilmente se vê, incompatível com a “intenção de defesa” de qualquer direito ou interesse dos arguidos. Pelo contrário, os factos dados como provados exteriorizam uma grande agressividade, visando amedrontar o ofendido e impedir o acesso deste ao prédio urbano que adquirira, em execução judicial.

O que decorre dos autos é um claro e manifesto desprezo dos arguidos pelos direitos do ofendido (direitos laborais e de propriedade, após a aquisição do prédio) e um agressivo afrontamento das decisões e actos judiciais (corte dos cadeados e uso abusivo do prédio adquirido pelo ofendido).

Invocar a legítima defesa, neste quadro factual, não tem qualquer sentido. Só se compreende tal alegação porque, como se referiu na sentença, os arguidos tiveram uma postura de “pura negação (dos factos) e a misturar factos com outros sem qualquer relevo e que têm a ver com acções cíveis, tudo conjugado com altercadas e despropositadas menções a circunstâncias que nada têm a ver com os factos (mas que servem, naturalmente, par aquilatar da respectiva personalidade)” – fls. 387.

Note-se que também a tese dos arguidos, quanto à intenção do assistente em pretender negociar o acesso à cave do prédio, é manifestamente insuficiente para se poder falar em legítima defesa. Com efeito, mesmo que essa intenção existisse, era uma intenção lícita, pois representava a exteriorização de uma proposta negocial. Não havia assim o menor indício de um comportamento do ofendido que pusesse em perigo o direito de propriedade, ou de acesso à propriedade dos arguidos.

É assim particularmente evidente que, no caso, não se verificam os pressupostos da legítima defesa.

2.2.2. Recurso do assistente
O assistente D… insurge-se contra a sentença, suscitando duas questões de direito: (i) natureza do crime cometido pelos arguidos, e (ii) medida concreta das penas.

Vejamos cada uma das questões suscitadas.

(i) Crime qualificado
Entende o assistente que a ameaça constante da expressão “se voltas a por aqui os pés estoiramos-te os miolos”, “corresponde a uma ameaça com arma de fogo dirigida à cabeça e da sua concretização resultaria necessariamente a morte ou qualquer das consequências previstas no art. 144º do C. Penal.” Daí que o crime cometido pelos arguidos deva ser qualificado como “coacção agravada”, previsto no art. 155º, 1 al. a) do C. Penal, e não coacção simples, previsto no art. 156º do mesmo Código (conclusões 1ª e 2ª).

A nosso ver, o assistente não tem razão.

A ameaça com arma de fogo só existe quando a arma de fogo é o objecto usado para ameaçar, o que não aconteceu neste caso, onde não foi exibida qualquer arma de fogo (mas sim um “alicate”), nem se deu como provado que os arguidos fossem detentores de arma dessa natureza.
Não está assim provado que a ameaça, tal como foi feita, corresponda a uma ameaça com arma de fogo.

Por outro lado, o sentido da expressão “estoiramos-te os miolos”, usado numa situação de confrontação verbal, não significa necessariamente uma ameaça de morte. Tanto assim que, no caso dos autos, nem se deu como provado que o assistente “se tenha sentido ameaçado na sua vida” (fls. 386).

Tendo-se provado (como se referiu) que o assistente apenas se sentiu ameaçado na sua integridade física, o mal ameaçado deve ser enquadrado no tipo de ilícito previsto no art. 143º do C. Penal, punível com pena de prisão até três anos, ou multa (art. 143º do CP).
Deste modo, não se verifica a qualificativa do crime de ameaça, prevista no art. 155º, 1, al. a) do C. Penal, por o mal ameaçado não corresponder à “prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos”.

(ii) Medida das penas
Entende o assistente que o crime previsto no art. 154º do C. Penal (coacção) foi cometido para impedir o cumprimento de decisão judicial e, por isso, deverá ser aplicada aos arguidos pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, sob condição de os arguidos cumprirem o judicialmente decidido (conclusão 3ª). Quanto ao crime de injúria, o mesmo deve ser punido com uma pena próxima do limite máximo, dado o contexto em que ocorreu (conclusão 4ª).

O crime cometido pelos arguidos – artigo 154º do C. Penal – é punido, em abstracto, com pena de prisão até um ano, ou multa até 120 dias.

Nos termos do art. 70º do C. Penal, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Tendo em atenção as finalidades da punição (protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade – art. 40º do CP), não se vislumbram razões especialmente relevantes para afastar a regra da opção pela pena não privativa da liberdade, prevista no art. 70º do C. Penal.

Quanto às penas aplicadas pela prática do crime de injúria, também julgamos que não tem razão de ser a opção por uma pena de multa próxima do limite máximo. O crime de injúria é punido, em abstracto, com pena de prisão até três meses ou multa até 120 dias (art. 181º, 1 do C. Penal)

Os arguidos estão socialmente integrados e são primários.
A gravidade do ilícito é média. Os arguidos, com o seu comportamento, impediram o assistente de usufruir da sua propriedade (ponto 8 da matéria de facto) e, por causa dessa conduta, o assistente sentiu-se profundamente ofendido na sua honra e dignidade, psicologicamente arrasado, humilhado, triste e desgostoso, sobretudo porque tais factos foram o culminar do referido processo judicial, que lhe reconheceu os seus créditos laborais” (ponto 11 da matéria de facto).

Justificam-se assim penas de multa próximas do seu termo médio, tal como fez a sentença recorrida (75 dias para o arguido B… e 70 dias para o arguido C…).

Nestes termos, o recurso do assistente deve ser julgado improcedente.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em negar provimento aos recursos dos arguidos e do assistente.
Custas pelo assistente, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
Custas pelos arguidos, fixando a taxa de justiça em 3 UC.

Porto, 23/02/2011
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando