Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0841343
Nº Convencional: JTRP00041250
Relator: CUSTÓDIO SILVA
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
INQUÉRITO
PRAZO
Nº do Documento: RP200804230841343
Data do Acordão: 04/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 310 - FLS. 188.
Área Temática: .
Sumário: A aplicação do segredo de justiça nos termos do nº 3 do art. 86º do Código de Processo Penal só pode ter lugar dentro do prazo de conclusão do inquérito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão elaborado no processo n.º 1343/08 ( 4ª Secção do Tribunal da Relação de Porto )
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1. Relatório
Consta do despacho de 8 de Outubro de 2007:
“Os presentes autos tiveram origem numa denúncia efectuada em 2 de Abril de 2005 por B…………………, onde se dava conta de que, nesse dia, cerca das 10 h, em Serzedelo, Argoncilhe, fora abordado por dois indivíduos, um deles munido com arma de fogo, que se faziam transportar num veículo automóvel, no qual se encontrava um terceiro indivíduo, e, sob a ameaça daquela arma, fora assaltado, tendo-lhe subtraído, assim, o veículo automóvel, de matrícula QP-..-.., pertencente a C…………….., bem como outros objectos que se encontravam no interior daquele veículo, tendo tais indivíduos encetado a fuga de imediato.
Entretanto, foram realizadas diversas diligências, sendo que, em 6 de Janeiro de 2006 ( cfr. fls. 87 e 92 ) foram constituídos arguidos D………….. e E………….., vindo os mesmos a ser interrogados nessa qualidade.
Veio, agora, o(a) Digno(a) Magistrado(a) do Ministério Público determinar que o presente inquérito ficasse sujeito ao regime de segredo de justiça, tendo os autos sido remetidos a Juízo para validação judicial de tal decisão.
Contudo, afigura-se-nos que tal validação não pode ter lugar, uma vez que já se encontram esgotados os prazos máximos de conclusão do presente inquérito.
Vejamos.
O art. 276º CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, estabelece que o Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, nos prazos máximos de seis meses, se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de oito meses, se os não houver, sendo que o referido prazo de 6 meses é elevado, consoante o caso:
a) Para 8 meses, quando o inquérito tiver por objecto um dos crimes referidos no n.º 2 do artigo 215º;
b) Para 10 meses, quando, independentemente do tipo de crime, o procedimento se revelar de excepcional complexidade, nos termos da parte final do n.º 3 do artigo 215º;
c) Para 12 meses, nos casos referidos no n.º 3 do artigo 215º.
Por outro lado, ainda de acordo com o n.º 3 do mesmo preceito legal, para efeito da contagem dos prazos referidos, o prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido.
Ou seja, no caso concreto, o prazo de conclusão do inquérito é de 8 meses, sendo que o mesmo se iniciou, pelo menos, em 6 de Janeiro de 2006 ( data da constituição, como arguidos, de D………….. e E…………..), ou seja, há mais de 20 meses.
Por outro lado, há ainda a considerar o disposto no n.º 6 do art. 89º CPP, que estabelece que «findos os prazos previstos no artigo 276º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação».
Ora, tais disposições legais, conjugadas com o, agora, princípio geral plasmado no art. 86º, n.º 1 CPP, de que o processo penal é, a todo o tempo e sob pena de nulidade, público ( com as excepções previstas na lei ), leva-nos a concluir que, no caso concreto, e perante a inexistência de qualquer norma transitória que ressalve a aplicabilidade imediata das normas resultantes da Lei n.º 48/2007 aos processos já pendentes, estando já esgotados os prazos máximos de encerramento do inquérito sem que tivesse havido despacho de arquivamento ou acusação, não é admissível determinar a aplicação do segredo de justiça ao presente inquérito.
Assim, pelos motivos expostos, decide-se não proceder à validação promovida”.
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O Ministério Público veio interpor recurso, tendo terminado a motivação pela formulação das seguintes conclusões:
“1ª - O Ministério Público interpõe recurso do despacho proferido pela M. Juiz, com funções de instrução criminal, em 8 de Outubro de 2007, constante de fls. 122 a 124, no qual decidiu não validar o despacho proferido pelo Ministério Público, a fls. 117 e 118, que determinou aplicar o segredo de justiça aos presentes autos, nos termos do art. 86º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
2ª - O art. 276º do Código de Processo Penal fixa os prazos de duração máxima do inquérito.
3ª - Este prazo não tem natureza peremptória, assumindo carácter meramente ordenador.
4ª - Com a alteração legislativa ocorrida, o inquérito passa a estar sujeito ao regime regra da publicidade, passando o regime do segredo de justiça a revestir carácter excepcional.
5ª - O art. 297º do Código Civil fixa as regras relativas à alteração de prazos, estabelecendo que, entrando em vigor um prazo mais curto, quando a lei não fixava prazo algum, o prazo começa a contar-se a partir da entrada em vigor da lei nova.
6ª - O artigo 89º, n.º 6, do Código de Processo Penal, estabelece o período durante o qual o inquérito pode estar sujeito ao regime do segredo de justiça, remetendo para os mesmos prazos que são fixados para a conclusão do mesmo - cfr. artigo 276º do mesmo diploma legal.
7ª - O prazo durante o qual o inquérito está subordinado ao segredo de justiça é o mesmo que a lei fixa no artigo 276º do Código de Processo Penal para a conclusão do inquérito, contudo, estes prazos não têm de correr simultaneamente.
8ª - O prazo do artigo 276º do Código de Processo Penal, para efeito de sujeição do inquérito ao regime excepcional do segredo de justiça, terá, necessariamente, de começar a contar-se com o despacho que o sujeita a este regime excepcional - momento em que for determinado que este corre em segredo de justiça.
9ª - Ainda que assim não se entenda, na situação em apreço, considerando o disposto no art. 279º do Código Civil, bem como a doutrina que lhe é subjacente, sempre se terá de determinar que no inquérito cujo prazo de investigação se mostre ultrapassado, nos termos do artigo 276º do Código de Processo Penal, com a entrada em vigor da nova redacção do artigo 86º do Código de Processo Penal, correrá novo prazo idêntico ao preceito supra referido, para efeitos de determinação, por parte do Ministério Público, do regime excepcional do segredo de justiça, nos termos do artigo 86º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
10ª - Violou, assim, o despacho recorrido de fls. 122 a 124, o disposto nos artigos 86º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e 297º do Código Civil”.
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2. Fundamentação
O objecto do recurso é definido pelas conclusões (resumo das razões do pedido) formuladas quando termina a motivação, isto em conformidade com o que dispõe o art. 412º, n.º 1, do C. de Processo Penal – v., ainda, o ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Dezembro de 2004, in Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 179, ano XII, tomo III/2004, Agosto/Setembro/Outubro/Novembro/Dezembro, pág. 246.
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Há que, então, definir qual a questão que, face ao objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, se coloca para apreciação e que é a seguinte:
A decisão, do Ministério Público, que determinou a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, devia ter sido validada pelo juiz de instrução criminal ( art. 89º, n.º 3, do C. de Processo Penal )?
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O que é relevante para a apreciação e decisão da questão em referência contém-se no despacho sob recurso, o que, por ser ocioso, não justifica que se reproduza.
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O inquérito (com o processo n.º ………./05.5 GDVFR) tem de se considerar aberto a 2 de Abril de 2005, por nesta data ter havido, por denúncia, a notícia de um crime (arts. 241º e 262º, n.º 2, do C. de Processo Penal ).
Nesse tempo, e quanto ao segredo de justiça, regia o art. 86º do C. de Processo Penal, que, no seu n.º 1, estabelecia a regra de que o processo penal era público a partir da decisão instrutória ou, não tendo havido instrução, a partir do momento em que já não pudesse ser requerida.
Isto é, a regra é, pois, a de o processo penal não ser público ( ser, por outras palavras, secreto) nas suas fases preliminares e sê-lo ( não secreto, dito de outro modo) nas fases restantes.
Sucede que a esse art. 86º veio a ser dada, pelo art. 1º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, uma nova redacção, sendo que o seu n.º 1 estabelece a regra - publicidade do processo penal - e o seu n.º 3 consagra uma excepção - aplicação ao inquérito do segredo de justiça, por decisão do Ministério Público, mas sujeita a validação do juiz de instrução criminal.
Ou seja, e agora, a regra é, então, a de o processo penal ser público (não secreto, dizendo de outra maneira ).
De palmar evidência é, face ao que se acabou de consignar, que, relativamente a esse preciso aspecto (que se pode ter por segredo de justiça) dois (e diversos) são os regimes legais que se sucederam no tempo, o que convoca o normativo que rege sobre a aplicação da lei processual penal no tempo, e que se encontra no art. 5º do C. de Processo Penal, nos seguintes termos:
«A lei processual é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior» ( n.º 1 ).
«A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou
b) Quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo» ( n.º 2 ).
Face a este normativo, então, não podemos deixar de considerar que o segundo daqueles regimes (o mais recente, claro) se deve aplicar imediatamente, pela singela razão de que as excepções não têm, aqui, cabimento: em nada se afecta a situação processual do arguido, designadamente limitando-se o seu direito de defesa, e não se verifica qualquer quebra de harmonia e unidade dos actos do processo, exactamente por, na situação, não se estar perante qualquer acto processual.
Isto, aliás, foi pacificamente assumido pelo Ministério Público, quando suscitou a validação da determinação do segredo de justiça, e não questionado pelo despacho que sobre ela decidiu.
O presente art. 86º, n.º 3, do C. de Processo Penal, estatui, mais precisamente:
«Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução … ».
Ressalte-se: essa determinação tem lugar durante a fase de inquérito.
O que se pode ter, então, por fase de inquérito?
Numa primeira leitura, a fase do inquérito vai desde a sua abertura até ao seu encerramento ( arts. 262º, n.º 2, e 276º, n.º 1, do C. de Processo Penal).
Sucede que, e não obstante haver prazos máximos para o encerramento do inquérito (contados, no entanto, desde que o inquérito passou a correr contra pessoa determinada ou desde que se verificou a constituição de arguido) - art. 276º, n.ºs 1, 2, als. a), b) e c), e 3, do C. de Processo Penal -, a sua ultrapassagem, por serem, eles, meramente ordenadores, não peremptórios, portanto, não produz, em relação a ele, inquérito, na sua configuração como tal, quaisquer efeitos que não sejam os previstos no art. 276, n.ºs 4, 5 e 6, do C. de Processo Penal ( v., ainda, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, revista e actualizada, 2000, págs. 92/93 ).
Daí que, nada mais havendo, a sobredita determinação podia ser efectivada durante a fase do inquérito, tal como se acabou de definir.
Mas o certo é que há.
Dispõe o art. 89º, n.º 6, do C. de Processo Penal, que «findos os prazos previstos no artigo 276º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontrem em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação».
O que significa, e muito claramente, que quando aquele art. 86º, n.º 3, consagra a determinação da aplicação, ao processo, do segredo de justiça, durante a fase de inquérito, esta, para este efeito, em obediência ao mencionado art. 89º, n.º 6, tem de ser entendida como delimitada pelo que o referido art. 276º, nos seus n.ºs 1 e 2, consagra, para a fase de inquérito, em termos de prazos máximos.
Assente o que se acabou de abordar, nem tudo, face o acima definido objecto do recurso, está resolvido.
No inquérito, e segundo o que é disponibilizado pelos presentes autos, houve a constituição, a 6 de Janeiro de 2006, de arguido, sendo que o crime cometido terá sido o de roubo (o que vale o mesmo que furto, para efeitos da pertinente lei que se vai mencionar de seguida), de veículo (arts. 210º, n.ºs 1 e 2, e 204º, n.º 2, al. f), do C. Penal ), o que faz com que o prazo máximo do inquérito fosse de 8 meses ( arts. 276º, n.º 2, al. a), e 215º, n.º 2, al. b), do C. de Processo Penal; registe-se: estas normas não foram abrangidas pela redacção, nova, dada pelo art. 1º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto ), prazo este que se iniciava (iniciou) com aquela constituição de arguido e que terminava (terminou), então, a 6 de Setembro de 2006 ( art. 279º, al. c), do C. Civil ).
Como se evidencia daqueles arts. 86º, n.º 3, e 89º, n.º 6, a determinação da aplicação, ao processo, do segredo de justiça está indissoluvelmente ligada ao inquérito, rectius, ao seu prazo máximo; vale por dizer que somente nesse prazo pode ser determinada a aplicação, ao processo, do segredo de justiça, de modo que, ultrapassado este, jamais (não havendo, naturalmente, norma que o permitisse) se pode levar a cabo essa determinação.
No caso, e não obstante, como se destacou, o regime do, digamos assim, segredo de justiça ter sido alterado pelo art. 1º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, alteração, pelo que se mencionou, a considerar, o que se não pode questionar é que, reportando-se o mesmo, quanto à determinação da respectiva aplicação, ao prazo máximo do inquérito, decorrido este, já essa determinação não pode ter lugar.
Se assim não fosse, estar-se-ia a fixar novo prazo máximo do inquérito (absurdo que o caso faz sobressair, pois sempre o mesmo se iria iniciar muito tempo - e muito, mesmo - depois de o devido ter terminado, e só porque sobreveio uma nova lei que, ainda por cima, não alterou esse preciso prazo) ou a possibilitar a determinação de aplicação, no processo, do segredo de justiça, para lá do prazo máximo do inquérito.
Ademais, durante esse período (mesmo, durante toda a fase de inquérito; até 15 de Setembro de 2007, quando entrou em vigor aquele mais recente regime do chamado segredo de justiça - art. 7º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), como o impunha o art. 86º, n.º 1, do C. de Processo Penal (na redacção anterior à dada pelo art. 1º da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), o processo penal não fora público.
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Assim, não pode o recurso deixar de improceder.
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3. Dispositivo
Nega-se provimento ao recurso.
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Porto, 23 de Abril de 2008
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento