Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0646472
Nº Convencional: JTRP00040112
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
ORGÃO DE POLÍCIA CRIMINAL
Nº do Documento: RP200703070646472
Data do Acordão: 03/07/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Indicações Eventuais: LIVRO 255 - FLS 142.
Área Temática: .
Sumário: O depoimento do agente policial que nada presenciou e apenas ouviu da boca do arguido, antes de ser constituído arguido, a "confissão" do facto não constitui meio de prova admissível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I

1. No processo comum n.º …/04.7PBMAI, do ..º juízo do Tribunal Judicial da Maia, após julgamento, perante tribunal singular, por sentença de 28/06/2006, foi decidido absolver o arguido B……… da prática de um crime de condução ilegal de ciclomotor, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, e de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, do Código Penal, pelos quais tinha sido acusado pelo Ministério Público.
2. Inconformado com a absolvição, o Ministério Público interpôs recurso da sentença, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:
«a) O arguido B.......... vinha acusado da prática, como autor material e em concurso efectivo, num crime de no crime (sic) de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.° 292°, n° 1, do Cód. Penal, e ainda na sanção acessória de inibição de condução, prevista no art.° 69°, n° 1, a), do mesmo diploma legal e num crime (sic) de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art° 3°, n.° 1, do DL n.° 2/98, de 03/01/1998;
«b) Na sentença da qual se recorre, a Mma Juiz a quo entendeu absolver o arguido dos crimes por que vinha acusado porque não deu como provado que o arguido não tinha licença de condução que o habilitasse a conduzir ciclomotores e porque decidiu não valorar o depoimento do agente de autoridade que identificou o arguido em acto logo após ao acidente do qual foi vítima como sendo o condutor do veículo;
«c) O Ministério Público discorda de tal decisão, porquanto entende dever ser valorado o depoimento do agente de autoridade que, não obstante não ter visto o arguido a conduzir, o identificou em acto logo a seguir ao acidente, em diligências que fez;
«d) Quanto ao facto do arguido não ter licença que o habilitasse a conduzir ciclomotores, deveria o Tribunal ter-se bastado com o documento de fls. 59 que oficiou à Câmara Municipal do local da sua residência e naturalidade por informação sobre se o mesmo dispunha de carta ou licença de condução válida e que resultou negativo;
«d) Ora, não é proibida por lei a valoração do depoimento do agente de autoridade que em acto a seguir ao acidente de viação que vitimou o arguido que conduzia sem habilitação legal e com taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida enceta diligências com vista à sua localização e identificação e o vem a encontrar num hospital, ferido, e aí o identifica como condutor do veículo, sem lhe tomar declarações, sendo este [em] submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue;
«e) Com efeito, e neste caso, o tribunal não se estriba nas declarações do arguido confesso, mas tão só nas declarações do agente, estas de valoração permitida;
«g) Acrescente-se que igualmente não é de valoração proibida o facto do arguido ter dito ao agente ser ele o condutor do veículo e de o ter escrito em documento assinado por si, já que o tribunal só está proibido de valorar as declarações reduzidas a auto, o que não sucedeu in casu;
«h) Assim, a decisão da Mma Juiz violou os arts° 368°, 369°, 379° e 410°, todos do Código de Processo Penal, pelo que ordenando-se a substituição da sentença absolutória por outra que condene o arguido nos termos constantes da acusação pública, se fará Justiça!»
3. Admitido o recurso, não foi apresentada resposta.
4. Nesta instância, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º do Código de Processo Penal[1], o Exm.º Procurador-Geral Adjunto foi de parecer de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada chegou aos autos.
6. No exame preliminar, a relatora suscitou a questão prévia da rejeição do recurso, por ser manifesta a sua improcedência, remetendo os autos à conferência, a fim de ser apreciada e decidida.
II

Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo decidir a questão prévia suscitada no exame preliminar.
1. Começaremos por analisar a sentença recorrida.
1.1. Foram dados por provados os seguintes factos:
«a) No dia 10 de Julho de 2004, pelas 23h ocorreu um acidente de viação na Rua ………., ………., Maia.
«b) Em resultado desse acidente o arguido sofreu ferimentos.
«c) O arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1.25 g/l.
«d) O arguido não tem antecedentes criminais.»
1.2. E como não provado que:
«1. Na ocasião descrita em a) o arguido conduzisse o ciclomotor de matrícula .-MAI-..-.., propriedade da sua madrasta.
«2. O arguido não disponha de título que o habilite a conduzir ciclomotores.
«3. O acidente descrito em a) tenha ocorrido por despiste do arguido.
«4. O arguido esteja desempregado.
«5. O arguido tenha agido livre, deliberada e conscientemente, não obstante saber que estava a infringir a lei, encetando a condução de um ciclomotor sem ser titular da respectiva licença de condução que o habilitasse a fazê-lo e conduzindo depois de ter ingerido imoderadamente bebidas alcoólicas.»
1.3. A motivação da decisão de facto é do seguinte teor:
«O Tribunal fundou a sua convicção, quanto aos factos provados, no depoimento prestado pela testemunha C………., agente principal da PSP que confirmou o teor do auto de notícia, relatando a forma como acorreu ao local do acidente descrito em a), verificou que aí já ninguém se encontrava e apurou depois que o arguido tinha sido transportado ao Hospital de S. João, aí se dirigindo a fim de colher os dados respectivos.
«No que respeita ao teor de álcool no sangue do arguido baseou-se o tribunal no documento de fls. 23 e quanto aos antecedentes criminais do arguido no CRC de fls. 9.
«Quanto aos factos não provados, na circunstância de não se ter feito sobre eles prova suficiente.
«Assim, e no que se reporta à titularidade ou não de licença de condução pelo arguido, pese embora o teor do ofício de fls. 59, comprovativo de que a Câmara Municipal da Maia não passou licença de condução ao arguido, ponderou o tribunal que tal licença pode ser obtida em qualquer Câmara do país pelo que considerou não existir prova de que tal licença de condução não existisse.
«Por outro lado tudo o que demais foi referido pelo agente policial - de que o arguido conduzia o ciclomotor, de que teve o acidente por despiste e de que não era titular de licença de condução - resultou, apenas, do relato que o próprio arguido lhe efectuou e que ao fim e ao cabo se traduz numa confissão.
«Ora a este propósito considerou o tribunal não poder valorar o referido relato como meio de prova válido porquanto, - e pese embora se concorde que o regime do art.º 129 do Código de Processo Penal quando reportado a declarações proferidas pelo próprio arguido, não tem aplicação plena, já que o arguido não depõe, presta declarações, e tem o direito de permanecer em silêncio sem que tal [possa] o possa desfavorecer, - numa situação como a dos autos, em que a audiência se realizou na ausência do arguido, se impõem especiais cuidados no que concerne ao respeito do contraditório, que é a razão subjacente aos depoimentos indirectos estabelecida pelo art.º 129 do Código de Processo Penal. Ora não tendo o arguido estado presente em tribunal, em condições de poder confirmar, negar e esclarecer o depoimento, crê-se que este não pode ser valorado.
«Por outro lado, a consideração de tal depoimento ir-se-ia traduzir, afinal e apenas, na valoração da reprodução de uma confissão informal feita pelo arguido, o que seria inadmissível atento o constante do art.º 344 do Código Penal, do qual resulta que a única confissão com efeito cominatório relevante é a efectuada perante o juiz.
«Assim, e na ausência de qualquer outro meio de prova, o tribunal considerou não provados os factos descritos.»
2. No caso, como foi observado o princípio geral de documentação, na acta, das declarações prestadas oralmente em audiência (artigo 363.º do CPP), este tribunal conhece de facto e de direito (artigo 428.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP que: «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.»
As conclusões devem ser, por isso, um resumo explícito e claro dos fundamentos do recurso, indicando, com precisão, as razões por que se pede o provimento do recurso.
Como tem sido repetidamente afirmado, são as conclusões da motivação que definem e delimitam o âmbito do recurso, ou seja, as questões que o recorrente quer ver discutidas no tribunal superior. «São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem de apreciar.»[2]
Se o recurso tiver por objecto a impugnação da decisão sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar, sob pena de rejeição, as normas jurídicas violadas, o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada, e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada (artigo 412.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP).
Versando o recurso matéria de facto, deve ser estruturado nos termos definidos pelos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
É a seguinte a redacção dos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP:
«3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
«a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
«b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
«c) As provas que devem ser renovadas.
«4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.»
3. Embora no recurso esteja implicada a crítica da decisão proferida sobre matéria de facto, o que é certo é que o recorrente não estruturou o seu recurso nos termos impostos por lei para os recursos que visam a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto.
Ora, as indicações exigidas pelos n. os 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza meramente formal.
Na verdade, e como se escreveu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004[3], destacando as contra-alegações do Exm.º Procurador-Geral Adjunto, naquele Tribunal, «as menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto».
