Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0714613
Nº Convencional: JTRP00040743
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
SEQUESTRO
Nº do Documento: RP200711070714613
Data do Acordão: 11/07/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 503 - FLS 86.
Área Temática: .
Sumário: I - O depoimento que resultar do que se ouviu dizer a uma pessoa determinada não serve unicamente para levar à produção de um meio de prova directo, podendo valer como meio de prova, por si, bastando que se verifique a morte, anomalia psíquica superveniente ou a impossibilidade de essa pessoa ser encontrada.
II - Se o arguido foi acusado da prática de um crime de violação e de um crime de sequestro e houve desistência da queixa, devidamente homologada, quanto ao crime de violação, não podem os actos que preenchem o tipo da violação servir para a qualificação do crime de sequestro, ou seja, afastada a possibilidade de perseguição criminal pelo crime de violação, esta não renasce para efeitos de qualificação do crime de sequestro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No .º juízo criminal do Tribunal Judicial da comarca de Santa Maria da Feira, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi o arguido B………. submetido a julgamento e condenado, pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo artº 158º, nºs 1 e 2, alínea b), do CP, na pena de 3 anos e 9 meses de prisão.

O arguido interpôs recurso do acórdão que assim decidiu, sustentando, em síntese, na sua motivação:
-Foram considerados provados factos com base em depoimento indirecto, fora das condições previstas no artº 129º, nº 1, do CPP.
-A ofendida, única testemunha presencial dos factos, não foi ouvida directamente na audiência, tendo aí apenas sido lidas as declarações que prestou no inquérito.
-Valorando essas declarações, o tribunal recorrido estribou a sua convicção em prova legalmente inadmissível.
-Não foi produzida outra prova que permita dar como provados os factos relativos ao sequestro.
-O auto de reconhecimento de fls. 290 e 291, tendo tido lugar no 1º julgamento, ficou invalidado com a anulação deste.
-As testemunhas com depoimentos virtualmente relevantes forneceram apenas dados sobre os elementos objectivos do crime de violação.
-Foi violado o princípio in dubio pro reo.
-O crime de sequestro sempre seria consumido pelo de violação.
-A considerar-se verificado o crime de sequestro, só pode ser o do nº 1 do artº 158º do CP.
-A pena sempre deverá ser reduzida.

O recurso foi admitido.
Respondendo, o MP junto do tribunal de 1ª instância defendeu a improcedência do recurso.
Nesta Relação, o senhor procurador-geral-adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP, veio o arguido reafirmar a valoração pelo tribunal de 1ª instância de prova legalmente inadmissível.
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

Fundamentação:

Matéria de facto:
Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 13 de Abril de 1997, cerca da 1 hora e 30 minutos, na rua ………., o arguido, que conduzia um veículo ligeiro de passageiros, marca Ford, modelo ………., de cor branca e que se encontrava parado do lado direito da via, sentido ……….-………., meteu-se à estrada, passando a circular entre o veículo conduzido pela ofendida C………. e o veículo conduzido pelo namorado desta, D………., que seguia à frente do veículo da ofendida, tendo estes dois últimos veículos saído momentos antes do “E……….”, em ………. .
2. Volvidos aproximadamente 2 km, a ofendida virou à sua direita em direcção à sua residência, logo seguida do veículo conduzido pelo arguido, e o seu namorado virou à esquerda, também em direcção à sua casa.
3. Pouco depois, o arguido começou a fazer sinais de luzes com a sua viatura, seguindo sempre atrás do veículo conduzido pela ofendida.
4. A ofendida C………., percebendo que estava ser seguida, em vez de seguir em frente, passando pelas piscinas de ………, virou à esquerda, tentando outro caminho alternativo para a sua residência, mas o arguido nunca deixou de circular atrás de si.
5. Já no .………., freguesia de ………., numa estrada secundária que dava acesso à sua casa, mas sem quaisquer habitações, marginada por mato de ambos os lados, e após a ofendida ter tentado fugir do arguido, deslocando-se a um restaurante, denominado “F……….”, que conhecia na Estrada Nacional n.º …, mas que encontrou fechado, e de ter regressado, passando pelo ………., o arguido logrou passar à frente da C………., obstruindo-lhe de imediato a sua hemi-faixa de rodagem.
6. A ofendida imobilizou então a sua viatura atrás do Ford ………. e logo após fechou os vidros e trancou as portas do seu automóvel.
7. O arguido aproximou-se depois do veículo da ofendida e começou a dar nele murros, ao mesmo tempo que gritava: “sai do carro; tu a mim não me enganas; se não abres já a porta eu parto isto tudo”.
8. Com medo que o arguido concretizasse tal propósito, a ofendida abriu parcialmente o vidro da porta do seu lado, circunstância que o arguido de imediato aproveitou, introduzindo o seu braço pela janela e conseguindo puxar da ignição as chaves do carro.
9. De seguida, o arguido foi estacionar a sua viatura e, no regresso, exibindo as chaves de ignição do veículo da ofendida, ordenou-lhe que abrisse a porta e entrasse de novo para o lugar do condutor, sentando-se ele próprio no lugar ao lado do condutor.
10. Conduzindo o seu próprio carro, a ofendida, em obediência à imposição do arguido, retomou a circulação, seguindo no sentido descendente.
11. Após cerca de 800 metros percorridos, a ofendida passou em frente a sua casa, na Rua ………., em ………., aproveitando essa altura para pedir ao arguido que a deixasse ali ficar, pedido que foi negado, sendo que o arguido lhe ordenou que voltassem à variante ………..-………. e até ao seu carro.
12. Já perto da estrada onde se encontrava a viatura do arguido, este ordenou à ofendida que parasse o carro, e poucos momentos depois mandou-a seguir em frente, em direcção à Estrada Nacional, sentido ……….-………., em vez de virarem à esquerda, rumo ao local onde se encontrava o veículo do arguido.
13. De seguida, tomaram a Estrada ………. e posteriormente viraram à direita, no sentido ……….-……….-………. .
14. Chegados à zona industrial ………., mais concretamente, na Rua ………., o arguido passou para o volante e conduziu a ofendida para o caminho de terra muito estreito ali existente e acabou por imobilizar o veículo imediatamente antes de uma curva apertada sem qualquer visibilidade.
15. Nessa altura, o arguido tirou a chave do carro da ignição e, virando-se para a ofendida, disse-lhe «só te trouxe aqui para te comer», começando a ofendida logo que ouviu tal expressão a implorar ao arguido que a deixasse ir embora.
16. Apesar do apelo da ofendida, que esta ia sempre repetindo ao arguido, este começou a puxar a ofendida para junto de si, tentando esta opor-se a tal aproximação, afastando-o com as mãos.
17. Em face de tal resistência por parte da ofendida, o arguido avisou-a então que parasse de resistir pois ia ser pior para ela, e que parasse de falar.
18. A dada altura, o arguido começou a puxar para baixo o fecho lateral das calças compridas que a ofendida trazia vestidas, sendo que a ofendida ainda conseguiu numa primeira vez puxar de novo o fecho para cima, mas logo depois o arguido, já utilizando bastante força, puxou de novo tal fecho de forma a que ficasse aberto.
19. O arguido despiu-se ele próprio da cintura para baixo, tirando as calças compridas e as cuecas, ficando apenas com a camisa vestida.
20. Entretanto, a ofendida começou mais uma vez a implorar ao arguido que a deixasse ir embora, apelo ao qual o arguido foi de novo indiferente, começando a tirar à força as calças e cuecas que a ofendida trazia vestidas.
21. Já também nua da cintura para baixo, a ofendida foi obrigada pelo arguido a passar para o banco de trás do carro, tendo sido empurrada para o efeito pelo arguido.
22. A ofendida acabou por ficar deitada no banco de trás do carro de barriga para cima, colocando-se, por sua vez, o arguido por cima dela.
23. Nessa altura, a ofendida ainda tentou a todo o custo e fazendo o máximo de força evitar a penetração, fechando as pernas, mas o arguido com as suas mãos forçou a ofendida a abrir as pernas, perpetrando efectivamente tal intento.
24. Logo depois, o arguido conseguiu introduzir totalmente o seu pénis no órgão genital da ofendida, sem no entanto existir ejaculação.
25. Entretanto, o arguido ordenou à ofendida que se colocasse de costas para si e de joelhos, ordem que a mesma não cumpriu, sentando-se de imediato no banco.
26. Aí, o arguido puxou a ofendida com força pelo braço e obrigou-a a colocar-se na posição por ele referida.
27. Já se encontrando a ofendida de costas e de joelhos, o arguido colocou-se na mesma posição atrás dela e introduziu parcialmente o seu pénis no ânus da ofendida.
28. A ofendida com tal penetração anal começou a gritar fortemente com dores, tendo nessa altura o arguido puxado a ofendida completamente para si e, ainda nas posições referenciadas, o arguido introduziu de novo o seu pénis na vagina da ofendida, de forma total e com ejaculação.
29. Após a cópula, o arguido sentou-se no banco do carro, vestiu-se e, virando-se para a ofendida, disse-lhe «agora vou marcar-te a cara para provar que estive contigo; estás com medo? Estás com olhos de assustada! Eu só fiz isto para roubar o carro».
30. A ofendida, enquanto o arguido se vestia, vestiu-se também, mas deixou de proferir qualquer palavra, apenas encolhendo os ombros quando o arguido falava consigo.
31. O arguido voltou a conduzir o veículo da ofendida, indo fazer inversão de marcha junto a uma casa existente alguns metros após a curva referenciada em 14.
32. O arguido regressou ao local onde havia deixado o seu próprio veículo automóvel e, ao abandonar a viatura da ofendida, disse-lhe ainda «vê se dás uma boa desculpa aos teus pais, e para a próxima digo-te quem é que me mandou fazer isto».
33. Antes de abandonar o local, sendo já nessa altura 5 horas, a ofendida conseguiu visionar a matrícula do carro conduzido pelo arguido, pelo espelho retrovisor.
34. Já na sua residência, a ofendida tomou de imediato um banho e colocou toda a sua roupa na máquina de lavar roupa e só conseguiu adormecer cerca das 7 horas.
35. A primeira pessoa a quem a ofendida relatou os factos acima referenciados foi a sua amiga G………., tendo esta localizado através do número de matricula, marca, modelo e cor indicados pela C………. o veículo do automóvel do arguido, que a mesma costumava ver quase sempre estacionado numa das Ruas ………. .
36. A ofendida foi submetida no dia 14 de Abril de 1997 no Instituto de Medicina Legal do Porto a exame de sexologia forense, concluindo-se através do mesmo que a ofendida apresentava sinais próprios de desfloramento, cuja data não se pode precisar.
38. O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que, ao obrigar a ofendida, contra a vontade expressa desta, a permanecer na sua própria viatura, fazendo um trajecto diferente daquele que por ela era pretendido e impedindo-a de sair para o exterior da sua própria viatura, a limitava na sua liberdade e capacidade de se movimentar livremente no espaço físico em causa.
39. Sabia ainda o arguido que agia em ambas as condutas de modo proibido e punido por lei.
40. O arguido tem o 4º ano de escolaridade, trabalha em França como carregador de mosaico, auferindo o salário mínimo francês – € 1.200,00.

E foi dado como não provado que (transcrição)
-após o referido em 1) dos factos provados, já na Estrada Nacional e novamente no sentido ……….-………., o arguido entrou num posto de gasolina (bombas de gasolina H……….) aí existente e, de seguida, retomou a estrada passando a circular na retaguarda do veículo conduzido pela C……….;
-por outro lado, a pesquisa feita através de colheitas vaginais efectuadas à ofendida no Hospital ………. não revelaram a presença de espermatozóides, tendo sido tal exame de biologia forense prejudicado pelo facto da ofendida se ter lavado várias vezes antes da realização do exame, inviabilizando dessa forma a mencionada pesquisa.

Conhecendo:
O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto, com os seguintes fundamentos:
-o tribunal recorrido formou a sua convicção com base nas declarações prestadas pela ofendida no inquérito e lidas na audiência, onde não compareceu, e nos depoimentos das testemunhas D………., I………., G………. e K……….;
-porém, foi errada a decisão de permitir a leitura na audiência das declarações da ofendida, por ter sido incorrectamente avaliado o relatório médico de fls. 266;
-e os depoimentos das referidas testemunhas resultaram do que ouviram dizer à ofendida, pelo que, não tendo esta sido chamada a depor, não podem servir como meio de prova, nos termos do artº 129º, nº 1, do CPP, por não se verificar qualquer das situações aí previstas;
-os exames médicos a que foi sujeita a ofendida nada provam acerca do sequestro;
-o reconhecimento de fls. 290-291, que foi efectuado no 1º julgamento, com a anulação deste, perdeu validade;
-não se identificam os factos que se consideraram provados com base no afirmado reconhecimento do recorrente por parte das testemunhas D………. e I………. numa fotografia que lhes teria sido exibida no posto da GNR da ……….;
-não podem, assim, considerar-se provados os factos considerados integradores do crime de sequestro, isto é, os descritos nos nºs 1 a 14.

Vejamos se lhe assiste razão.
Não tendo a ofendida comparecido na audiência de julgamento, por decisão ditada para a acta, em 24/05/2007, procedeu-se aí à leitura das declarações que prestou perante o MP durante o inquérito, por se considerar que, em face do teor do relatório médico de fls. 266-268, se verificava uma das situações previstas no artº 356º, nº 4, do CPP – impossibilidade duradoira.
Dessa decisão, aliás proferida após o recorrente dar o seu acordo àquela leitura, não foi interposto recurso.
Por essa razão, neste processo, tal decisão não pode mais ser posta em causa, tendo-se formado caso julgado sobre a matéria.
E, se a leitura dessas declarações não pode ser questionada, devendo portanto ter-se como correcta, não ocorre, ao contrário do pretendido pelo recorrente, qualquer proibição da sua valoração como prova, à luz do disposto no artº 355º, nº 2.

Segundo o recorrente, os depoimentos das referidas testemunhas D………., I………., G………. e K………., no que respeita aos factos integradores do crime de sequestro, resultaram do que ouviram dizer à ofendida. Mas não se propõe demonstrar o acerto dessa sua alegação a partir da análise da transcrição de tais depoimentos, não identificando as passagens de cada um desses depoimentos de onde resultaria serem indirectos, como teria de fazer se fosse essa a sua linha de argumentação. Invoca antes o texto da motivação da decisão de facto, para onde remete, designadamente para a parte final de fls. 419.
E, na verdade, na motivação da decisão proferida sobre matéria de facto, o tribunal recorrido indica as declarações destas testemunhas como sendo provas que serviram para formar a sua convicção e, em relação às três primeiras, refere que estas em audiência afirmaram que a ofendida no dia seguinte lhes contou o que se passara. E, nas considerações tecidas sobre as declarações prestadas pelas quatro referidas testemunhas, na parte assinalada pelo recorrente – final de fls. 419 –, fala-se em depoimentos indirectos, “porque decorrentes das declarações da vítima”.
Mas, apesar dessa referência a depoimentos indirectos e de se dizer que aquelas três primeiras testemunhas declararam que a ofendida no dia seguinte lhes contou o que se passara, em lado algum se diz que qualquer delas relatou na audiência o que a ofendida lhe contou sobre o que se terá passado entre ela e o arguido.

Assim, em relação ao I………., afirma-se que “a assistente no dia seguinte à ocorrência dos factos lhe contou o que lhe teria sucedido” e que a viu “abatida e a chorar”.
Não se dizendo que esta testemunha descreveu na audiência o que a ofendida lhe contou, parece claro que deste depoimento se teve como relevante para a decisão da matéria de facto apenas a última afirmação – a de que, no dia seguinte, viu a ofendida “abatida e a chorar” –, isto é, uma afirmação sobre um facto constado.
Aqui não há claramente depoimento indirecto.

No que se refere ao D………., diz-se na motivação da decisão de facto, que, repete-se, é a base da argumentação do recorrente: “confirmou os factos referentes ao momento em que circulava na via, à existência do terceiro veículo entre o do depoente e o da sua então namorada, o momento em que cada um virou para sua casa, sendo que no demais só teve conhecimento a partir do que lhe foi contado pela sua namorada no dia imediatamente a seguir. O certo é que, com relevância, declarou que na GNR lhe foi exibida (a si e à assistente) uma fotografia, que a assistente na altura confirmou ser essa a pessoa que tinha praticado os factos e o depoente, recordando-se dessa fotografia, que também lhe foi exibida, declarou sem qualquer dúvida que a mesma era do arguido, reconhecendo-o com toda a certeza”.
Não se dizendo que o D………. relatou na audiência o que a ofendida lhe dissera sobre o ocorrido na noite anterior entre ela e o arguido, conclui-se desta passagem da decisão recorrida que, deste depoimento, se teve em conta para decidir a matéria de facto apenas a afirmação da testemunha de que viu a ofendida, no posto da GNR de ………., reconhecer como sendo do arguido uma fotografia que ali lhe foi mostrada.
Certo que este “reconhecimento” envolve da parte da ofendida uma declaração: a de que foi a pessoa da fotografia a autora dos factos denunciados. Mas o que a testemunha D………. trouxe ao conhecimento do tribunal não foi apenas essa declaração da ofendida; foi essencialmente um facto que presenciou: o acto da ofendida apontar aquela fotografia como sendo da pessoa que sobre ela desenvolveu o comportamento de que fora vítima, isto é, uma determinada atitude da ofendida em relação a um objecto.
De qualquer modo, como veremos, a haver aqui depoimento indirecto relevante, não constituirá prova de valoração proibida.

Relativamente à G………. diz-se: ”enunciou que tinha estado num café com a assistente e o seu namorado, saindo por volta da meia-noite, e só no dia seguinte, ao encontrar-se com a assistente, ter tido conhecimento, por via do que foi descrito pela assistente, dos factos, particularmente do veículo (cor, marca, matrícula) e, porque a depoente conhecia o trajecto, visualizou o veículo em causa logo nesse dia (seguinte), disso dando conhecimento à assistente e acompanhando esta à casa do proprietário do veículo. A depoente declarou que nessa altura foi confrontada com uma fotografia que foi confirmada – identificando – como sendo a pessoa que a seguiu. A depoente declarou que viu essa fotografia e que a pessoa dessa fotografia é o arguido. A depoente também referiu que se deslocou com a assistente à casa onde à frente estava estacionado o veículo [foi a depoente que deu o mote para ir a essa casa, porque sempre via o veículo estacionado à frente dessa casa], tendo sido a casa onde, quer a depoente, quer a GNR, se deslocaram e de onde esta trouxe a fotografia com que se fez nessa altura a identificação do arguido”.
Afirma-se neste ponto da motivação da decisão de facto que a testemunha disse que a ofendida no dia seguinte lhe narrou o que se passara, mas não que a testemunha repetiu na audiência o que ouviu da boca da ofendida. No resto, há o relato feito pela testemunha dos passos dados no dia seguinte, com a identificação do carro e da casa do arguido e deste através de fotografia.
Relativamente ao reconhecimento por parte da assistente do arguido através da fotografia, vale aqui o que se disse a propósito da mesma matéria em relação à testemunha D………. .
E a argumentação ali desenvolvida tem também aplicação no que se refere ao facto de a G………. ter visto a ofendida reconhecer o automóvel que se encontrava estacionado junto à casa de habitação do arguido como sendo o veículo em que se fazia transportar o autor dos factos que denunciou.

Do depoimento da testemunha K………., o que se teve como relevante foi a firmação de que a assistente reconheceu numa fotografia do arguido, que lhe foi mostrada no posto da GNR, a pessoa que praticara os factos em relação aos quais apresentou queixa. Também aqui, como a seguir se verá, o que pode haver de depoimento indirecto não é de valoração proibida.

As testemunhas são inquiridas sobre factos de que tenham “conhecimento directo e que constituam objecto da prova”. É a regra estabelecida no artº 128º, nº 1, do CPP.
Mas é uma regra com excepções.
Assim, dispõe desde logo o artº 129º do CPP:
1 – Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
2 – O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha.
3 – Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos.
Visa esta norma obter a concordância prática dos interesses que aqui devem ser ponderados. Desde logo o direito de defesa do arguido a quem, para esse efeito, deve ser dada a oportunidade de exercer o contraditório, confrontando os depoimentos susceptíveis de o afectarem, e o da realização da justiça, com a descoberta da verdade, não se inutilizando provas que podem produzir-se ainda com respeito por um processo regular e justo, nomeadamente assegurando-se condições que permitam aferir da credibilidade dos depoimentos.
O depoimento que resultar do que se ouviu dizer a uma pessoa determinada não serve unicamente para levar à produção de um meio de prova directo, podendo valer como prova, por si. Basta que se verifique a morte, anomalia psíquica superveniente ou a impossibilidade de essa pessoa ser encontrada.
O mesmo acontecerá se a pessoa determinada a quem se ouviu dizer se recusa a falar ou alega de nada já se lembrar. Com efeito, o que no nº 1 do artº 129º se diz é que o depoimento que resulte do que se ouviu dizer a pessoas determinadas só não pode, nessa parte, servir como meio de prova, se estas não forem chamadas a depor.
Se essas pessoas a quem se ouviu dizer forem chamadas a depor, mas nada disserem, alegando esquecimento ou negando-se a depor, lícita ou ilicitamente, o testemunho de ouvir dizer vale como prova, só por si. O que a lei proíbe é a valoração do depoimento indirecto na falta da chamada a depor da pessoa a quem se ouviu dizer. Cumprido este requisito, desaparece a proibição de valoração do testemunho de ouvir dizer.
E isto será assim porque a mera presença na audiência da pessoa a quem se ouviu dizer, ainda que remetendo-se ao silêncio, dá ao depoimento que resulta do que se lhe ouviu dizer, perante a possibilidade de confronto, uma força que não teria sem essa presença, sendo a apreciação deste depoimento e, em alguns casos, da própria postura de silêncio daquela, feita segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artº 127º do CPP.
É nesta linha que deve aceitar-se a valoração do depoimento que resulta do que se ouviu dizer a um co-arguido que, chamado a depor, recusa fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, entendimento que o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 440/99, de 08/07/1999, publicado em BMJ 489º-5, já considerou não violar o direito de defesa do arguido, ainda que enquadrando a situação na 2ª parte da norma, que, porém, se refere a casos de impossibilidade de comparência na audiência, ou seja, de chamada a depor.
E se a pessoa determinada a quem se ouviu dizer prestar depoimento, valerão como prova não só as suas declarações, mas igualmente as prestadas pela pessoa que “ouviu dizer”, podendo acontecer que, razoavelmente, o juiz se convença que estas e não aquelas são verdadeiras, que umas e outras só em parte são verdadeiras ou que fique na dúvida sobre o que é verdade, tudo se decidindo ao nível da livre apreciação da prova.
No caso, só três dos quatro depoimentos apontados pelo recorrente – os prestados pelas testemunhas D………., G………. e K………. – podem ter partes de ouvir dizer, a parte em que todos dizem ter ouvido a ofendida afirmar que o homem retratado numa fotografia que lhe foi mostrada no posto da GNR da ………. era o autor dos factos denunciados e, em relação ao segundo desses depoimentos, ainda a parte em que a testemunha afirmou ter ouvido dizer à mesma ofendida que o automóvel estacionado em frente da casa onde morava o arguido foi o utilizado pelo autor dos factos.
E não foram essas partes que influíram na decisão de dar como provados os factos integradores do crime de sequestro; o que relevou nesse sentido foram os actos da ofendida presenciados pelas testemunhas: o “reconhecimento” do arguido através de uma fotografia, presenciado pelas três testemunhas, e a identificação do automóvel que se encontrava estacionado junto à casa do arguido como sendo o que fora utilizado pelo autor dos factos, presenciada pela testemunha G………. .
E não pode considerar-se que esse reconhecimento e essa identificação ficaram inquinados pelo facto de terem sido apreendidos pelas testemunhas através de afirmações que ouviram produzir à ofendida, pois a proibição de valoração, como se diz no nº 1 do artº 129º, abrange apenas a parte do depoimento baseado no que a testemunha ouviu dizer, mantendo-se válida a parte restante.
Vale aqui a lição de Costa Andrade:
“Nada, com efeito, parece justificar que a proibição de valoração que inquine o testemunho-de-ouvir-dizer tenha também de precludir a valoração das provas que ele tenha tornado possíveis.
O efeito à distância transcende claramente o fim de protecção das normas do direito processual português que prescrevem a proibição do testemunho-de-ouvir-dizer. E que obedecem fundamentalmente a exigências próprias dos princípios de imediação, de igualdade de armas e da regra da cross-examination. Tudo exigências cuja satisfação integral pode perfeitamente compaginar-se com a utilização processual das provas mediatamente produzidas pelo testemunho-de-ouvir-dizer. Não subsistindo assim e em síntese conclusiva, argumentos pertinentes e susceptíveis de contrariar as razões de economia processual, verdade e justiça material a reivindicarem a devida valoração destes meios mediatos de prova” (Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, páginas 316 e 317).
No mesmo sentido se pronuncia Marques Ferreira, em Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, 1991, páginas 235 e 236, e o acórdão do Tribunal Constitucional nº 213/94, publicado em BMJ 435º-155. E já em 1983 Figueiredo Dias admitia uma solução deste tipo: “(...) se a proibição de (valoração da) prova se não prende com a dignidade da pessoa (como, v. g., no caso de proibição do testemunho de ouvir dizer), já poderá eventualmente vir a reconhecer-se a admissibilidade de provas consequenciais à violação daquela proibição” (Para uma Reforma Global do Processo Penal Português, Para uma Nova Justiça Penal, Almedina, páginas 208 e 209).
Pode, assim, dizer-se que não há aqui depoimento indirecto relevante.
Mesmo que houvesse, não seria de valoração proibida, na medida em que, apesar de a pessoa a quem ouviram fazer as ditas afirmações – a ofendida – não ter comparecido na audiência, sem que ocorresse qualquer das situações previstas na última parte do nº 1 do artº 129º (o relatório médico em que o tribunal se baseou para dispensar a ofendida de comparecer na audiência atesta uma situação de simples inconveniência e não de impossibilidade), se verificou uma situação sucedânea da chamada a depor em audiência: a leitura aí das declarações que prestou noutra fase do processo, acto que já vimos estar a coberto de qualquer censura.
Como se viu, a regra da chamada a depor da pessoa determinada a quem “se ouviu dizer” visa assegurar a fiabilidade da declaração prestada por quem não possui conhecimento directo dos factos que relata, através do confronto das declarações de quem diz o que ouviu com as da “fonte”, bem como as garantias de defesa, designadamente o contraditório, admitindo-se aí limitações apenas em casos excepcionais, justificados pela sua razoabilidade.
E, no caso, as declarações prestadas em julgamento por essas três testemunhas, na parte em que resultam do que ouviram afirmar à ofendida, foram confrontadas com as declarações desta no inquérito e lidas na audiência, o que permitiu ao tribunal fazer sobre elas um juízo de fiabilidade e ao arguido exercer em certa medida o contraditório, sendo que, se não pôde fazê-lo em toda a extensão, em face da falta da presença física da ofendida, ele se conformou com essa limitação, ao dar o seu acordo à substituição da comparência daquela na audiência pela leitura das declarações que prestara anteriormente.
Não houve, assim, violação do artº 129º, nº 1.

Não é verdade que o reconhecimento do arguido como o autor dos factos afirmados feito pela ofendida a fls. 290 e 291 tenha sido invalidado com a decisão desta Relação de 19/04/2006, que determinou o reenvio do processo para novo julgamento.
É certo que esse reconhecimento teve lugar no 1º julgamento, que ficou invalidado com o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto. Mas o reconhecimento ficou registado em todos os seus pormenores na acta, sendo um acto escrito e, portanto, utilizável em qualquer altura, ao contrário dos actos orais que tiveram lugar na audiência. Aliás, a decisão que considerou verificado o vício que levou ao reenvio do processo para novo julgamento – erro notório na apreciação da prova – assentou essencialmente na circunstância de o tribunal que efectuou o primeiro julgamento haver desconsiderado esse reconhecimento.

É claro que os exames médicos efectuados na pessoa da ofendida nada provam acerca da existência do sequestro, mas na decisão recorrida também não se diz que provam, pois foram considerados apenas na medida em que os seus resultados se harmonizam com as declarações daquela, o que não vem posto em causa.

É infundada a invocação da violação do princípio in dubio pro reo, pois do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal tenha ficado com dúvidas sobre se o arguido praticou os factos tidos como assentes, nem que, razoavelmente, devesse ter essas dúvidas.

A alegação de que “não se identificam os factos que se consideraram provados com base no reconhecimento do recorrente por parte das testemunhas D………. e I………. numa fotografia que lhes teria sido exibida no posto da GNR da ……….” é alheia à impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, só se compreendendo em sede de arguição da nulidade de sentença concretizada em falta de fundamentação – artºs 379º, nº 1, e 374º, nº 2, do CPP –, vício que se não imputa à decisão recorrida.
De qualquer modo, sempre se dirá que da motivação da decisão de facto se percebe perfeitamente que este “reconhecimento”, confirmando as declarações da ofendida, serviu para reforçar a convicção do tribunal no sentido de que o arguido praticou os factos considerados integradores do sequestro.

Concluindo, não procedem as críticas que o recorrente dirige à decisão sobre matéria de facto, que assenta em bases mais que suficientes: as declarações da ofendida, tidas como plausíveis e credíveis, complementadas com os depoimentos das testemunhas acima identificadas e o reconhecimento que aquela fez do arguido.
Assim, e porque não ocorrem outros vícios que sejam de conhecimento oficioso, tem-se essa decisão como intocável.

Matéria de direito:
Nesta parte, começa o recorrente por dizer que o sequestro, “fazendo parte do processo encetado pelo agente com vista à produção do resultado típico final da violação, deixa de ter autonomia”, sendo consumido por esta.
Na acusação imputava-se ao arguido um crime de violação p. e p. pelo artº164º, nº 1, e um crime de sequestro p. e p. pelo artº 158º, nºs 1 e 2, alínea b), ambos do CP.
A ofendida, que se constituiu assistente e deduziu acusação em relação aos factos pelos quais o MP acusou, desistiu posteriormente da queixa. Esta foi julgada válida e relevante em relação ao crime de violação, tendo os autos prosseguido para julgamento pelo crime de sequestro, única infracção que portanto está em discussão.
Tem-se como certo que entre o crime de violação e o de sequestro pode ocorrer uma situação de concurso aparente. O tipo objectivo do sequestro preenche-se com a privação da liberdade de movimento, da liberdade de deslocação de um lugar para outro. E no crime de violação, em que o tipo objectivo se realiza, além do mais, pela acção de alguém constranger outra pessoa, por meio de violência ou ameaça grave, a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, a pessoa sobre quem é exercida a violência ou ameaça grave, enquanto durar o constrangimento daí decorrente, encontra-se privada da liberdade de se movimentar.
Assim, essa privação da liberdade ambulatória presente no crime de violação, se não vai além da indispensável à prática deste ilícito, não pode ser punida autonomamente como crime de sequestro, na medida em que já é valorada em sede de violação. De outro modo, sairia violado o princípio da dupla valoração, que se retira do nº 5 do artº 29º da Constituição.
Ensina Figueiredo Dias que nem sempre a uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global – no caso os artºs 158º e 164º, nº 1, do CP – corresponde uma pluralidade de sentidos de ilícito autónomos desse comportamento.
E explica:
Casos existem (...) em que “os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de tal forma que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes (...) que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77º. Nomeadamente (...) porque um tal procedimento significaria na generalidade das hipóteses violação da proibição (jurídico-constitucional: ne bis in idem) de dupla valoração – de uma parte – da matéria proibida e do conteúdo do ilícito respectivo. Podendo então dizer-se (...) que nestes casos se verifica uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes efectivamente cometidos.
(...).
O critério acabado de apresentar parece possuir virtualidades bastantes para abranger todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente. Por outras palavras, aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, únicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. Parece aqui particularmente que (...) uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração” (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, páginas 1011, 1012 e 1018).
Mais concretamente, pronunciando-se a propósito do crime de coacção sexual, o mesmo Professor é peremptório:
“O concurso com o sequestro (art. 158º) será efectivo sempre que (mas só quando...) a privação da liberdade exceda aquilo que seria indispensável à prática do crime sexual” (Comentário Conimbricense, Tomo I, página 459).
No mesmo sentido escreve Taipa de Carvalho:
“Sabe-se que a violência é prevista como meio típico da realização de uma multiplicidade de crimes. Tal é o caso, p. ex., da coacção, da coacção sexual, do roubo, da extorsão. Também é evidente que esta violência pode traduzir-se na privação da liberdade de movimentos. Ora esta consideração é decisiva para a questão do concurso; para resolver, em muitos casos, a questão da unidade ou pluralidade de crimes. Com efeito, sempre que a duração da privação da liberdade de locomoção não ultrapasse aquela medida naturalmente associada à prática do crime-fim (p. ex., o roubo, a ofensa corporal grave, a violação) e como tal já considerada pelo legislador na descrição típica e na estatuição da pena, deve concluir-se pela existência de concurso aparente (...) entre o sequestro (“crime-meio”) e o crime-fim: roubo, violação, extorsão, etc., respondendo o agente somente por um destes crimes (...). Já haverá um concurso efectivo, quando a duração da privação da liberdade de movimento ultrapassa aquela medida. Assim, se, p. ex., A, para constranger B a realizar cópula com ele, prendeu B, durante mais de 24 horas, responderá pelo crime de violação e de sequestro” (Comentário, Tomo I, página 415).
No caso, o arguido, depois de seguir a assistente, transportando-se cada um no seu automóvel, ultrapassou-a, numa estrada secundária, marginada por mato e sem quaisquer habitações, parou, obstruindo-lhe a passagem, obrigou-a a abrir o veículo, dando murros neste e ameaçando partir “aquilo tudo”, tirou-lhe a chave da ignição, impedindo-a de prosseguir a marcha, e, depois de ir estacionar o seu automóvel, entrou na viatura da ofendida, sentando-se ao lado desta, no outro banco da frente, ordenou-lhe que conduzisse o automóvel seguindo as indicações que ele ia dando. Essas indicações levaram-nos para zonas habitadas, tendo mesmo passado junto à casa de morada da assistente. A certa altura, o arguido ordenou que ela seguisse de novo em direcção ao local onde se encontrava o automóvel dele e, quando se encontravam perto desse lugar, mandou-a parar, sendo que, momentos depois, ordenou que seguisse, indicando-lhe a direcção da “Estrada Nacional, sentido ……….-……….”, tendo de seguida tomado “a Estrada ……….”, virando posteriormente “no sentido ……….-……….-……….”. Chegados à zona industrial ………., o arguido passou para o lugar do condutor, conduzindo ele o automóvel para um caminho de terra ali existente, onde, à força e sob ameaças, teve com ela cópula e coito anal.
Para além de não se ter provado que o arguido, ao obstruir a passagem à ofendida, tirar-lhe a chave do automóvel e obrigá-la a circular por todos aqueles locais, já tinha em vista a prática da violação, da longa descrição acabada de fazer dos passos que precederam os actos de cópula e coito anal, retira-se com clareza que a privação da liberdade extravasou a medida da que era necessária à realização da violação.
Com efeito, o arguido, quando parou à frente da ofendida, impedindo-a de continuar a sua marcha, numa estrada secundária, ladeada por mato e onde não havia casas, alta noite, tinha todas as condições para praticar logo ali a violação. Não tinha qualquer necessidade de ir com ela de carro por todas aquelas estradas, de maior movimento, passando até por áreas povoadas, designadamente junto à casa da assistente. Aliás, chegou mesmo, depois de haver circulado com a ofendida pelas zonas habitadas, a ordenar que o levasse até ao seu automóvel e só quando se encontrava próximo é que deu ordem para seguir noutra direcção.
Além disso, houve privação da liberdade após a violação, visto que, depois de consumada esta, contra a vontade da ofendida, conduziu o automóvel desta, com ela no seu interior, desse local até ao lugar onde deixara o seu veículo.
Esta privação da liberdade de movimento da ofendida situada fora da esfera de realização da violação preenche, pois, o crime de sequestro.

É agora altura de ver se esse crime é simples ou qualificado.
No acórdão recorrido considerou-se ser o sequestro qualificado pela circunstância da alínea b) do nº 2 do artº 158º: Ser a privação da liberdade “precedida ou acompanhada de tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano”.
O artº 243º, nº 3, define “tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano” como o acto que consiste “em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima”.
No caso, o arguido com a sua conduta teria infligido “sofrimento físico e psicológico agudo” à ofendida. Esse sofrimento físico e psicológico estaria concretizado na violação e na forma como foi executada, bem como no facto de, no final, haver dito à ofendida: “agora vou marcar-te a cara para poder provar que estive contigo”.
Mas os actos respeitantes à violação perderam relevância criminal com a homologação da desistência da queixa nessa parte, não podendo haver por eles perseguição criminal, designadamente para retirar daí qualquer efeito agravante para o outro crime. Como parece evidente, se não tivesse havido desistência da queixa e portanto se mantivesse de pé o crime de violação, os actos desta não podiam ser considerados para, por um lado, preencherem o tipo legal da violação e, por outro, qualificarem o crime de sequestro, sob pena de violação do falado princípio jurídico-constitucional da proibição da dupla valoração. E, afastada a possibilidade de perseguição criminal pelo crime de violação, esta não renasce para efeitos de qualificação do crime de sequestro.
Assim, ainda que se possa entender que certas violações, pelas circunstâncias que as acompanham, podem causar na vítima um “sofrimento físico ou psicológico agudo”, um tal facto, dizendo respeito à violação, é em sede de punição por esse crime que terá de ser considerado.
E, no caso, nem se provou que a violação tivesse provocado à ofendida um “sofrimento físico ou psicológico agudo”, e este facto também se não deduz dos que foram dados como provados.
Com efeito, a violação, envolveu um acto de cópula e outro de coito anal, ocorridos no interior de um automóvel, sem violência particularmente grave. O arguido limitou-se a intimidar a ofendida, dizendo-lhe que se resistisse “seria pior”, para além de, fazendo uso moderado da força física, ir vencendo as pequenas resistências que ela, não obstante a ameaça, foi opondo. Assim, tendo a ofendida puxado para cima o fecho das calças que o arguido puxara para baixo, ele puxou de novo esse fecho para baixo, mantendo-o aberto; implorando a ofendida que a deixasse ir embora, o arguido despiu-lhe as calças e as cuecas; fechando a ofendida as pernas para evitar a penetração, o arguido com as mãos “forçou-a” a abrir as pernas e penetrou-a; tendo-se a ofendida sentado quando ele lhe ordenou que se colocasse de joelhos e de costas para si, forçou-a, puxando-a por um braço, a colocar-se na posição pretendida.
É verdade que a ofendida, regressada a casa só conseguiu adormecer por volta das 7 horas, mas não se apurou por que razão, não se podendo, sem mais, concluir que isso se deveu a um “sofrimento físico ou psicológico agudo” . Aliás, nem se sabe se houve uma demora significativa em adormecer, pois quando abandonou o local onde se libertou do arguido já eram 5 horas, sendo que ainda teve de chegar a casa, tomou banho e colocou toda a roupa na máquina de lavar.
Deve ainda dizer-se que o facto de a ofendida, antes de abandonar o lugar onde ficou livre do arguido, ter anotado a matrícula do automóvel daquele, pela presença de espírito que revela, é pouco compatível com um grande abalo psicológico.
E quanto a sofrimento físico provou-se apenas que o arguido ao introduzir o seu pénis no ânus da ofendida provocou a esta dores, que a levaram a gritar. Mas essas dores, mesmo que tenham sido intensas, o que nem está provado, foram pouco mais que instantâneas e não queridas pelo arguido, pois, ao verificar que com a introdução do pénis no ânus da ofendida lhe causava dores, logo pôs termo a esse acto, retomando a cópula.
O facto de o arguido haver dito à ofendida “agora vou marcar-te a cara para poder provar que estive contigo”, este sim, já pode ser valorado no âmbito do sequestro. Mas não se provou que dele resultasse para a ofendida qualquer sofrimento agudo, sendo que não só se não apurou o sentido deste “marcar-te cara”, como ela não viu nessa expressão qualquer ameaça de mal físico, visto que, como se teve por assente, perante ela, se limitou a encolher os ombros, começando a vestir-se, tal como o arguido fazia.
O sequestro é, assim, simples, ou seja, da previsão do artº 158º, nº 1.

Resta determinar a pena.
O crime de sequestro simples é punível com pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou multa de 10 a 360 dias.
Nos termos do artº 70º do CP, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
As finalidades da punição são as estabelecidas no artº 40º, nº 1: “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
São, pois, considerações de prevenção, de prevenção geral e prevenção especial, que decidem sobre a escolha da espécie da pena a aplicar, e não de culpa, intervindo esta somente em fase posterior, no momento da determinação da medida concreta da pena.
As exigências de prevenção especial são pouco significativas, visto o arguido não ter sofrido qualquer condenação anterior ou posterior aos factos, que ocorreram há mais de 10 anos, e ter a vida profissional e familiar estabilizada.
Mas as necessidades de prevenção geral são elevadas, situando-se para além da média, na medida em que o facto em julgamento, pelo circunstancialismo em que ocorreu, não obstante o aspecto mais censurável da conduta global do arguido – a violação –, em face da desistência da queixa, ter ficado à margem da perseguição criminal, assumiu contornos preocupantes, que não podem ter deixado de causar forte impressão na comunidade, sendo adequados a gerar sentimentos de insegurança. Efectivamente, o sequestro foi levado a cabo a altas horas da noite, num lugar ermo, com uso de alguma violência e após prolongada perseguição de automóvel, circunstâncias que necessariamente provocaram grande medo à ofendida, que acabou por ficar completamente à mercê do arguido, sem possibilidade de socorro. Deste modo, não pode sequer concluir-se que, apesar do relativamente longo período de tempo já decorrido, o facto se tenha esbatido de modo significativo na memória da comunidade.
Estas consideráveis exigências de prevenção geral levam a que se não deva optar pela pena alternativa de multa, dando-se preferência à pena privativa da liberdade. A pena de multa, nestas circunstâncias, não daria satisfação ao o sentimento jurídico da comunidade.

Escolhida neste primeiro momento a espécie da pena, há que achar a sua medida.
Sobre essa operação, diz-nos logo o artº 71º do CP que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que aí se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.
À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e, no nº 2, que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe um papel limitador, constituindo a sua medida um tecto que não pode ser ultrapassado.
Estas regras vêm sendo explicitadas na obra de Figueiredo Dias, podendo afirmar-se na esteira dos seus ensinamentos:
A pena tem como finalidade primordial a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, traduzida na necessidade de tutela da confiança e das expectativas comunitárias na manutenção da vigência da norma violada. Por outras palavras, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Uma tal finalidade identifica-se com a ideia da “prevenção geral positiva ou de integração” e dá “conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o art. 18º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática”.
Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.
Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se “revelar carente de socialização”, tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em “conferir à pena uma função de suficiente advertência” (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, páginas, 79 a 82).
Noutra obra, sintetizando estes ensinamentos, o mesmo autor escreveu:
“(...) o modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é “aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente” (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril – Dezembro 1993, páginas 186 e 187).
No caso, o arguido revelou uma vontade muito determinada em levar a cabo o seu projecto criminoso, como o evidencia a persistente perseguição que moveu à ofendida, não desistindo perante as dificuldades que ela lhe foi colocando. Isso concretiza um dolo muito intenso.
O grau de ilicitude do facto pode considerar-se um pouco acima da média porque, não obstante não se poder entrar em linha de conta com os actos sexuais praticados sobre a ofendida, tornados inócuos em termos de perseguição criminal, em face da homologação da desistência da queixa, a privação da liberdade em que se traduziu o sequestro durou horas e foi rodeada de circunstâncias de razoável gravidade, pela insegurança e medo necessariamente sentidos pela ofendida: o arguido, depois de a perseguir por vários caminhos, alta noite, passou-lhe à frente, obstruiu-lhe a marcha, imobilizando o seu automóvel no meio da faixa de rodagem, num lugar ermo e, dando murros no veículo dela e gritando que “partia aquilo tudo”, obrigou-a a abrir o vidro da janela, assim tendo acesso à chave da viatura, da qual que logo se apossou.
Estas circunstâncias relevam em sede de culpa, por conferirem maior censurabilidade à conduta do arguido, e de prevenção, principalmente geral, na medida em que, representando uma mais intensa violação da norma que protege a liberdade ambulatória, abalaram mais fortemente o sentimento de segurança e de confiança da comunidade na validade dessa norma.
Das necessidades de prevenção, no mais, já acima se falou, sendo as de prevenção especial de baixa intensidade e um pouco acima da média as exigências de prevenção geral, como se disse.
Estas acentuadas exigências de prevenção geral situam o mínimo de pena indispensável à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada num ponto bem acima do limite mínimo da moldura penal, mas ainda longe do limite máximo, pois são configuráveis inúmeras outras situações geradoras de muito maior impacto na comunidade.
E a medida da culpa, dada essencialmente pela grande intensidade do dolo e pela razoável censurabilidade presente nas circunstâncias que rodearam o sequestro, situa-se num patamar um pouco acima da média.
Da ponderação destes dados, resulta adequada a pena de 15 meses de prisão.

Falta agora decidir se deve aplicar-se alguma pena de substituição.
Atenta a medida da pena encontrada, das penas de substituição da prisão só a da suspensão da sua execução é admissível.
Sobre esta rege o artº 50º, cujo nº 1 estabelece:
“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
As finalidades da punição já vimos que são exclusivamente preventivas.
Ao arguido não é conhecida qualquer condenação criminal, seja por factos anteriores ao crime em causa, seja por factos posteriores, sendo que tem a sua vida familiar e profissional estabilizadas. É, assim, de concluir que a suspensão da execução da pena, desde logo pela ameaça de cumprimento de prisão que comporta, será suficiente para levar o arguido a não praticar no futuro novos crimes.
Por outro lado, perante o tempo já decorrido sobre a prática do facto, a ausência de outras condenações sofridas pelo arguido e a inserção social deste, a suspensão da pena não ofende o sentimento de justiça da comunidade, não pondo «irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias», para usar as palavras de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, página 333).
Deve, assim, suspender-se a execução da pena.
O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos – nº 5 do artº 50º, na redacção que vigorava à data da prática dos factos.
Considerando o grau de culpa e as exigências de prevenção, o período de suspensão ajustado é, a essa luz, de 2 anos.
Em 15 de Setembro de 2007 entraram em vigor as alterações introduzidas ao CP pela Lei nº 59/20007, de 4 de Setembro, sendo o respectivo regime aplicável apenas se for concretamente mais favorável ao arguido – nºs 1 e 4 do artº 2º.
A pena em abstracto prevista para o crime de sequestro é a mesma num e noutro desses regimes. São também, no que aqui importa, os mesmos os critérios de determinação da pena, não sendo, nomeadamente, também à luz da lei nova, aqui aplicável outra pena de substituição.
Porém, de acordo com a nova redacção do nº 5 do artº 50º, o período de suspensão da execução tem duração igual à da pena de prisão fixada, o que, no caso, dá o período de 15 meses.
Assim, resultando da lei nova um período de suspensão mais curto que o imposto pela lei antiga e sendo no mais ambos os regimes idênticos, deve aplicar-se a lei actualmente em vigor , por ser mais favorável em concreto ao arguido.
Em consequência, o período de suspensão deve ser fixado em 15 meses.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação, no provimento parcial do recurso, em alterar o acórdão recorrido nos seguintes termos: O crime cometido é o de sequestro simples p. e p. pelo artº 158º, nº 1, do CP, condenando-se, pela sua prática, o arguido, B………., na pena de 15 (quinze) meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 15 (quinze) meses.
O recorrente vai condenado a pagar as custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.

Porto, 7 de Novembro de 2007
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Francisco Marcolino de Jesus
José Ferreira Correia de Paiva