Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0321068
Nº Convencional: JTRP00036329
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: CHEQUE
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RP200304010321068
Data do Acordão: 04/01/2003
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recorrido: 4 J CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CPC95 ART45 N1 ART46 C ART467 N1 C.
Sumário: O cheque prescrito enquanto documento particular assinado pelo devedor no âmbito das relações credor originário/devedor originário em que se encontra para execução da obrigação que lhe está subjacente e porque o exequente alegou, no requerimento executivo, a relação causal, vale como título executivo, nos termos do artigo 46 alínea c) do Código de Processo Civil
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
M....., L.DA, com sede na Rua....., no....., instaurou, no Tribunal Judicial daquela Comarca, depois distribuída ao -º Juízo Cível, acção executiva contra JOSÉ....., residente na Avenida......, ......, para obter certo o pagamento da quantia de € 10.914,02, correspondente ao capital em dívida, no montante de € 8.066,12, e aos juros vencidos que liquidou em € 2.847,90, bem como os juros legais vincendos sobre aquele capital.
Para tanto, alegou que forneceu bens ao executado de que resultou uma dívida para pagamento da qual este preencheu e entregou à exequente o cheque dado à execução, no montante de 1.617.112$00, por ele sacado sobre a .../Banco....., com data de 15/5/97, o qual foi devolvido por falta de provisão no dia seguinte.
Notificada para esclarecer se pretendia excutir o cheque enquanto “título de crédito ou documento de crédito”, a exequente informou que o cheque foi apresentado “na qualidade de documento particular que importa e titula o reconhecimento de uma dívida”.
Por douto despacho de fls. 11 a 14, foi indeferido liminarmente o requerimento executivo, nos termos do art.º 811º-A, n.º 1, al. a) do CPC, em virtude de se ter entendido que o cheque não comprova a existência de uma obrigação pecuniária por parte do executado.
Não se conformando com essa decisão, a exequente interpôs recurso de agravo e apresentou a respectiva alegação concluindo do seguinte modo:
1. O M.mo Juiz a quo não tomou em linha de conta todos os factos enunciados pela exequente na redacção do seu requerimento executivo e, posteriormente, na sua resposta ao despacho de fls. 8 dos presentes autos;
2. Comprometendo em definitivo, e sem qualquer razão, o sucesso da presente execução;
3. Quando é certo que a agravante na redacção do seu requerimento executivo invocou e demonstrou a relação causal subjacente à emissão do cheque, dele constando a razão de ordem de pagamento, comprovando a existência de uma obrigação pecuniária por parte do executado.
4. Com efeito, a recorrente, na redacção dos art.ºs 2º, 3º e 5º do seu requerimento executivo invoca a razão de ordem do pagamento do cheque do executado à exequente;
5. Informando posteriormente os autos que o cheque era apresentado na qualidade de documento particular que importa e titula o reconhecimento de uma dívida, nos termos da alínea c) do art.º 46º do CPC, e não na qualidade de título de crédito regulado pela Lei Uniforme do Cheque;
6. Pelo que o cheque sub judice está dotado de força executiva.
7. Negá-lo é denegar a aplicação do art.º 46º, al. c) do CPC.

Não foram apresentadas contra alegações.

O M.mo Juiz “a quo” sustentou o despacho recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentos

Sabido que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684º, n.º 3, e 690º, n.º 1, do C.P.C.), a única questão a decidir consiste em saber se o cheque dado à execução é ou não título executivo.
Para a dirimir, há que considerar provados os factos constantes do relatório supra exarado e aplicar-lhes o direito.

Sabe-se, e di-lo a lei, que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (art.º 45º, n.º 1 do CPC).
Às partes está vedado atribuir força executiva a qualquer documento que a lei não preveja como título executivo, assim como também lhes está vedada a recusa de força executiva a um documento legalmente previsto e qualificado como tal.
É a regra da tipicidade estabelecida no art.º 46º do CPC, ao dispor que à execução apenas podem servir de base os títulos ali enumerados.
O título dado à execução é um cheque ao portador, sacado pelo executado sobre a .....- Banco...., datado de 15/5/97 e que, apresentado a pagamento, foi devolvido por falta de provisão no dia 16/5/97.
Não se desconhece que o cheque é um título de crédito que enuncia uma ordem de pagamento dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado) para que pague a quantia nele inscrita por conta de fundos ali depositados (art.º 1º e 2º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque).
É definido pela doutrina como um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada de pagar a soma nele inscrita, dirigida a um banqueiro, em cujo banco o emitente tem fundos disponíveis (cfr., por todos, Ferrer Correia, Revista “Direito e Economia”, 1978, n.º 4, pág. 47 e Lições de Direito Comercial, III, 22).
Todavia, no presente caso, o cheque não foi dado à execução enquanto título de crédito, certamente porque a exequente considerou prescrita a acção cambiária, nos termos do art.º 52º da LUC, visto que a execução foi proposta muito depois de terem decorrido os seis meses após o termo do prazo da apresentação a pagamento, mas como quirógrafo da obrigação.
Isso mesmo esclareceu na sequência da notificação que lhe foi feita e resultava já do requerimento inicial ao invocar a relação subjacente ou causal.
Importa, pois, averiguar se esse cheque pode ser considerado título executivo como mero quirógrafo, ou seja, enquanto documento particular, assinado pelo devedor.
Neste caso, a obrigação exigida não é a obrigação cambiária ou cartular, caracterizada pela autonomia, literalidade e abstracção, mas a obrigação subjacente, causal ou fundamental.
Dispõe o art.º 46º, al. c) do CPC, na actual redacção resultante da reforma de 1995/96, aqui aplicável, que podem servir de base à execução “os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do art.º 805º...”.
O legislador, sabedor como é (ou pelo menos assim se presume – art.º 9º, n.º 3 do C. Civil) e conhecedor de toda a realidade, designadamente da acumulação de processos nos tribunais, naquela reforma, “optou pela ampliação significativa do elenco dos títulos executivos” e quis, com o novo regime, “contribuir significativamente para a diminuição do número das acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora (leia-se então), indispensável título executivo judicial”, conforme fez constar expressamente do preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12/12.
A questão de saber se, depois de prescrita a obrigação cambiária, o cheque pode continuar a valer como título executivo, enquanto documento particular consubstanciando a relação subjacente, não é nova e a sua solução não tem sido pacífica.
Na doutrina, contra essa possibilidade, pronunciou-se Lopes Cardoso, no Manual da Acção Executiva, pág. 89, com o argumento de que o título de crédito nunca provará, por si só, a relação fundamental.
Em sentido favorável, opinam vários autores, entre os quais Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 166; Anselmo de Castro, no Manual da Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pág. 33; Palma Carlos, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 189; e Pinto Furtado, em Títulos de Crédito, págs. 82 e 285).
Lebre de Freitas defende que constitui título executivo sempre que o título mencione a relação jurídica subjacente e, quanto aos títulos dos quais não conste a causa da obrigação, distingue consoante a obrigação a que se reportam emerge ou não dum negócio jurídico formal.
No primeiro caso, porque a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (art.ºs 221º, n.º 1 e 223º, n.º 1, ambos do CC).
No segundo, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida (art.º 458º, n.º 1 do CC) levam a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado (A Acção Executiva, 2ª ed., págs. 53 e 54).
Miguel Teixeira de Sousa também entende que deve distinguir-se entre as obrigações abstractas e as causais, relativamente aos fundamentos da obrigação exequenda e à suficiência do título executivo, nos seguintes termos:
“As obrigações abstractas dispensam a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, dado que a exigência desta não está dependente da demonstração de qualquer causa debendi.
Assim, sempre que o título respeite a uma prestação abstracta, o título é suficiente para fundamentar a execução”.
“O mesmo não sucede quando a obrigação exequenda for causal.
Neste caso, ela exige a alegação da respectiva causa debendi, pelo que se esta não constar ou não resultar do título executivo, este deverá ser completado com essa alegação.
Um título executivo relativo a uma obrigação causal exige sempre a indicação do respectivo facto constitutivo, porque sem este a obrigação não fica individualizada e, por isso, o requerimento executivo é inepto, por falta de indicação da respectiva causa de pedir (art.º 193º, n.º 2, al. a) do CPC) – cfr. A Acção Executiva Singular, 1998, págs. 68 e 69.
A jurisprudência também se mostra dividida.
No sentido de que o cheque prescrito ou apresentado a pagamento para além do prazo previsto na LUC não constitui título executivo podem ver-se os Acs. do STJ de 4/5/99, 29/2/2000 e 16/11/2001, publicados na CJ – STJ -, respectivamente ano VII, tomo II, pág. 82, ano VIII, tomo I, pág. 124 e ano IX, tomo III, pág. 89; da RC de 9/3/99 e de 6/2/2001, na CJ, ano XIV, tomo II, pág. 19 e ano XXVI, tomo I, pág. 28; e desta Relação de 25/1/2001, na CJ, XXVI, I, 192.
Sustentando entendimento diverso, no sentido da admissibilidade como título executivo, decidiram, entre outros, os Acs. do STJ de 18/1/2001, 30/1/2001, publicados na CJ – STJ -, ano IX, tomo I, págs. 71 e 85, e de 29/1/2002, na CJ – STJ -, ano X, tomo I, pág. 64; da RC de 27/6/2000 e de 16/4/2002, na CJ, ano XXV, tomo III, pág. 37 e ano XXVII, tomo III, pág. 11; e da RL de 27/6/2002, nesta última CJ, pág. 121.
Perfilhamos esta tese por melhor se harmonizar com a distinção que é necessário estabelecer entre o título executivo e a causa de pedir.
É que estes não são a mesma coisa nem podem confundir-se.
Enquanto o título executivo é o documento onde consta a obrigação cuja prestação se pretende obter coercivamente, a causa de pedir é o facto donde deriva essa pretensão.
A causa de pedir é um elemento essencial para a identificação da pretensão processual, ao passo que o título executivo é o instrumento probatório especial da obrigação exequenda (Acs. do STJ de 28/5/91, no BMJ n.º 407, pág. 446, e de 8/6/93, na CJ – STJ -, ano I, tomo III, pág. 5).
Como a execução tem sempre por base um título executivo e este tem de acompanhar o requerimento inicial daquela, bastará, em regra, remeter para o título.
Mas tal já não pode suceder quando se tratar de obrigação causal e o título não lhe fizer referência.
A este propósito, escreveu Lebre de Freitas, na pág. 134 da obra citada: “Esta falta de referência ocorrerá quando o título contiver uma promessa de cumprimento ou o reconhecimento duma dívida sem indicação da respectiva causa (art. 458º do CC), maxime se se tratar de letra, livrança ou cheque relativamente ao qual tenham decorrido já os prazos de prescrição da obrigação cartular. Neste último caso, se a prescrição já tiver sido invocada pelo devedor, bem como, se não tiver, para prevenir a hipótese da sua invocação em embargos de executado, o exequente deverá, em obediência ao art.º 467, n.º 1, al. c) do CPC, alegar a causa da obrigação...”.
O art.º 458º do C. Civil admite que, através de uma declaração unilateral, se efectue o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique a respectiva causa, presumindo-se a existência e a validade da relação fundamental, podendo aquele fazer a prova do contrário.
O reconhecimento de uma dívida que conste de documento particular beneficia sempre da referida presunção.
E como ali não se indica a causa da obrigação, o tribunal terá de admiti-la até que o devedor a ilida (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 371).
É neste sentido que deve entender-se “o disposto na al. c) do art.º 46º do CPC, ao admitir, como título exequível, o escrito particular, assinado pelo devedor, do qual conste a obrigação de pagamento de quantia determinada ou de entrega de coisa fungível” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 440).
Daí que se possa dizer, tal como o citado acórdão do STJ de 29/1/2002, que aqui seguimos, “não ser necessário que do cheque, enquanto documento particular, conste a razão da ordem de pagamento que enuncia, para se poder afirmar que constitui ou reconhece uma obrigação pecuniária, desde que a causa debendi tenha sido alegada no requerimento inicial da execução”.
E não se diga que o cheque não reconhece uma obrigação pecuniária. Com o devido respeito por essa opinião, afigura-se-nos que só quem anda alheio às realidades deste mundo é que pode ter tal entendimento e pôr em dúvida que a ordem dada ao Banco para pagar uma certa quantia implica o reconhecimento da correspondente obrigação. Sempre se trata de uma declaração tácita com a inerente protecção dada pelo art.º 217º do C. Civil.
Aliás, fora o regime específico consagrado na LUC que, obviamente, se mantém intocado com a alteração do citado art.º 46º, como não podia deixar de ser por constar de uma convenção internacional ratificada pelo Estado Português, continuando a vigorar na nossa ordem jurídica (art.º 8º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), o título cambiário não prescrito nada tem a mais do que o prescrito para os efeitos daquele artigo. A obrigação fundamental é a mesma, distinguindo-se apenas pelas virtualidades da acção cambiária.
Já é tempo de ver o lado prático desta questão que sensibilizou e motivou o legislador com a referida alteração, evitando a acção declarativa e, com grande economia de tempo e de trabalho, cingir-se apenas à acção executiva, sem que haja prejuízo para o demandado porquanto tem sempre ao seu alcance a válvula de escape que são os embargos de executado.
De tudo o exposto conclui-se que o cheque aqui em causa, enquanto documento particular, assinado pelo devedor, no âmbito das relações credor originário/ devedor originário em que se encontra para execução da obrigação que lhe está subjacente e porque o exequente alegou, no requerimento executivo, a relação causal, vale como título executivo, nos termos do art.º 46º, al. c) do CPC.
Por isso, tal requerimento não podia ter sido, como foi, liminarmente indeferido.
O agravo merece, pois, provimento.

III. Decisão

Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, pelo que se revoga o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da execução.

Sem custas (art.º 2º, n.º 1, al. o) do CCJ).
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Porto, 01 de Abril de 2003
Fernando Augusto Samões
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge (Vencido, porquanto entendo que o cheque prescrito carece de força executiva)