Exclui-se, portanto, pelo incumprimento dos ónus respectivos, que o recorrente pretenda impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, em termos amplos.
4. As apontadas violações do disposto nos artigos 368.º, 369.º e 379.º do CPP são absolutamente desprovidas de fundamento, na medida em que a sentença se mostra perfeitamente estruturada, na rigorosa observância das disposições legais pertinentes (artigo 374.º do CPP).
Nem o recorrente diz que não o esteja.
O que, afinal, parece pretender é que a decisão absolutória manifesta um verdadeiro erro de julgamento.
Só que não alicerça tal erro de julgamento na fundamentação de facto da sentença. E, na verdade, não o poderia fazer, uma vez que a decisão absolutória é a consequência imposta pelos factos provados e não provados.
A condenação do arguido – fim visado pelo recorrente, no recurso – só poderia conceber-se se houvesse uma alteração da matéria de facto fixada na sentença recorrida, o que só por via do recurso em matéria de facto poderia ser alcançado.
É, portanto, incongruente que o recorrente vise um resultado e não interponha o recurso adequado a obtê-lo.
5. Invoca, ainda, o recorrente violação do disposto no artigo 410.º do CPP mas dispensa-se de especificar o vício que entende estar verificado, por referência aos elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, e de o concretizar no texto da decisão recorrida, quando, como é sabido, e resulta do corpo do referido n.º 2 do artigo 410.º, os vícios previstos neste artigo têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo.
Porém, para a hipótese de o recorrente se querer referir a não ter sido valorado o depoimento do agente da PSP para dar por provado que o arguido conduzia o ciclomotor no dia, hora e local referidos na acusação, dir-se-á que a motivação da decisão de facto não manifesta, nesse aspecto, qualquer erro notório na apreciação da prova. Se o mesmo tivesse sido valorado, então sim, é que teria sido cometido um verdadeiro erro notório na apreciação da prova, por valoração de prova inadmissível.
Como bem salienta o Exm.º Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, a questão nuclear, para a decisão de condenação ou de absolvição do arguido, não é a de saber se a pessoa que foi constituída arguida tinha, ou não, licença de condução mas a que logicamente a precede, qual seja, a de saber se o arguido conduzia o ciclomotor no dia, hora e local referidos na acusação.
O depoimento do agente da PSP que nada presenciou e apenas ouviu da boca do arguido, antes de ser constituído arguido, a «confissão» do facto não constitui meio de prova admissível.
Nos termos do art. 55.º, n.º 2, do CPP, “compete em especial aos órgãos de polícia criminal, mesmo por iniciativa própria, colher notícias do crime e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova”.
Se, durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e procede à comunicação de que passa a assumir a qualidade de arguido e à indicação dos seus deveres e direitos que lhe assistem, conforme dispõem os artigos 59.º, n.º 1 e 58.º, n.º 2, ambos do CPP.
A preterição de tal formalidade implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela.
Assim, as chamadas “conversas informais” dos arguidos com os agentes policiais, antes de serem constituídos arguidos, não podem ser valorizadas em sede probatória.
Sobre esta questão, escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/07/01[4]:
«...não podem ser tidas em conta conversas informais do arguido com agentes da PJ. Tais conversas informais, a propósito dos factos em averiguação, estão sujeitas ao princípio da legalidade, ínsito no artigo 2.º do CPPenal, proveniente do artigo 29.º da CRP (nulla poena sine judicio), só em processo penal podendo ser aplicada uma pena ou medida de segurança. O processo organizado na dependência do MP, tem de obedecer aos ditames dos artigos 262.º e 267.º Por isso, as ditas “conversas informais” só podem ter valor probatório se transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova.
«Aliás, não há conversas informais, com validade probatória à margem do processo, sejam quais forem as formas que assumam desde que não tenham assumido os procedimentos de recolha admitidos por lei e por ela sancionados...(as diligências são reduzidas a auto – artigo 275.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
«Haveria fraude à lei se se permitisse o uso de conversas informais não documentadas e fora de qualquer controlo. Claro que as «conversas informais», uma vez transpostas para o processo, deixarão de ser...informais”.»
III

Termos em que, acordamos em rejeitar o recurso, por ser manifesta a sua improcedência.
Não há lugar a tributação.
Porto, 7 de Março de 2007
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
José João Teixeira Coelho Vieira

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[1] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2000, p. 335.
[3] De 10 de Março de 2004, publicado no Diário da República, II Série, n.º 91, de 17 de Abril de 2004.
4] Publicado na Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano IX, Tomo III, p. 165 e ss.