Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
896/07.5TAMTS.P1
Nº Convencional: JTRP00043605
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: FRAUDE SOBRE MERCADORIA
ASSISTENTE EM PROCESSO PENAL
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
Nº do Documento: RP20100310896/07.5TAMTS.P1
Data do Acordão: 03/10/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO - LIVRO 417 - FLS 48.
Área Temática: .
Sumário: O assistente, conquanto titular da marca contrafeita, carece de legitimidade para recorrer no que respeita ao crime de fraude sobre mercadorias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 896/07.5TAMTS.P1
.º Juízo do TIC do Porto

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


Pela B………., sociedade comercial Japonesa, foi apresentada queixa contra “C………., Lda”, em 12/03/2007, pela prática dos crimes de contrafacção e uso ilegal de marca, p. e p. pelo art.º 323º, als. a) e c) do C.P.I., fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo art.º 23º do DL 24/84, de 20 de Janeiro, e de concorrência desleal, previsto na al. a) do art.º 317º, punível como contra-ordenação nos termos do art.º 331º, ambos do C.P.I.
Efectuado Inquérito, pelo MºPº foi proferido despacho de arquivamento, com base nas declarações da arguida D………. “as quais não são contrariadas por qualquer outro elemento de prova, o facto de ter guardado as caixas no armazém da sua empresa, impedindo a sua introdução no mercado, e ainda o teor do relatório pericial, entende-se que não existem indícios suficientes da prática dos ilícitos criminais e da contra-ordenação em causa, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 277º nº2 do CPP, se determina o arquivamento dos autos”.
Pela queixosa, requerida a constituição como assistente, foi pedida a realização de Instrução pela prática dos supra referidos crimes de contrafacção, uso ilegal de marca e fraude sobre mercadorias.
Efectuada esta, no .º Juízo do TIC do Porto, processo supra referenciado, foi proferida Decisão Instrutória de não pronúncia, com o seguinte teor:
“Pretende a assistente a pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes de contrafacção e uso ilegal de marca, p. e p. pelos artigos 323°, als. a) e c) e 324°, do CPI e de um crime de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo artº 23°, nº 1 al. a), do DL 28/84.
Como se refere no AC da RL, n°1547/2007-3, datado de 21-03-2007, in www.dgsi.pt, “em causa, nos autos, estão, por um lado, a matéria relativa aos denominados crimes económicos, objecto de previsão pelo Dec.Lei 28/84, de 20/01, por outro e também, a área criminal regulada pelo Código da Propriedade Industrial, aprovado pela Lei 36/03, de 5/03. O primeiro dispõe sobre os ilícitos contra a economia, cujo bem ou interesse protegido é o do consumidor em geral ou, se se quiser também, a boa-fé nas relações negociais em geral. Daí que e, em geral também, não esteja em causa qualquer marca qua tale de qualquer produto ou bem adquirido ou a adquirir. Já o CPI regula e tem por finalidade - “relativamente a todas as pessoas, singulares ou colectivas, portuguesas ou nacionais dos países que constituem a União Internacional para a Protecção da Propriedade Industrial – artº 3° - “garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e desenvolvimento da riqueza”, de acordo com o, desde logo e expressamente consagrado no seu artº 1°, garantindo assim que “a veracidade e autenticidade dos títulos da sua concessão assegura aos titulares o seu uso exclusivo por tempo indefinido” – artº 4° nºs 2 e 3 seguinte. Adianta o artº 7° no 1 que “a prova dos direitos de propriedade industrial faz-se por meio de títulos, correspondentes às suas diversas modalidades”, os quais “devem conter os elementos necessários para uma perfeita identificação do direito a que se referem” – nº 2. De acordo com o disposto no art° 29° seguinte, “os actos que devam publicar-se são levados ao conhecimento das partes, e do público em geral, por meio da sua inserção no Boletim da Propriedade Industrial” – nº 1 - sendo que “as partes ou quaisquer outros interessados podem requerer, junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, que lhes seja passada certidão do despacho final que incidiu sobre o pedido e respectiva fundamentação, mesmo antes de publicado o correspondente aviso no Boletim da Propriedade lndustrial” – nº 3 - podendo “qualquer interessado..., requerer certidão das inscrições efectuadas...” - n° 4 - tudo isto “sem prejuízo” de “o Instituto Nacional da Propriedade Industrial pode(r) fornecer informações sobre pedidos de registo de marcas, de nomes e de insígnias de estabelecimento, de logótipos, de recompensas, de denominações de origem e de indicações geográficas, mesmo antes de atingida a fase de publicidade” – nº 6. Brevitatis causa diríamos ainda e também que, de acordo com o disposto no art° 224° seguinte, o registo confere ao seu titular o direito de propriedade e do exclusivo da marca para os produtos e serviços a que esta se destina”.
Feitos estes considerandos genéricos, atentemos nos crimes imputados aos arguidos:
No que toca ao crime de contrafacção, imitação ou uso ilegal de marca, p. e p. nos termos do artigo 323° do Código da Propriedade industrial, refere este artigo que, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de muita até 360 dias quem, sem consentimento do titular do direito, contrafizer, total ou parcialmente, ou, por qualquer meio, reproduzir uma marca registada (al a)); usar as marcas contrafeitas ou imitadas (al. c).
São elementos objectivos deste crime, a prática de uma das situações descritas nas alíneas acima referidas, sem consentimento do titular do direito.
No que se refere ao tipo subjectivo do crime, verifica-se a exigência de dolo.
Relativamente ao bem jurídico protegido por esta norma, temos que é a propriedade da marca registada; a confiança dos consumidores na genuinidade e qualidade dos produtos, susceptíveis de ser defraudadas pela aparência imitativa da mercadoria e idónea a enganar. O interesse aqui protegido é essencialmente o do consumidor, a boa-fé nas relações negociais.
Relativamente ao crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos contrafeitos, p. e p. nos termos do artigo 324° do Código da Propriedade industrial, dispõe este artigo (anterior 264°, 2, do Código da Propriedade Industrial que):
“É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321° a 323°, com conhecimento dessa situação.”
São elementos objectivos deste crime:
- A venda, colocação em circulação ou ocultação de produtos contrafeitos;
- Por qualquer dos modos e condições referidas nos artigos 321° a 323°;
- O agente tenha conhecimento da situação.
Em relação ao tipo subjectivo do crime, preenche-se também o mesmo com o dolo, sendo que o bem jurídico protegido por esta norma é a marca registada, assegurando-se o interesse do respectivo titular.
Analisemos agora o crime de fraude sobre mercadorias.
De acordo com o referido art. 23°, 1, “quem, com intenção de enganar outrem nas relações negociais, fabricar, transformar, introduzir em livre prática, importar, exportar, reexportar, colocar sob um regime suspensivo, tiver em depósito ou em exposição para venda, vender ou puser em circulação por qualquer outro modo mercadorias:
a) Contrafeitas ou mercadoria pirata, falsificadas ou depreciadas, fazendo-as passar por autênticas, não alteradas ou intactas; (...) será punido com prisão até 1 ano e multa até 100 dias, salvo se o facto for previsto em tipo legal de crime que comine pena mais grave”.
Refira-se que, entre o crime de contrafacção acima analisado e o crime de fraude sobre mercadorias verifica-se uma relação de consumpção, devendo o facto ser punido como crime de fraude, em caso de concurso aparente, pois a norma que prevê este tipo de ilícito promove a defesa de bens jurídicos mais extensos — Acs da RP, de 2/6/99, CJ, ano 99, t. lII, p. 237, e de 12/07/00, CJ, ano 2000, t. IV, p. 223 (este último considerando também verificar-se um concurso aparente).
De acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Setembro de 1995, a contrafacção e a imitação “traduz-se na reprodução ou cópia servil de outra marca; esta na semelhança com outra, que leva à confusão do consumidor ou de quem vai receber o serviço, partindo a lei da sua distracção, no sentido de que o imitador, colocando certas diferenças materiais, procure lançar a confusão” (in BMJ n.º 449, pág. 365).
De referir ainda que, “o público que a lei protege com registo da lei das marcas é o público em geral e não o público especializado, visto ser aquele que facilmente pode ser vítima de confusão, até por reserva mental ou intermediários da venda” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 2003, in http://www.dgsi.pt — Processo n.º 03A545.
Analisados os tipos legais verifiquemos a prova dos autos:
Em primeiro lugar cumpre referir que, muito embora o requerimento de instrução contenha os requisitos mínimos para ter sido recebido, não concretiza de forma concreta, no tempo e no espaço a conduta dos arguidos, nem sequer a individualizando. Refere “a arguida”, não identificando, com precisão, a quem se refere, apenas precisando tal na parte final do seu requerimento.
No que toca ao despacho de arquivamento sindicado, importa em primeiro lugar referir que, o que está em causa por suspeita de contrafacção, são caixas para acondicionamento para relógios de pulso, com os dizeres “E……….”, importadas da China, pela empresa arguida.
A queixosa invoca que essas caixas induziriam em erro o consumidor, suspeitando ainda que pudessem ser usadas para comercializar relógios, também eles contrafeitos.
Foi realizada perícia às ditas caixas, cujo auto se encontra junto a fls. 199, concluindo o perito existirem grandes diferenças entre as caixas originais da marca e as apreendidas, não sendo estas susceptíveis de induzir em erro o consumidor.
A arguida D………. referiu que encomendou as caixas a uma empresa chinesa, por razões de contenção de custos, pedindo para ser grava da palavra “E……….” nas caixas, destinando-se as mesmas a serem oferecidas a clientes. Reitera que apenas comercializa relógios genuínos daquela marca.
Diz o assistente no seu requerimento de instrução que o despacho de arquivamento assenta num erro manifesto na apreciação do relatório pericial dos autos, assistindo-lhe razão, em parte.
Com efeito, compulsados os autos e analisado o referido auto de perícia verifica-se que do mesmo consta que a caixa não é identificada como modelo da colecção “E……….” e apesar de ter qualidade considera-a como contrafeita, referindo mais à frente e entrando em alguma contradição com o que disse atrás “que não pode afirmar se é contrafeito, porque não possui conhecimentos profundos, mas reconhece que não há semelhança entre esta caixa e as caixas originais da “E……….”. Conclui que lhe parece não existir o crime de contrafacção.
Em instrução foi produzida prova, constante dos autos a fls. 356, prestada pelo mesmo perito que assinou o auto de fls. 199, que reitera, dadas as diferenças substanciais entre as caixas apreendidas e as originais, não ser possível que os consumidores sejam induzidos em erro, em virtude de as diferenças serem visíveis e notórias.
Foi emitido igualmente parecer, junto aos autos a fls. 357, pela consultora técnica indicada pelos arguidos, que assinou o supra referido auto, reiterando aquela, igualmente, não existir qualquer risco objectivo, por parte do consumidor, de confusão entre as caixas apreendidas e as originais.
A lei define no art. 283°, n.º 2 do CPP, o que se considera indícios suficientes, ou seja, o conjunto de elementos dos quais resulte a probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
A prova indiciária não conduz a um julgamento de certezas. A prova indiciária contém, apenas, um conjunto de factos conhecidos que permitirão partir para a descoberta de outro ou outros, que deixarão de se mover no campo das probabilidades para entrarem no domínio das certezas. Contudo, o indício é (em si) um facto certo do qual, por interferência lógica baseada em regras da experiência, consolidadas e fiáveis, se chega à demonstração do facto incerto, a provar segundo o esquema do chamado silogismo judiciário.
Por indiciação suficiente, entende-se a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova existentes, uma pena ou medida de segurança. A prova é a certeza dos factos, tendo sempre de ser plena, conduzir à convicção e não à simples admissão de maior probabilidade. Provado e provável são realidades diametralmente opostas e inconciliáveis, em termos de convicção, tanto como são contrários os conceitos certeza e dúvida.
(...) A prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão da causa. Tão-pouco determina uma presunção legal, pois que a prova que pode servir de fundamento à decisão judicial é somente a que tiver sido produzida ou examinada na discussão da causa (art. 355°), em audiência, e não a que, para fins intermédios do processo, consta do inquérito ou da instrução. A natureza indiciária da prova significa que não se exige prova plena, mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal. (vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, pág. 99 e 100).
Do referido preceito, conjugado com a noção de suficientes indícios, dada pelo art. 283°, nº 2, do CPP, resulta pois, que a lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança, não impondo, porém, a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final.
A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos constantes da acusação (vide Prof. Germano Marques da Silva, in loc. cit., pág. 179).
Compulsados os autos e analisada a prova neles produzida, entendemos que deve ser mantido o despacho de arquivamento, pois, analisada a prova documental, preponderante, dados os ilícitos em causa e as explicações dos arguidos, bem como a prova produzida nesta fase processual, verifica-se que a mesma é manifestamente insuficiente para legitimar uma decisão de pronúncia.
Com efeito, da análise a essa mesma prova, não consegue o tribunal apurar se foram os arguidos ou não os agentes da contrafacção da mercadoria, existindo uma dúvida fundamentada e não solucionável.
Esta dúvida, em sede de Direito Processual Penal, e vigorando o princípio “in dubio pro reo” em matéria de prova, deve ser decidida em sentido favorável ao arguido. O princípio da livre convicção constitui regra de apreciação da prova em Direito Penal para conduzir à condenação. Tal prova deve ser plena, pelo que, na decisão de factos incertos, a dúvida determina necessariamente a absolvição, de harmonia com o princípio da inocência que enforma também o direito processual penal e tem consagração constitucional (artigo 32°, da Constituição). Assim sendo, na impossibilidade de determinação de factos que possibilitam imputar aos arguidos a prática deste crime, bem como de quaisquer outros elementos fundamentais à formação de um juízo de censura pela actuação do mesmo, susceptíveis de determinar a aplicação de uma sanção penal, importa concluir pela sua não pronúncia, pois não estão demonstrados os requisitos dos tipos legais acima referidos, especialmente no que toca ao dolo.
Assim, e pelas razões enunciadas, determino o oportuno arquivamento dos autos.”
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Desta Decisão recorreu a assistente B………., formulando as seguintes conclusões:
“1 – Falta à decisão recorrida a consideração, quer das regras de experiência comum, quer do uso adequado e prudente das presunções naturais.
2 – O Tribunal a quo assenta a sua decisão na prova documental produzida, bem como nas explicações dos arguidos.
3 – Acontece que, para além de faltar à decisão recorrida a necessária e devida fundamentação da não pronuncia dos Arguidos, a mesma acaba por incorrer num manifesto erro na apreciação da prova.
4 – Com efeito, o Tribunal a quo acolhe as conclusões da perícia realizada aos produtos sub judice (caixas para acondicionamento de relógios de pulso), fazendo, no entanto, notar, e expressamente, que a Assistente, ora Recorrente, tem razão, em parte, quando sustentou (no requerimento de abertura de instrução) que o despacho de arquivamento assenta num erro manifesto na apreciação do relatório pericial dos autos.
5 – Há um facto incontornável, que o Tribunal a quo deveria, de modo próprio, ter em consideração: os produtos sub judice reproduzem a marca “E……….”.
6 – Não estão em análise as caixas de acondicionamento dos relógios – nomeadamente as eventuais diferenças das caixas sub judice e as caixas originais – mas a reprodução da marca “E……….”, o que, por si só, configura a contrafacção da mesma marca.
7 – Consequentemente, são manifestamente evidentes as possibilidades do consumidor médio laborar em erro ou confusão ou mesmo de adquirir os produtos sub judice na convicção de estarem a comprar produtos autênticos (crime de fraude sobre mercadorias).
8 – Há que sublinhar o facto da marca “E……….” ser uma marca notória, notoriedade que constitui facto público e notório, também em Portugal.
9 – A reprodução da marca “E……….” nas caixas de acondicionamento de relógios é, manifestamente, apta a potenciar situações de confusão por parte dos consumidores ou – o que é também relevante em termos legais – de indevida associação de tais produtos à Recorrente.
10 – Precisamente pelo cotejo da prova documental junta aos autos, constata-se a existência de um erro manifesto na apreciação da prova porque a reprodução da marca “E……….” nos produtos em causa representa, indubitavelmente, a contrafacção da mesma marca, julgamento este que, respeitosamente, a Recorrente espera de V. Exas.
11 – O Tribunal a quo, ao estribar-se na prova documental junta aos autos, acaba por perfilhar um entendimento contraditório e incorrecto do ponto de vista da subsunção dos factos ao Direito.
12 – E, nessa medida, o “simples” facto de existir uma reprodução da marca “E……….” nos produtos sub judice deveria ter sido entendido como perfeitamente suficiente para a integração jurídica do mesmo no crime de contrafacção.
13 – Por outro lado, o Tribunal a quo parece afastar a verificação dos ilícitos criminais em causa atendendo aos seus tipos subjectivos.
14 – A “mera” reprodução da marca “E……….” nos produtos sub judice integra os ilícitos previstos no art.º 323.º, al. a) e c) do Código da Propriedade Industrial, não havendo, pois, discussão possível acerca da bondade da actuação dos Arguidos nessa matéria, tanto mais que se trata de uma marca notória.
15 – Assinale-se que, também que, no que toca ao crime de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo art.º 23.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, até a negligência é punível.
16 – Na consideração, quer dos ilícitos previstos e punidos no art.º 323.º, al. a) e c) e no art.º 324.º do C.P.I., quer no art.º 23.º, n.º1, al. a) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro, o Tribunal a quo, devia ter apelado, justamente, às regras de experiência comum e ao uso adequado e prudente das presunções naturais.
17 – Os arguidos são profissionais do sector do comércio de relojoaria e, nessa qualidade, sempre lhes seria assacável a elementar obrigação de redobrar os cuidados na comercialização desses produtos; sobre um comerciante impende, como é razoável entender-se, um especial dever de cuidado relativamente à mercadoria que é colocada no mercado pelo mesmo, especialmente tratando-se de produtos de uma marca – “E……….” – que é notoriamente conhecida pelo publico consumidor em geral e, por maioria de razão, pelos comerciantes dos produtos do género.
18 – Ainda sobre a matéria da motivação subjectiva inerente ao tipo criminal, e agora, em concreto, ao do art.º 324.º do C.P.I., é relevante ter-se em atenção que “No que concerne ao elemento subjectivo de tal tipologia legal, como anota José Mota Maia relativamente àquele art.º 324.º, o dolo específico, que havia sido introduzido no art.º 264.º do Código de 1995, foi suprimido, “passando a ser exigido, apenas, o dolo genérico definido pela expressão” ”com conhecimento da situação”. Nestes termos, considera-se que o acto se integra no ilícito criminal previsto na disposição em análise quando quem o pratica tiver conhecimento de que os produtos que vende, coloca em circulação ou oculta, resultam da violação dos direitos exclusivos conferidos pela patente, pelo modelo de utilidade, pelo registo de topografia do produto semicondutor, ou pelo registo de marca. Reconhecendo-se que “a interpretação literal do referido dolo genérico pode conduzir a uma perda de eficácia na aplicação prática da disposição em apreço”, a punição de quem realizou os actos previstos no artigo em referência, como afirma aquele Ilustre Autor, “é aplicável quando a pessoa que praticou aqueles actos conhecia, ou havia razões válidas para conhecer, a situação ilícita dos respectivos produtos” – cfr. “Propriedade Industrial”, Volume II, “Código da Propriedade Industrial Anotado”, págs. 583 e seg..
Há dolo, no caso do crime ora em apreço, quando se quis o resultado, quando se previu a sua ocorrência ou quando se assumiu o risco da sua produção. Pode, pois, o dolo revestir qualquer das suas modalidades descritas no art.º 14.º: directo (o agente prevê e tem como fim a realização do acto criminoso), necessário (o agente sabe que, como consequência necessária da conduta que resolve empreender, realizará um acto criminoso, não se abstendo mesmo assim de a empreender) e eventual (o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo de a empreender e conformando-se com a produção do resultado)” (Ac Relação de Évora, junto como Doc. n.º 2).
19 – O entendimento perfilhado na decisão instrutória padece de erro notório na apreciação da prova, incorrecta subsunção da matéria de facto ao Direito e de incorrecta aplicação da lei, acabando por violar o disposto nos art.ºs 323.º, als. a) e c) e 324.º do Código da Propriedade Industrial e art.º 23.º, n.º 1, al. a) do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.”
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Em 1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso, escrevendo nomeadamente:
“(…) com referência à “fraude sobre mercadorias” (art.º 23° do DL nº 2 8/84, de 20/01), quer relativamente à hipótese de “marca contrafeita ou imitada e sua colocação em circulação” (arts.°323° e 324° do CPI/DL nº 36/2003, de 05/03, ambos em conjugação com o art.º 245° do mesmo diploma), a cópia/contrafacção ou a imitação não bastam, exigindo-se sempre semelhança ou verosimilhança, por forma a confundir o consumidor, fazendo passar a mercadoria por autêntica.
Ora, estribados na perícia e restantes elementos plasmados nos autos, há dúvidas que tal se tenha verificado no caso presente.
Estas dúvidas, em termos de materialidade fáctica, não são agora ultrapassáveis e, como tal, só podem ser valoradas pro reo.”
