Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
447/07.1TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: CUSTAS
COOPERATIVAS
ISENÇÃO
Nº do Documento: RP20131015447/07.1TVPRT.P1
Data do Acordão: 10/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: As cooperativas, face ao RCP, não beneficiam de isenção de custas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 447/07.1TVPRT– Agravo

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B…, C.R.L., com sede na Rua …, n° ..-.°, sala ., Porto, propôs nas Varas Cíveis do Porto contra C… e cônjuge D… e outros, todos sócios cooperadores da Autora, acção com processo comum ordinário, pedindo a condenação dos Réus a pagar-lhe as quantias que discrimina, respeitantes ao saldo da sua conta corrente, emergente, nomeadamente, da diferença entre os valores entregues por conta da aquisição das fracções que adquiriram e do correspondente custo final apurado, acrescido de quotas administrativas e outros débitos, a ainda, em relação a alguns dos Réus, as quotas administrativas vincendas, no valor de €10 por mês, tudo acrescido de juros moratórios, à taxa máxima legal, desde a data de vencimento das obrigações até integral reembolso.
Houve contestação de alguns dos RR., relativamente a outros foi extinta a instância por inutilidade superveniente e, após várias vicissitudes processuais, foi em 2009/10/15 proferido despacho saneador, com selecção da matéria assente e organização da base instrutória. Em 2009/11/05 veio a A. indicar os seus meios de prova, tendo requerido, para prova dos quesitos 4°, 5°, 6º, 7°, 8ª, 9º, 11°, 12°, 13°, 14°, 15º e 16º da Base Instrutória, a vistoria aos livros de escrituração da Autora, incluindo os seus registos de correspondência e Actas dos seus órgãos, indicando desde logo o seu perito e os quesitos a responder pelos peritos. A perícia foi admitida na modalidade colegial por despacho de 2010-03-18, tendo posteriormente os peritos apresentado o respectivo relatório e esclarecimentos adicionais. Em 2012-02-08 vieram os peritos apresentar nota adicional de honorários, tendo em 2012-09-26 a Mma. Juíza proferido despacho, ordenando se desse pagamento aos peritos em conformidade com a nota de honorários apresentada.
Tendo, em 2012-10-22 a secretaria enviado à Autora guia de pagamento antecipado de encargos no valor de € 3971,00, notificando-a para efectuar o respectivo depósito, dela reclamou a Autora, invocando estar isenta de custas e nada ter a pagar a título de pagamento antecipado de encargos. O Ministério Público teve vista dos autos e nada opôs.
Sobre o requerido recaiu, em 2012-11-14 despacho, indeferindo-o com os seguintes fundamentos, que se transcrevem:
“A aqui A. é uma cooperativa de construção e habitação que tem como objecto principal a promoção da construção ou aquisição de fogos para a habitação do seus membros, regendo-se pelos seus estatutos, código cooperativo e demais legislação aplicável.
Conforme resulta do artigo 80° al. b) da Constituição da República Portuguesa, a organização económico-social assenta na coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção. Sendo - vide artigo 82° da mesma CRP - o sector público constituído pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas; o sector privado constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou colectivas privadas e "4. O sector cooperativo e social compreende especificamente: a) Os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos, sem prejuízo das especificidades estabelecidas na lei para as cooperativas com participação pública, justificadas pela sua especial natureza;
Por sua vez e nos termos do artigo 2o do C.Cooperativo as cooperativas são "pessoas colectivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis que através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles.".
Tecem-se estes considerandos para dar nota de ser nosso entendimento que as cooperativas como a aqui A. se não enquadram nas pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos previstas no artigo 4º n.° 1 al. f) do RCP, nas quais e de acordo com Salvador da Costa in Regulamento da Custas Processuais anotado, ed. Almedina, em anot. a este artigo 4º n.° 1 al. f) refere que entre as "pessoas colectivas de natureza jurídica privada se incluem "as pessoas colectivas de mera utilidade pública, as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa", nas quais se não incluem assim as cooperativas.”
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Não se conformando com tal despacho, dele veio a autora recorrer, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. Nos termos do disposto no n° 1 do artigo 8º da Lei n° 7/2012, de 13 de Fevereiro a este recurso aplica-se o Regulamento das Custas Processuais pelo que nos termos da alínea f) do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais (Decreto-Lei n.° 34/2008 de 26 de Fevereiro) está a Autora, aqui Recorrente, que é uma Cooperativa de Construção e Habitação que visa, através da cooperação e entreajuda dos seus membros a satisfação, sem fins lucrativos, das necessidades habitacionais, isenta de custas.
B. O Tribunal de cuja decisão se recorre decidiu que «as cooperativas como a aqui A. se não enquadram nas pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos previstas no artigo 4° n° 1 ai. f) do RCP».
C. Fundamentou essa decisão no facto de «Salvador da Costa in Regulamento da Custas Processuais anotado, ed. Almedina, em anot. a este artigo 4° n.°1 ai. f)» referir «que entre as "pessoas colectivas de natureza jurídica privada se incluem "as pessoas colectivas de mera utilidade pública, as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa"».
D. No entanto esqueceu-se que o Venerando Conselheiro Jubilado, em anotação à alínea f) do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais refere: «No regime de pretérito, no que concerne às pessoas colectivas privadas apenas as instituições particulares de solidariedade social e as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa beneficiavam de isenção de custas. O regime actual, todavia, alargou o âmbito subjectivo das pessoas colectivas privadas beneficiárias da isenção em análise.»
E. Ou seja, o Tribunal de cuja decisão se recorre interpretou norma que não carecia de interpretação (in claris non fit interpretatio) e fundamentou-se em doutrina que não permite sustentar a decisão em crise antes fundamenta decisão em sentido contrário da que o Tribunal tomou.
F. Conclui-se assim que, salvo melhor opinião, a decisão de que se recorre carece de fundamento já que a doutrina invocada não sustenta a decisão tomada.
G. E, sem fundamento para restringir o que a letra da lei não restringe, não decidiu bem o Tribunal de primeira instância ao negar à Autora, aqui Recorrente, a isenção legal de custas de que é beneficiária.
H. Assim o fazendo o Tribunal de cuja decisão se recorre denegou justiça à Autora, aqui Recorrente, violando assim o artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, ficando a sua decisão ferida de inconstitucionalidade, com todas as consequências daí derivadas.
NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS
Alínea f) do artigo 4° do Regulamento das Custas Processuais (Decreto-Lei n.° 34/2008 de 26 de Fevereiro)
Artigo 20° da Constituição da República Portuguesa
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Não houve contra-alegações.
A Mma. Juíza manteve o despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Os factos relevantes para a decisão do presente agravo são os que estão enunciados no supra elaborado relatório, pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui.
Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 684.º n.º3, 684.º-B n.º 2 e 685.º-A, todos do C.P.Civil), excepto quanto a questões do conhecimento oficioso. E face às conclusões da recorrente cumpre apurar se está a mesma isenta ou não de pagamento de custas judiciais.
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Atenta a data do envio de guia de pagamento antecipado de encargos com o pagamento de peritos e simultânea notificação da Autor para proceder ao respectivo depósito, no valor de € 3.971,00, é já aplicável a Lei n.° 7/2012 de 13 de Fevereiro, cujo n° 2 do artigo 8º manda aplicar aos processos pendentes, “sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a redacção que é dada ao Regulamento das Custas Processuais pela presente lei”, aos actos praticados a partir da sua entrada em vigor, considerando-se válidos e eficazes todos os pagamentos e demais actos regularmente efectuados ao abrigo da legislação aplicável no momento da prática do acto. Mais dispõe o n.º 5 do mesmo artigo que “Nos processos em que, de acordo com a redacção que é dada ao Regulamento das Custas Processuais pela presente lei, as partes ou o processo passam a estar isentos de custas, a isenção aplica-se, não havendo no entanto lugar à restituição do que já tiver sido pago a título de custas”.
Como resulta dos autos, a Autor é uma cooperativa de habitação e construção, a saber, a espécie de pessoa colectiva prevista na alínea e) do n.º 1 do art.º 4.º do Código Cooperativo aprovado pela Lei n.º 51/96, de 7 de Setembro, que reclama nos autos presentes autos dos Réus, sues cooperadores, o saldo em débito do custo efectivo dos fogos que lhes foram atribuídos nos termos estatutários, bem como o pagamento de quotas quotas administrativas vencidas após o cálculo do mencionado saldo até à propositura da acção.
Tal espécie de pessoa colectiva não beneficiava, no domínio do Código das Custas Judiciais aprovado pelo DL n.º 224-A/96, de 26 de Novembro de qualquer isenção subjectiva de custas. Com efeito, e face ao disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do seu art.º 2.º, apenas eram isentas de custas as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e as instituições particulares de solidariedade social, ficando, assim, de fora, as cooperativas que não possuíssem o estatuto de utilidade pública administrativa.
Com a entrada em vigor do Regulamento das Custas Processuais (RCP) aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, foi intenção declarada pelo legislador no preâmbulo do diploma proceder " a uma drástica redução das isenções, identificando-se os vários casos de normas dispersas que atribuem o benefício da isenção de custas para, mediante uma rigorosa avaliação da necessidade de manutenção do mesmo, passar a regular-se de modo unificado todos os casos de isenções".
A matéria é agora regulada pelo art.º 4.º do mesmo diploma, que passou a circunscrever noutros termos o universo das isenções subjectivas custas, e cuja alínea f) do seu n.º 1, designadamente, a concede às " pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável".
Tal disposição do Regulamento das Custas Judiciais em versa sobre uma situação de isenção subjectiva, mas não obstante o seu carácter de pessoalidade, é motivada por um elemento objectivo consubstanciado no interesse de ordem pública prosseguido pelas entidades a quem são concedidas.
Coloca-se no presente agravo a questão de saber se as coooperativas da natureza da Autor prosseguem também interesses de ordem pública que hajam levado o legislador a abrangê-las pela noção definida pela aludida al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP. Desde logo existe um elemento na sistemática desse artigo 4.º que claramente aponta no sentido da sua não inclusão na previsão da alínea f). Trata-se da alínea u) do mesmo n.º 1, que dispõe que estão isentas de custas "as sociedades civis ou comerciais, as cooperativas e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada que estejam em situação de insolvência ou em processo de recuperação de empresa, nos termos da lei, salvo no que respeita às acções que tenham por objecto litígios relativos ao direito do trabalho". Ora, se como defende a recorrente, as cooperativas já beneficiassem de isenção pessoal de custas ao abrigo da mencionada alínea f), nenhum efeito útil teria a sua inclusão na previsão da alínea u), com a exigência acrescida de que se encontrem em situação de insolvência ou processo de recuperação de empresa. O que, de um ponto vista lógico, claramente sugere que o legislador aí as incluiu porque, sem tal norma, as cooperativas não beneficiariam de qualquer isenção subjectiva de custas.
Ainda que tal alínea u) não existisse, afigura-se que a recorrente não possui as características correspondentes à noção tida em vista pela aludida alínea f). Salvador da Costa em comentário a alínea f) do art.º 4.º refere que a isenção "é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em rol do bem comum o que à comunidade aproveita e ao Estado cumpre facilitar, e trata-se de uma isenção de custas condicional, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela própria lei" (Regulamento das Custas Processuais, Edição 2009, pág. 152). Ora, dispõe o n.º 1 do do art.º 2.º do Código Cooperativo que “as cooperativas são pessoas colectivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles”. De tal noção não se segue, todavia, como pretende a recorrente, que as cooperativas sejam entidades em absoluto desprovidas de fins lucrativos. Face a esse dispositivo, só lhes é vedado agir com tal escopo no confronto dos seus próprios membros, e para satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles. E logo o n.º 2 do mesmo artigo possibilita que “as cooperativas, na prossecução dos seus objectivos, podem realizar operações com terceiros, sem prejuízo de eventuais limites fixados pelas leis próprias de cada ramo”. Explicitando tal possibilidade, o art.º 7.º do Código Cooperativo prevê que:
- 1 - Desde que respeitem a lei e os princípios cooperativos, as cooperativas podem exercer livremente qualquer actividade económica.
- 2 - Não pode, assim, ser vedado, restringido ou condicionado às cooperativas o acesso e o exercício de actividades que possam ser desenvolvidas por empresas privadas ou por outras entidades da mesma natureza, bem como por quaisquer outras pessoas colectivas de direito privado sem fins lucrativos.
- 3 - São aplicáveis às cooperativas, com as adaptações inerentes às especificidades resultantes do disposto neste Código e legislação complementar, as normas que regulam e garantem o exercício de quaisquer actividades desenvolvidas por empresas privadas ou por outras entidades da mesma natureza, bem como por quaisquer outras pessoas colectivas de direito privado sem fins lucrativos.
Também o terceiro dos princípios cooperativos enunciados no art.º 3.º do mesmo diploma menciona que “Os membros contribuem equitativamente para o capital das suas cooperativas e controlam-no democraticamente. Pelo menos parte desse capital é, normalmente, propriedade comum da cooperativa. Os cooperadores, habitualmente, recebem, se for caso disso, uma remuneração limitada pelo capital subscrito como condição para serem membros. Os cooperadores destinam os excedentes a um ou mais dos objectivos seguintes: desenvolvimento das suas cooperativas, eventualmente através da criação de reservas, parte das quais, pelo menos, será indivisível; benefício dos membros na proporção das suas transacções com a cooperativa, apoio a outras actividades aprovadas pelos membros”. Ou seja, prevê que a actividade da cooperativa possa gerar excedentes, regulando o art.º do Código Cooperativo a sua distribuição pelos cooperadores, uma vez cumpridas as normas relativas à formação de reservas, constantes dos art.ºs 69.º a 71.º do mesmo diploma.
Assim sendo, e não obstante submetidas a princípios e pressupostos normativos diversos dos que vinculam as sociedades comerciais, também as cooperativas visam ou podem visar a obtenção de proveitos através da prossecução de actividades comerciais ou industriais, podendo mesmo deter, em determinados sectores, capacidade económica superior à de algumas sociedades comerciais. O que pouco ou nada se adequa à noção de “pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos” acolhida pela alínea f) do n.º 1 do art.º 4.º do RCP.
Argumente ainda a recorrente com a garantia do acesso ao direito e aos tribunais, que, na sua tese, estaria comprometida com a sujeição das cooperativas a custas processuais, mas sem razão: tal garantida foi acautelada pelo legislador, através da alínea u) do n.º 1 do art.º 4.º, para aquelas situações que reputou de comprovada carência económica.
Não colhe, por fim, o recurso à analogia de acordo com as regras do art.º 10.º do Cód. Civil. As normas que atribuem o benefício da isenção de custas têm natureza excepcional, ao postergarem o princípio geral, proclamado no n.º 1 do art.º 1.º do RCP, de que todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados pelo presente Regulamento.
Não gozando a agravante de qualquer isenção subjectiva de custas, improcedem as conclusões do recurso, impondo-se, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente, a manutenção da decisão agravada

Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao agravo, e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida.
Custas pela agravante.

Porto, 20123/10/15
João Proença
Maria Graça Mira
Anabela Dias da Silva