Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0721017
Nº Convencional: JTRP00040227
Relator: CÂNDIDO LEMOS
Descritores: LEGITIMIDADE
LEGITIMIDADE ACTIVA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
INTERESSES DIFUSOS
PROTECÇÃO DOS ANIMAIS
Nº do Documento: RP200704100721017
Data do Acordão: 04/10/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 245 - FLS 161.
Área Temática: .
Sumário: I - O MºPº tem legitimidade activa e interesse em agir nas acções que visam a defesa de interesses difusos.
II – As corridas de galgos com lebres vivas são permitidas por lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

No ..º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila do Conde o Ministério Público veio requerer providência cautelar não especificada contra B………., com sede em ………., da comarca e outros, incluindo incertos, pedindo que sem audiência prévia dos requeridos, seja ordenado que estes se abstenham de realizar as corridas de lebres vivas com galgos previstas para o próximo dia 19 de Março de 2006 ou em qualquer outra data de 2006 em ………. ou noutro sítio da comarca de Vila do Conde; e a sua condenação no pagamento de uma multa pecuniária destinada ao Estado Português, a título de sanção pecuniária compulsória, no caso de incumprimento, quantia nunca inferior a €25.000,00.
Dispensado o cumprimento do contraditório e ouvidas as três testemunhas apresentadas, todos elementos da GNR, foi proferido despacho que deferiu a providência nos termos requeridos, assim determinando:
1) que os requeridos certos e incertos se abstenham de realizar as corridas de lebres vivas com galgos, previstas para o dia 19 de Março de 2006, ou em qualquer outra data de 2006,por antecipação ou adiamento daquela, em ………. ou noutro sítio da área da comarca de Vila do Conde;
2) Sem prejuízo da responsabilidade criminal que ao caso couber, condena-se desde já os requeridos certos e incertos no pagamento de uma quantia pecuniária compulsória, que se fixa em €25.000,00 por cada infracção ao ordenado em 1), destinada ao Estado Português.
Faz-se notar que a providência foi requerida em 9 de Março de 2006, sendo decretada em 14 de Março de 2006.
Inconformada a requerida B………. vem em 28 de Março de 2006 interpor este recurso de AGRAVO, o qual apenas a 7 de Novembro de 2006 vem a ser recebido em 1.ª instância, para subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo. Nas alegações são formuladas as seguintes conclusões:
1.ª- Pelas razões expostas supra, sob o n.º 1 e que aqui se renovam, ao Ministério falece capacidade para intentar a presente demanda, nomeadamente, estar vedado, em sede da defesa de um pretenso interesse difuso, que em concreto se não verifica, determinar qual em concreto a norma legal a que deve subordinar a sua actuação, se na defesa do interesse difuso de protecção do direito dos caçadores ao exercício da caça, se na defesa dos pretensos direitos dos animais;
2ª- Os direitos dos animais, assim ditos, não são normas de atribuição de direitos a coisas, como o são os animais, mas sim a imposição de deveres de conduta, não tendo uma dimensão de defesa constitucional ou de direito próprio dos animais e como normas de conduta, não se sobrepõem às demais normas de direito, não sendo possível estabelecer a sua hierarquização ou subordinação aos referidos direitos dos animais;
3ª- As corridas de lebres, são uma actividade mais do que centenária no nosso país, tributárias de uma longa tradição rural, e com cultores, clubes, criadores, associações, regendo-se por normas, regras, classificações, associações e federações, como verdadeira actividade desportiva que são;
4ª- Pelas razões acima enunciadas sob os nºs. III, IV e V, que aqui se reproduzem para os devidos efeitos, e nomeadamente, para a delimitação do objecto do recurso, as corridas de lebres são provas previstas na lei, no âmbito da actividade dos campos de treino de caça, devendo ser consideradas como sendo actividade de caça;
5ª- A actividade da caça, está expressamente excepcionada dos deveres de conduta impostos pela dita Lei de Defesa dos Animais, sendo causa da exclusão expressa constante da Lei n.º 92/95 (Art. 1°, n.º 3, al. f)), ou seja, a norma invocada para a declaração de ilegalidade é a mesma norma que exclui do seu âmbito de protecção a actividade em causa — a prática de caça;
6ª- Como reconhece o Ministério Público, a corrida de lebres cumpria com os requisitos legais, dado que, foi organizada em campo de treino de caça, com a utilização de lebres criadas em cativeiro, e precedida de autorização da DGRF;
Indica como violados a alínea f) do n.º 3 do art. 1° da Lei n.º 92/95, e o art. 55° do DL n.º 201/2005.
Pugna pelo provimento do agravo, revogando-se o despacho que decretou a providência, concluindo-se pela legalidade da actividade da recorrente.
Contra-alega o M.º P.º em defesa do decidido, tendo o despacho sido tabelarmente mantido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Da instância vêm dados como provados os seguintes factos:
1- Nos últimos anos, os Requeridos têm vindo a promover e a organizar a realização de corridas de lebres vivas com cães galgos, na freguesia de ………., Vila do Conde.
2- Tais corridas são presenciadas por milhares de pessoas, mediante o pagamento de um bilhete, no valor de alguns euros, que permite aceder ao recinto do espectáculo e assistir a este.
3- Sendo que os lucros daí provenientes revertem a favor da Requerida B………. .
4- Para o local do espectáculo e para nele participarem como actores principais são transportadas algumas dezenas de cães galgos e algumas dezenas de lebres vivas, as quais são previamente adquiridas pelos Requeridos.
5- A corrida de lebres vivas com galgos, propriamente dita, que é organizada e realizada pelos Requeridos, processa-se da seguinte forma:
- os requeridos soltam ou mandam soltar as lebres vivas no recinto do espectáculo, em princípio uma de cada vez;
- seguidamente, largam dois ou mais cães galgos para perseguirem cada uma das lebres;
- durante um determinado período de tempo, mais ou menos demorado, decorre a perseguição dos cães galgos à lebre que deles foge;
- a corrida termina, regra geral, com um dos canídeos a apanhar a lebre, a mordê-la e a matá-la à dentada, com o auxílio dos restantes e perante o gáudio dos espectadores;
- os galgos que se mostrem mais velozes e que consigam apanhar as lebres, competirão com outros, também eles vencedores, numa nova corrida, e assim sucessivamente, até ao apuramento dos galgos finalistas.
6- As lebres utilizadas na corrida sofrem um tratamento cruel e prolongado, quer pela angústia e pânico que vivem antes e durante a corrida, quer pelo sofrimento físico provocado pelas mordeduras e espezinhar dos galgos, ficando, por vezes, vários minutos em agonia moribunda até à morte.
7- A última dessas corridas organizada pelos Requeridos teve lugar no passado dia 13 de Março de 2005, pelas 9 horas, no campo de treino de caça nº .., da Zona de B1………., sito em ………., Vila do Conde.
8- Esse espectáculo foi organizado, não obstante a intervenção da GNR para que tal não acontecesse.
9- Com efeito, quer no dia anterior, quer no próprio dia das corridas, o Sr. Tenente de Infantaria da GNR, C………. e outros militares por ele comandados, deram conhecimento aos Requeridos de que as corridas de galgos com lebres vivas eram ilegais, pois violavam a Lei nº 92/95, de 12.09.95 (Lei de Protecção dos Animais), pelo que deveriam abster-se de a levarem a efeito.
10- Apesar dessa advertência, o espectáculo foi levado a efeito, com uma assistência entre 4 a 5 mil pessoas, tendo cada uma delas pago um bilhete no valor de 5,00 €, para verem uma largada de 35 lebres vivas para várias dezenas de cães, que esquartejaram, à mordedura, os pequenos lagomorfos.
11- A utilização das lebres vivas é completamente desnecessária, pois as corridas podem realizar-se, os galgos correr e a assistência ulular com a performance destes, mediante a utilização de lebres mecânicas.
12- Conforme já foi publicitado na imprensa local, nomeadamente no jornal “D……….", do dia 27.02.2006, encontra-se programada para o próximo dia 19.03.2006, pelas 10.00 horas, no Campo de Treino de Caça, da Zona de B1………., em ………., Vila do Conde, a " 9ª Grande Corrida de Lebres", organizada pelos Requeridos.
13- Nesse dia, de acordo com o referido anúncio, serão largadas 32 lebres vivas, para apuramento de 8 galgos finalistas.
14- Como em anos anteriores, estas corridas terão uma assistência de alguns milhares de pessoas, processando-se nos mesmos moldes supra referidos, com o sacrifício impiedoso e sanguinário das lebres ás patas e dentes dos galgos.
15- Os Requeridos já demonstraram a sua indiferença relativamente às infracções legais que cometem.
16- Por carta datada de 29.01.2006, a Requerida B………. solicitou á GNR o destacamento de quatro dos seus efectivos " para a boa manutenção e realização da prova", a realizar no dia 19.03.2006, apesar da advertência feita por elementos da referida força policial do ano passado.
Cumpre agora conhecer do objecto do recurso, delimitado com está pelas conclusões das respectivas alegações (arts. 684.º n.º3 e 690.º n.º1 do CPC).
São-nos colocadas duas questões:
- Legitimidade activa do Ministério Público para a presente providência;
- Legalidade das corridas de galgos com lebres vivas.
*
Previamente não prescindimos do direito de, mesmo oficiosamente, proceder à análise da matéria de facto tida por provada (art. 712.º n.º2 e 4 do CPC).
É que não podemos olvidar que tais fatos foram provados face aos documentos dos autos e ao depoimento de três elementos da GNR, sendo dito que “os quais explicaram os factos de que têm conhecimento directo, em função do exercício das suas funções profissionais”. Que se veja, só os factos de 7, 8, 9, parte do 10 e 16 têm alguma conexão com a função da GNR.
Desde logo o disposto no art. 646.º n.º4 do CPC obriga-nos a ter por não escrita a matéria transcrita no facto 6: “As lebres utilizadas na corrida sofrem um tratamento cruel e prolongado, quer pela angústia e pânico que vivem antes e durante a corrida, quer pelo sofrimento físico provocado pelas mordeduras e espezinhar dos galgos, ficando, por vezes, vários minutos em agonia moribunda até à morte.”
Com efeito trata-se matéria puramente conclusiva, sendo que “tratamento cruel e prolongado” teria de resultar de factos alegados, dos quais se pudesse concluir que a sua execução era ou não cruel e prolongada.
A realidade de todos sabida é que as lebres em tais casos se destinam a ser apanhadas e mortas pelos cães, como é próprio da situação. Mortas com os dentes dos canídeos. Evidentemente com sofrimento para elas.
Assim o facto 6. passará a ter a seguinte redacção: As lebres utilizadas na corrida destinam-se a ser mortas pelos cães, com os dentes, o que lhes provoca sofrimento físico.
Ainda o facto descrito em 11 não pode ser aceite face ao disposto no art. 514.º n.º1 do CPC: “A utilização das lebres vivas é completamente desnecessária, pois as corridas podem realizar-se, os galgos correr e a assistência ulular com a performance destes, mediante a utilização de lebres mecânicas.”
Existe aqui completa confusão entre duas realidades distintas que o Tribunal não podia ter ignorado e que toda a gente conhece: a corrida de galgos em velocidade, dentro de uma pista, perseguindo uma lebre mecânica, actividade bem divulgada na Europa e Ásia (por exemplo em Macau) e a corrida de galgos com lebres vivas que não se destina a testar a velocidade, mas antes a busca e captura do animal, praticada pela Monarquia europeia desde há séculos, mais ligada à actividade venatória.
Assim a afirmação contida em tal artigo é destituída de qualquer fundamento, pelo que o facto será eliminado.
Por outro lado, também o mesmo art. 514.º nos permite acrescentar que a corrida de galgos com lebres vivas tem tradições em certas zonas do país desde a vinda dos Ingleses para Portugal, no século XVIII, sendo de prática frequente pelos últimos monarcas portugueses. Será tal facto aditado.
Temos, pois, como assente a seguinte matéria de facto:
1- Nos últimos anos, os Requeridos têm vindo a promover e a organizar a realização de corridas de lebres vivas com cães galgos, na freguesia de ………., Vila do Conde.
2- Tais corridas são presenciadas por milhares de pessoas, mediante o pagamento de um bilhete, no valor de alguns euros, que permite aceder ao recinto do espectáculo e assistir a este.
3- Sendo que os lucros daí provenientes revertem a favor da Requerida B………. .
4- Para o local do espectáculo e para nele participarem como actores principais são transportadas algumas dezenas de cães galgos e algumas dezenas de lebres vivas, as quais são previamente adquiridas pelos Requeridos.
5- A corrida de lebres vivas com galgos, propriamente dita, que é organizada e realizada pelos Requeridos, processa-se da seguinte forma:
- os requeridos soltam ou mandam soltar as lebres vivas no recinto do espectáculo, em princípio uma de cada vez;
- seguidamente, largam dois ou mais cães galgos para perseguirem cada uma das lebres;
- durante um determinado período de tempo, mais ou menos demorado, decorre a perseguição dos cães galgos à lebre que deles foge;
- a corrida termina, regra geral, com um dos canídeos a apanhar a lebre, a mordê-la e a matá-la à dentada, com o auxílio dos restantes e perante o gáudio dos espectadores;
- os galgos que se mostrem mais velozes e que consigam apanhar as lebres, competirão com outros, também eles vencedores, numa nova corrida, e assim sucessivamente, até ao apuramento dos galgos finalistas.
6- As lebres utilizadas na corrida destinam-se a ser mortas pelos cães, com os dentes, o que lhes provoca sofrimento físico.
7- A última dessas corridas organizada pelos Requeridos teve lugar no passado dia 13 de Março de 2005, pelas 9 horas, no campo de treino de caça nº .., da Zona de B1………., sito em ………., Vila do Conde.
8- Esse espectáculo foi organizado, não obstante a intervenção da GNR para que tal não acontecesse.
9- Com efeito, quer no dia anterior, quer no próprio dia das corridas, o Sr. Tenente de Infantaria da GNR, C………. e outros militares por ele comandados, deram conhecimento aos Requeridos de que as corridas de galgos com lebres vivas eram ilegais, pois violavam a Lei nº 92/95, de 12.09.95 (Lei de Protecção dos Animais), pelo que deveriam abster-se de a levarem a efeito.
10- Apesar dessa advertência, o espectáculo foi levado a efeito, com uma assistência entre 4 a 5 mil pessoas, tendo cada uma delas pago um bilhete no valor de 5,00 €, para verem uma largada de 35 lebres vivas para várias dezenas de cães, que esquartejaram, à mordedura, os pequenos lagomorfos.
12- Conforme já foi publicitado na imprensa local, nomeadamente no jornal “D……….", do dia 27.02.2006, encontra-se programada para o próximo dia 19.03.2006, pelas 10.00 horas, no Campo de Treino de Caça, da Zona de B1………., em ………., Vila do Conde, a "9ª Grande Corrida de Lebres", organizada pelos Requeridos.
13- Nesse dia, de acordo com o referido anúncio, serão largadas 32 lebres vivas, para apuramento de 8 galgos finalistas.
14- Como em anos anteriores, estas corridas terão uma assistência de alguns milhares de pessoas, processando-se nos mesmos moldes supra referidos, com o sacrifício impiedoso e sanguinário das lebres ás patas e dentes dos galgos.
15- Os Requeridos já demonstraram a sua indiferença relativamente às infracções legais que cometem.
16- Por carta datada de 29.01.2006, a Requerida B………. solicitou á GNR o destacamento de quatro dos seus efectivos " para a boa manutenção e realização da prova", a realizar no dia 19.03.2006, apesar da advertência feita por elementos da referida força policial do ano passado.
17- A corrida de galgos com lebres vivas tem tradições em certas zonas do país desde a vinda dos Ingleses para Portugal, no século XVIII, sendo de prática frequente pelos últimos monarcas portugueses.
*
Legitimidade activa do Ministério Público e interesse em agir.
Invoca este a seu favor o disposto no art. 26-A CPC: “Acções para a tutela de interesses difusos - têm legitimidade para propor e intervir nas acções e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à protecção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”
Ainda o disposto no art. 45.º n.º3 da Lei 11/87 de 7/4 (Lei de Bases do Ambiente): “Sem prejuízo da legitimidade dos lesados para propor as acções, compete ao M.º P.º a defesa dos valores protegidos põe esta lei, através, nomeadamente, dos mecanismos previstos na presente lei”. E ainda os arts. 3.º e 5.ºn.º1, e) do Estatuto do M.º P.º, redacção da Lei 60/98 de 27 de Agosto: “Compete ao M.º P.º ou tem intervenção principal nos processos nos casos previstos na lei, na defesa de interesses colectivos e difusos”.
Salvo o devido respeito, a legitimidade activa do M.º P.º e mesmo o interesse em agir, são manifestos.
Com efeito, em termos de legitimidade processual, interessa sobretudo a forma como a petição é formulada. Bem ou mal (que já será questão de fundo, do mérito) vem alegada a ofensa da Lei de Bases do Ambiente. Concretamente seria a defesa do componente ambiental natural Fauna [art. 6.º f) e 16.º]. E nesta estão claramente em causa os interesses colectivos e difusos.
Os interesses difusos correspondem a um interesse jurídico reconhecido e tutelado, cuja titularidade pertence a todos e a cada um dos membros de uma comunidade ou grupo, mas não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer um desses membros. O ambiente, a qualidade de vida e a saúde são bens jurídicos a que respeitam tais interesses, assim como a conservação da fauna e flora - são simultaneamente interesses não públicos, não colectivos e não individuais (Ac. RL de 20/6/2006, proc. 11260/2005-7, acessível em www.dgsi.pt, como todos os aqui citados de futuro).
O art. 52º, n.º 3 da C.R.P. alarga a legitimidade activa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua posição específica com os bens ou interesses em causa. E, de uma forma exemplificativa, enumera os seguintes interesses difusos susceptíveis de tutela: a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural.
A Lei n.º 83/95 de 31-08 (lei do direito de participação procedimental e de acção popular) veio regulamentar a acção popular especial para a tutela dos interesses difusos, e possibilitar que fossem interpostas acções no âmbito do contencioso administrativo, na jurisdição civil (cf. art.12º) e permitir a intervenção especial no processo penal.
Daí que a legitimidade difusa esteja intimamente ligada à acção popular e que o interesse difuso seja a refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada.
Com a legitimidade não se confunde o interesse em agir, outro dos pressupostos processuais que se traduz no interesse de estar em juízo ou de vir a juízo requerer algo.
Mantendo o requerente a posição de que a corrida de galgos é ilegal e não conseguindo obstar no ano anterior a realização da mesma, mesmo com intervenção da GNR, teria de vir a juízo pedir providência para que a mesma não ocorresse.
Tal como se refere no AC RP de 01-03-2001 –Proc. 1555/00- 3.ª Secção, que o M.º P.º alega para justificar a sua legitimidade: “Tal interesse processual, que a doutrina italiana denomina de interesse em agir e a alemã, de necessidade de tutela jurídica, consiste essencialmente como refere A. Varela (Manual de Processo Civil – 2ª ed. 179/180) “na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção” ou, por outras palavras “O A. terá interesse processual, quando a situação de carência, em que se encontra, necessita da intervenção dos tribunais.”
De forma idêntica, ensina Manuel de Andrade “é o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece” (cof. Noções – 2ª ed. – 79).
Tal como aí, também acompanhámos a orientação doutrinária que autonomiza o interesse em agir como pressuposto processual inominado (art. 494.ºC.P.C.), visto não ser taxativa a enumeração das excepções dilatórias enumeradas na lei, conduzindo a sua falta à absolvição da instância.
Mas sobre tal Acórdão duas curiosidades: a primeira é a de que foi o M.º P.º que suscitou a ilegitimidade (ou a falta de interesse em agir) da Associação Animal para a providência cautelar para proibição dos touros de morte em Barrancos; a segunda que no mesmo acórdão se afirma “parece-nos evidente que a defesa dos “direitos” dos animais com sede legal na Lei nº 92/95 de 12/9, cabe por direito próprio no elenco dos interesses difusos”, com a qual não se concorda.
Com efeito, como adiante se verá, não trata tal lei de interesses juridicamente reconhecidos e tutelados, cuja titularidade pertence a todos e cada um dos membros de uma comunidade ou de um grupo mas não são susceptíveis de apropriação individual por qualquer um desses membros. Conforme refere o Ac. do STJ de 19-10-2004, Proc. 04B3354 (Cons. SALVADOR DA COSTA) “o fim da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, não assente na ideia da titularidade de direitos por parte dos animais; é o de os proteger contra violências cruéis ou desumanas ou gratuitas, para as quais não exista justificação ou tradição cultural bastante, isto é, no confronto de meios e de fins ao serviço do Homem num quadro de razoabilidade e de proporcionalidade.”
Como acima se referiu, interesses difusos existem sim dentro da Lei de Bases do Ambiente e daí a legitimidade activa do M.º P.º.
Improcede, pois, a primeira questão suscitada.
*
Legalidade das corridas de galgos com lebres vivas.
Iniciando a questão, convém desde já esclarecer qual a legislação aplicável à situação: a Lei de protecção aos animais, Lei n.º 92/95 de 12 de Setembro e Lei da Caça, Lei n.º201/2005 de 24 de Novembro.
Está absolutamente excluída a Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87 de 7 de Abril).
Com efeito, tratando-se de lebres criadas em cativeiro, não fazem as mesmas parte da “fauna”, entendida esta como o conjunto das espécies animais características de determinada área, época ou meio ambiente específico. Assim, componente ambiental natural é efectivamente a fauna (art. 6.º), competindo a defesa da sua qualidade apropriada ao Estado, pelas medidas permitidas pelo art.7.º A legislação especial prevista no art. 16.º para promoção, salvaguarda e defesa da fauna não abrange seguramente a Lei de Protecção aos animais criados em cativeiro. Daí que não possam as proibições estabelecidas nesta ser consideradas ou conotadas com a Lei de Bases do Ambiente.
Em segundo lugar, seguimos aqui de perto a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, toda no mesmo sentido, atinente à questão do tiro aos pombos, pela simples razão de que, embora actividades distintas, tiveram o mesmo tratamento pelo legislador, sendo as disposições em que se defende a sua ilegalidade as mesmas que aqui estão em causa.
São estes os Acórdãos, todos da base de dados da DGSI:
-Ac. de 13/12/2000, Proc. 3282A00 (Cons. Lemos Triunfante);
- Ac. de 17/12/2002, Proc.2200A02 (Cons. Reis Figueira);
- Ac. de 3/10/2002, Proc.2662B02 (Cons. Ferreira de Almeida) e
- Ac. de 19/10/2004, Proc. 04B3354 (Cons. Salvador da Costa).
Vejamos então:
Em causa está a legalidade da organização de corridas de cães com lebres vivas e a sua eventual ilegalidade face à Lei 92/95.
Refere o artigo 1.º: “São proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal.
3. São também proibidos os actos consistentes em:
a)......
f) Utilizar animais em treinos particularmente difíceis ou em experiências ou divertimentos consistentes em confrontar mortalmente animais uns contra os outros, salvo na prática da caça.”
É este, pois o texto final da Lei 92/95, aprovado por maioria na Assembleia da República.
“No fundo, o que essa lei quis foi - assim acolhendo a doutrina do bem-estar dos animais, vulgarmente designada por «welfarista» -, que procura harmonizar a protecção dos mesmos com respeito de outros valores tutelados pelos ordenamentos jurídicos nacionais, foi prevenir os maus tratos sobre os animais, com proibição das práticas de crueldade e violência física e/ou psicológica tradutoras de degradação moral e "desumanidade" por banda dos respectivos fautores .”
O inicial projecto de lei nº 107/V da autoria do Deputado António Maria Pereira foi reduzido e reformulado, dando origem ao projecto de lei nº 530/VI. (Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 33, de 6 de Abril de 1995, pág. 462).
O artigo 1º deste projecto continha ostensivas diferenças em relação à Lei que veio a ser aprovada . Assim, o seu artigo 1º possuía a seguinte redacção:" são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões de um animal.
Confrontando a redacção primitiva com a versão final, verifica-se que os termos «sofrimento» e «lesões» passaram a ser qualificados, exigindo-se que o sofrimento seja" prolongado e cruel" e que as lesões sejam "graves" . Isto significa que a lei não proíbe, de forma absoluta, todo o sofrimento e todas as lesões infligidas aos animais.
Finalmente, o nº 3 do artigo 1º do projecto continha quatro alíneas que foram eliminadas na versão final: g)- caça cavalo; h)- criação de raposas e outros animais daninhos com o objectivo de posteriormente os caçar; i)- organização de corridas de cães com lebres vivas; j)- organização de provas de tiro a animais vivos.
Torna-se pois óbvio - pela própria evolução do processo de gestão legislativa - que o legislador não quis incluir na Lei nº 92/95, nomeadamente no seu artigo 1º, a proibição de organização de corridas de cães com lebres vivas. Na proibição da violência injustificada sobre os animais cominada nessa Lei não se englobam manifestamente as provas de corridas de galgos com lebres vivas.
Nem se diga que a supressão resulta da desnecessidade, face à redacção genérica do n.º1. É que pura e simplesmente a redacção final excluiu a matéria não aprovada, não aceite pela maioria, como se pode ler nos Diários da Assembleia da época (v. g. Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 88, de 17 de Junho de 1995, pág. 2955; nº 23, de 12/03/92, e nº33, de 08/04/95).
Para quem entenda que o elemento histórico da lei não é definitivo no sentido da legalidade destas corridas, teremos o elemento sistemático, que conduz à mesma conclusão. Manda-se atender a outras disposições legais, que não a lei interpretada, que disciplinam a mesma matéria ou matéria idêntica, na ideia de que o sistema jurídico deve ser coerente, não conferindo soluções diferentes para situações idênticas (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 183).
Com efeito, “a Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, que regia sobre o exercício da caça aquando da publicação da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, estabelecia, além do mais que aqui não releva, por um lado, no n.º 1 do seu artigo 30º, que as associações e os clubes de caçadores e de canicultores podiam ser autorizados a instalar e manter campos de treino destinados à prática, durante todo o ano, de actividades de carácter venatório, nomeadamente a de exercício de tiro e de treino de cães de caça nos termos em que viesse a ser regulamentado.
E, por outro, estabelecia no n.º 2 daquele artigo que nos campos de treino de caça somente eram autorizadas as largadas e o abate de espécies cinegéticas criadas em cativeiro.
O Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, primeiro diploma que regulamentou a Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, estabeleceu, por um lado, ser permitida a caça em cativeiro, designadamente para utilização em campos de treino de caça, mediante autorização da Direcção-Geral das Florestas, ouvida a Direcção-Geral da Pecuária sobre os aspectos sanitários (artigo 79º, n.ºs 1 e 2).
E, por outro, que a Direcção-Geral das Florestas podia constituir ou autorizar a instalação de campos de treino de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, durante todo o ano, nomeadamente o exercício de tiro com arma de fogo, arco ou besta, cetraria e treino de cães de caça, em termos a regulamentar por portaria do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação (artigo 80º).
Por seu turno, a Portaria n.º 816-B/87, de 30 de Setembro, estabelecia ser autorizável pela Direcção-Geral das Florestas às associações, sociedades ou clubes de caçadores e de canicultores legalmente existentes, a requerimento deles, a instalação de campos de caça destinados à prática de actividades de carácter venatório, nomeadamente o exercício de tiro com armas de fogo durante todo o ano e em todos os dias da semana (artigos 1º e 2º, n.º 1).
O mesmo regime de criação de caça e aves de presa em cativeiro foi mantido pelo novo regulamento da mencionada lei, o Decreto-Lei n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, que substituiu o Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, salvo o acrescentamento da finalidade de realização de corridas de lebres).
O referido regulamento foi, entretanto, substituído pelo Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, que manteve essencialmente o regime anterior relativo aos campos de treino de caça (artigos 87º e 88º).
No regulamento da lei da caça que se seguiu ao Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, ou seja, no Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto, continuou a constar o mesmo regime concernente à criação de caça em cativeiro e aos campos de treino de caça (artigos 87º e 88º).
E a Lei n.º 179/99, de 21 de Setembro, que estabelece as actuais bases de gestão sustentada dos recursos cinegéticos, substitutiva da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, manteve a vigência dos diplomas que a regulamentaram, incluindo o preceito que admite a reprodução, criação e detenção de espécies cinegéticas em cativeiro para utilização, além do mais, em campos de treino de caça, definidos como áreas destinadas à prática, durante todo o ano, de actividades de carácter venatório, nomeadamente o exercício de tiro e de treino de cães de caça e as provas de Santo Huberto quanto a essas espécies (artigos 2º, alínea l) e 27º, n.º 1).”
Hoje a Portaria 464/2001 de 8 de Maio define a criação da caça em cativeiro, com destino à utilização em campos de treino e repovoamento, além do mais, aí se prevendo a criação da lebre (leprus granatensis).
Por outro lado a actuas lei da caça, Lei 201/2005 de 24 de Novembro, preceitua no art. 55.º: “1—As associações de caçadores, os clubes de canicultores, os clubes de tiro e as entidades titulares de Zonas de caça podem ser autorizadas a instalar campos de treino de caça, nos termos a definir em portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas. 3- Nos campos de treino de caça são permitidas Competições desportivas envolvendo a utilização de Espécies cinegéticas criadas em cativeiro quando realizadas sob controlo das competentes confederações, federações ou associações e no estrito cumprimento dos respectivos regulamentos.”
Ainda os galgos sempre foram considerados cães de caça, salientando-se sobretudo na caça ao corricão (art. 84º- nºs 2 e 3), sendo esta aquela em que o caçador se desloca a pé ou a cavalo para capturar espécies cinegéticas apenas com o auxílio de cães de caça e com ou sem pau (art. 90º nº1, e).
Permita, pois, a caça à lebre com cães, a criação destas em cativeiro e a existência de provas nos campos de treino, não faria sentido que o legislador pretendesse considerar tal actividade ilegal.
Analisados, de acordo como art. 9.º do CC, os elementos histórico e sistemático, restará o elemento gramatical, sendo certo que da letra da lei deve, naturalmente, partir a interpretação. No entanto, esta não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento legislativo, não podendo ser considerado um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
“Ora, o preceito legal em análise começa por proibir todas as violências injustificadas contra animais. Assim, distingue a lei entre violências justificadas e violências injustificadas. Dá depois o conceito das violências injustificadas: actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado, ou graves lesões, a um animal.
Como no caso se inflige a morte pelos dentes dos canídeos, cabe logo perguntar o que deve entender-se por haver necessidade. A lei não dá o critério da necessidade.
No entanto, por força do próprio conceito, a necessidade não é coisa que exista em si, é sempre necessidade de alguma coisa, para alguma coisa ou algum fim. No nosso caso, o fim é a prática de corridas de galgos com lebres vivas.
Os animais não têm direitos, porque são irracionais (coisas móveis, na classificação da lei: art. 202 e 205 do CC), mas os homens têm deveres para com eles, porque são racionais.
E, neste âmbito, dos valores legais em confronto, o texto da Lei 92/95, mormente do seu art. 1, nº1, nada nos esclarece, em termos de saber quando é que uma violência sobre animais, em termos de lhe causar a morte (ou sofrimento cruel e prolongado ou lesões graves), é necessária ou não.
Quer isto dizer que o elemento gramatical de interpretação, por si só, não chega para sabermos se a referida prática do tiro aos pombos em voo é considerada lícita ou ilícita à face da lei.”
Ficou agora claro que, para a Lei, causar a morte (sofrimentos, etc.) a animais, "sem necessidade", significa causar a morte a título absolutamente gratuito e sem qualquer finalidade extra, sendo causa justificativa a competição de galgos com animais vivos: na ideia da lei, a prática daquele desporto constitui justificação para a morte dos animais.
O costume não age aqui, directamente e por si próprio, como fonte de direito, mas pela via de uma lei que o reconhece e não proíbe.” (Ac. de 17/12/2002).
Conclui-se, então que as corridas de galgos com lebres vivas são permitidas por lei, pois que o legislador as não quis proibir. A maioria que aprovou a lei não aceitou a proibição que foi proposta e retirou-a da lei.
Não pode agora pretender-se com uma interpretação da lei ao arrepio da “mens legislatoris”, fazer regressar à lei coisa que dela foi voluntariamente excluída.
Seria fazer entrar pela janela aquilo que se fez sair pela porta.
Neste mesmo sentido também os pareceres de Pareceres dos Professores Freitas do Amaral e Rebelo de Sousa, ao processo 2200/A/02 do STJ.
Inexistindo proibição legal de corridas de lebres vivas com galgos, não podia a providência cautelar ter sido decretada como o foi, nem a GNR podia ter impedido a sua realização sem qualquer ordem judicial válida.
DECISÃO:
No provimento do agravo se revoga o despacho que decretou a presente providência, denegando-se totalmente a mesma.
Sem custas, dada a isenção do M.º P.º
*
Atendendo a que o decretamento da providência foi comunicado à GNR, ordena-se que a mesma seja notificada da sua revogação.
PORTO, 10 de Abril de 2007
Cândido Pelágio Castro de Lemos
Mário de Sousa Cruz
Augusto José Baptista Marques de Castilho