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Os arguidos nos presentes autos, contra alegaram, defendendo igualmente a improcedência do recurso.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso, escrevendo nomeadamente:
“Pelo exposto, somos de parecer que, embora por motivos diferentes dos constantes da decisão recorrida, não há razões para que as arguidas sejam pronunciadas, pois:
- quando apresentada a queixa pelos crimes p. e p. nos termos dos art.ºs 323º e 324.º do CPI, já tinha caducado o respectivo direito, por força do disposto nos art.ºs 329.º do CPI e 115.º, n.º1 do C. Penal;
- a queixosa carece de legitimidade para se constituir assistente relativamente ao crime de fraude sobre mercadorias (art.º 23.º do DL. 28/84, de 20/1), tendo em conta o disposto no art.º 68.º, n.º 1 do C.Penal.
- de qualquer modo, os autos não revelam indícios suficientes de que as arguidas, ao pretender oferecer as caixas portadoras do uso ilegal da marca E………., tivessem intenção de enganar os clientes que adquirissem os relógios E………. .”
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A recorrente respondeu ao Parecer, reiterando o alegado em recurso.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que a recorrente pretende suscitar a questão da existência de indícios suficientes da prática dos crimes de contrafacção e uso ilegal de marca, e fraude sobre mercadorias.
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Na origem de todo o procedimento documentado nos autos, está a apreensão, na F……….., “de 26 vols. contendo 1850 caixas para relógios com a marca E……….”, por suspeita de contrafacção.
No seu Parecer, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, suscita uma questão prévia até este passo do procedimento nunca suscitada (embora ela se reporte ao seu início):
- a extinção do direito de queixa no que respeita aos crimes previstos no Código de Propriedade Industrial – os crimes de contrafacção e uso ilegal de marca, por a queixa ter sido apresentada, para além do prazo de que a queixosa dispunha para esse efeito.
Efectivamente, dispõe o art.º 329º do C.P.I. que o procedimento por crimes previstos naquele Código depende de queixa, tratando-se, pois, de crimes particulares.
Ao prazo para apresentação dessa queixa, aplica-se o regime geral, previsto no art.º 115º do CP, sendo de 6 meses a contar da data em que o seu titular teve conhecimento dos factos e dos seus autores.
A apreensão de “26 vols. contendo 1850 caixas para relógios com a marca E……….” – tal como consta do respectivo auto, a fls. 50 – foi efectuada a 2 de Agosto de 2006.
A comunicação ao representante legal da marca foi efectuada por correio electrónico em 10/08/2006, tendo sido respondida a 17/10/2006 (fls. 53), onde se faz referência, inclusive, a estarem “já em curso conversações com os mandatários do importador, tendo em vista uma resolução extrajudicial deste assunto”.
A queixa só foi apresentada em 12/3/07 (7 meses e 2 dias depois).
Na sua resposta ao Parecer, a recorrente afirma que “foi tempestivamente apresentada a queixa-crime, nos termos e para os efeitos do art. 115º, nº1 do Código Penal (por lapso imputável à F………., apenas foi possível contactar a ora Recorrente – única e verdadeira titular dos registos das marcas infringidas – em 12 de Setembro de 2006, data em que a mesma foi informada, pela primeira vez, da retenção da mercadoria sub judice – vd. Doc. nº 7 junto à queixa-crime).
Não se lhe pode dar razão.
A demora na apresentação da queixa não se pode atribuir “a lapso imputável à F……….” (não se explica, aliás, em que consistiria o mesmo).
O sujeito a quem foi efectuada a comunicação, na qualidade de representante legal da marca, nunca negou essa qualidade, pelo contrário, na supra referenciada resposta constante de fls. 53, assume-a, aludindo, inclusive, a “conversações” para resolução extra-judicial (sem necessidade de queixa-crime, depreende-se).
O documento constante de fls.36, e que a recorrente pretende usar como prova de que a queixa foi apresentada tempestivamente, encontra-se em Língua Inglesa (desacompanhado da devida tradução), pelo que não é apto a valer como meio de prova.
De qualquer modo, esse documento que parece consistir numa comunicação entre esse representante legal e a sociedade detentora da marca no Japão, não relevaria quanto à tempestividade da queixa; aliás, se em 17/10/2006 não existisse já um conhecimento por parte de quem, em Portugal, representava a firma detentora da marca, como poderiam estar a decorrer conversações para uma resolução extra-judicial do assunto?
Em conclusão, quando a queixa foi apresentada, já se mostrava extinto o respectivo direito, pelo que faltou esse requisito de procedibilidade, questão do conhecimento oficioso, a todo o tempo, mesmo nesta fase tardia, já em recurso (é, porém, óbvio que a mesma deveria ter sido apreciada pelo MºPº no início da fase de Inquérito, ou – não o tendo sido - pelo Juiz de Instrução, nessa fase processual).
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Quanto ao crime de fraude sobre mercadorias, defende o Sr. Procurador-Geral Adjunto que a queixosa “carece de legitimidade para se constituir assistente, tendo em conta o disposto no art.º 68º, nº1 do CPP” (não elucida, porém, qual a consequência processual que pretenderia retirar, nesta altura, do invocado).
Contrapõe a recorrente que “tem legitimidade para se constituir como assistente (…) (os danos e prejuízos derivados do mesmo crime reflectem-se no plano de um interesse público – o interesse da confiança dos consumidores – mas também na esfera do interesse privado do titular do registo da marca contrafeita)”.
Ambos não atentam, porém, em que a questão da constituição da recorrente como assistente, nos autos, já se não pode colocar.
O despacho que a admitiu, transitou, formando caso julgado intra-processual (caso julgado formal).
O seu direito a intervir como assistente está, pois, consolidado, não sendo susceptível de alteração nesta fase processual.
Do que a recorrente não dispõe é de legitimidade para recorrer, no que respeita ao crime de fraude sobre mercadorias.
Trata-se de um crime de natureza pública, incluído em legislação penal especial - o DL 28/84 de 20 de Janeiro -, na subsecção dos crimes contra a economia, em que se visa proteger, por um lado, a confiança do consumidor (e restantes operadores económicos) na genuinidade e autenticidade dos produtos em causa e, por outro, o património desses consumidores” (e não o interesse do titular da marca contrafeita, como pretende a recorrente).
Isso mesmo se retira do preâmbulo do referido Decreto-Lei, ao justificar-se o acrescento deste tipo aos restantes destinados ao “combate à delinquência económica”:
“Alargou-se, porém, a protecção penal a factos constitutivos de falsificação, contrafacção ou depreciação de outros bens e mercadorias, por não se ver razão para a excluir quando, como disse, estão em causa o valor da confiança e a protecção do património dos lesados com esses factos, insuficientemente protegidos com as formas típicas do crime de burla do Código Penal em vigor e na linha do crime de fraude na venda que o Código Penal de 1886 previa”.
É com base nesta interpretação que se tem vindo a decidir – maioritariamente - na jurisprudência, a existência de uma relação de concurso real entre este crime e os de contrafacção (e venda, ou circulação ilegal de produtos contrafeitos).
Estes, tipificados no Código de Propriedade Industrial, visam proteger interesses individuais ou particulares como sejam a actividade industrial e os seus processos e resultados criativos, designadamente o direito de patentes e de marcas, de nome e insígnia do estabelecimento e das denominações de origem, com incidência no património das pessoas singulares ou colectivas que se dedicam àquela actividade.
Especificamente, no caso sob decisão, e no que respeita à contrafacção, o interesse particular a proteger seria – se a firma sua detentora tivesse, atempadamente, desencadeado o respectivo procedimento criminal – o da marca de relógios E………. .
(Nesta fase processual, e no contexto desta decisão, incorrer-se-ia, aliás, numa inaceitável incongruência, caso se considerasse que a recorrente não cumpriu as condições para desencadear e continuar o procedimento criminal pelos crimes particulares que protegem directamente os seus interesses, e pudesse intervir na continuação do procedimento criminal pela infracção de natureza pública que visa proteger interesses supra-particulares, de ordem pública).
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Nos termos relatados, decide-se – com fundamentos diversos dos exarados no despacho recorrido – julgar não provido o recurso, declarando-se:
- extinto o direito de queixa da assistente, quanto ao procedimento criminal pelos crimes de contrafacção e uso ilegal de marca, p. e p. pelo art.º 323º, als. a) e c) do C.P.I.
- a ilegitimidade da assistente para recorrer da não pronúncia, pela prática do crime de fraude sobre mercadorias, p. e p. pelo art.º 23º do DL 24/84, de 20 de Janeiro.
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Custas pela recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 3 UC’s.
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Porto, 10/03/2010
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho