Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0812001
Nº Convencional: JTRP00041315
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: PERDA DE COISA RELACIONADA COM O CRIME
Nº do Documento: RP200805070812001
Data do Acordão: 05/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 527 - FLS 208.
Área Temática: .
Sumário: Para o efeito previsto no nº 1 do art. 109º do Código Penal é necessária uma decisão judicial a julgar verificada a prática de um facto ilícito típico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO (Tribunal da Relação)
Recurso n.º 2001/08
Processo n.º …/07.1PASTS-A

Em conferência na 1.ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto
1- No ..º juízo criminal do Tribunal Judicial de Santo Tirso, no processo acima identificado, foi proferido despacho rejeitando a promoção do Ministério Público no sentido de serem declarados perdidos a favor do Estado diversos alicates utilizados na prática de um crime de furto

2- O magistrado do Ministério Público na 1.ª instância recorre, concluindo deste modo:
O Ministério Público, tendo arquivado o inquérito relativo a um crime semi-público (furto do art. 203.º do C. Penal) por inexistência de queixa do ofendido, promoveu fosse declarado o perdimento a favor do Estado de 3 alicates, apreendidos nos autos, utilizados nesse furto e que ofereciam o sério risco de voltar a ser usados em condutas idênticas, invocando o disposto no art. 109.º do C. Penal.
Tal promoção foi indeferida, pelo douto despacho recorrido, por se ter entendido que o referido crime não era crime, sem apreciação nem consideração do fundamento de direito invocado. E daquele art. 109.º resulta que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido para a prática de um facto ilícito típico, quando, oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos (n.º 1), perdimento a favor do Estado que tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto (n.º 2).
O que se verifica no caso presente, pois, que a inexistência de queixa não apaga o crime e muito menos o facto ilícito típico ou o sério risco de utilização dos objectos apreendidos no cometimento de outros factos ilícitos típicos.
Violou, assim, o douto despacho recorrido o disposto nos art.ºs do CPP e 109.º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal.

3- O Exmo PGA nesta Relação apôs o seu visto

4 - Foi colhido o visto legal e teve lugar a conferência.

5- O objecto do presente recurso, tal como vem definido nas conclusões do recurso, traduz-se em saber se, indiciada a prática de um crime de furto em relação ao qual não houve queixa do ofendido e em que foi determinado o arquivamento dos autos, ainda assim há lugar à declaração de perda dos supostos instrumentos do crime
O despacho recorrido tem o seguinte teor: «Estando-se perante um crime semi-público (furto) em que não houve queixa, não há crime, tal como despacho de arquivamento proferido. Assim sendo, os autos deverão aguardar nos termos do art. 186/3 do CPP, apenas com esse fundamento e ainda do n.º 4 do mesmo normativo podendo ser declarados perdidos a favor do Estado».
O recorrente entende que a circunstância de não ter sido oportunamente apresentada queixa por factos que consubstanciam um crime semi-público não exclui a culpa do agente ou a ilicitude do facto, nem faz apagar os restantes elementos do respectivo tipo legal, apenas acarreta a impossibilidade de ser promovido o processo penal pelo Ministério Público. Assim, segundo ele, a existência de indícios de que os 3 alicates apreendidos haviam sido fundamentais para a prática de um crime e o perigo sério de voltarem a ser utilizados na prática de novos crimes idênticos levou à invocação do disposto no art. 109.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CódPenal, como fundamento da declaração de perdimento a favor do Estado de tais objectos.
Dispõe o art. 109.º do CodPenal, sob a epígrafe “perda de instrumentos e produtos: «1- São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos. 2- O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto. 3- Se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.»
Mas quando é que um determinado objecto assume o estatuto para se poder considerar que oferece o perigo de “ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”? Logo depois de ser cometido um facto ilicito? Mas antes de tal acto o instrumento não oferece já a, digamos “potência” para ser utilizado? Na clássica formulação aristotélica diriamos até que toda a matéria, sendo essencialmente indeterminação, é também sempre potência (dunamis) que pode vir a existir em acto (energeia). Não é em abstracto que um determinado objecto-instrumento deve ser considerado para determinar aquela potencialidade de perigo, mas em concreto, tendo designadamente em conta a natureza e características do objecto, as circunstâncias em que foi utilizado ou poderá ser utilizado. Como referiu o Prof. Figueiredo Dias na Comissão Revisora do CodPenal, a «(...) perigosidade do objecto não deve ser avaliada em abstracto, mas em concreto, isto é, nas concretas condições em que ele possa ser utilizado (às «circunstâncias do caso» se refere expressamente o art. 107.°-1). Um revólver, p. ex., é um objecto «em si» perigoso; mas que terá deixado de o ser se, após o tiro que constituiu meio de cometimento do ilícito-típico, a engrenagem tiver ficado danificada por forma irreparável. Esta conexão entre a perigosidade do objecto e as concretas circunstâncias do caso pode acabar por «implicar uma referência ao próprio agente» (ponto de vista subjectivo). Por exemplo, uma liga de um metal corrente, que qualquer pessoa possa deter, pode tornar-se em coisa perigosa se for detida por alguém conhecedor de uma fórmula que a transforme em substância explosiva. Esta «referência ao agente» não deixa, de resto, de apoiar a interpretação restritiva, feita no § 987, do disposto no art. 107.°-2 ». Ou como diz o Ac desta Relação proferido no recurso n.º 4689/07 (aliás citado no despacho judicial de fls 28 deste recurso), «(...) os objectos não são perigosos em si já que, sem ligação a um agente concreto perigoso (que não é o arguido), não têm potencialidades para por em risco, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos ».
Isto por um lado. Por outro lado, e salvo os casos expressamente previstos em diplomas especiais (caso da droga, de substâncias explosivas, de certos tipos de armas, etc), é necessário que haja uma pronúncia judicial a julgar verificada a prática de um facto ilícito típico. Nesse sentido vai a jurisprudência citada naquele mesmo despacho de fls 28. E havendo alguém acusado, será mesmo necessário esperar pelo trânsito em julgado da sentença condenatória e da verificação juidicla da perigosidade do objecto para poder haver perda a favor do estado (cfr por ex. o Ac desta Relação, de 16-3-2005, proc. n.º 0416429, in www.dre.pt).
No caso dos autos, não se sabe a quem pertencem os alicates utilizados na suposta prática do crime e não está determinado o agente desse facto. Entendeu assim o despacho recorrido que os objectos deviam ficar apreendidos, nos termos dos n.º 3 e 4 do art. 106.º do CodProcPenal. Estes normativos prescrevem respectivamente: «As pessoas a quem devam ser restituídos os objectos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 90 dias, findo o qual passam a suportar os custos resultantes do seu depósito». «Se as pessoas referidas no número anterior não procederem ao levantamento no prazo de um ano a contar da notificação referida no número anterior, os objectos consideram -se perdidos a favor do Estado».
Mas a situação dos autos não está prevista naquela disciplina, pois que aqui não será possível determinar a quem pertencem os objectos, e portanto não será possível proceder a qualquer notificação para o levantamento dos mesmos. Cremos que para estes casos se mantém o disposto no Decreto n.º 12 487, de 14 de Outubro de 1926: se os objectos não forem reclamados, prescrevem para o Estado no prazo de 3 meses.
6- Decisão:
Pelos fundamentos expostos:
I- Nega-se provimento ao recurso, mantendo-se, com a reserva exposta, o despacho recorrido

II- Sem taxa de justiça.
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Tribunal da Relação do Porto, 07-05-2008
Jaime Paulo Tavares Valério
Luís Augusto Teixeira