Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0845984
Nº Convencional: JTRP00042092
Relator: CRAVO ROXO
Descritores: ACTOS DE EXECUÇÃO
Nº do Documento: RP200901210845984
Data do Acordão: 01/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 351 - FLS 363.
Área Temática: .
Sumário: O agente que, através de uma janela, cujos vidros partiu, entrou num estabelecimento comercial para dali subtrair, com intuitos apropriativos, bens alheios, o que não conseguiu por haver sido detido no interior do estabelecimento por agentes policiais, praticou actos de execução de um crime de furto e não simples actos preparatórios.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 5984/08.

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Acordam na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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No processo comum nº …/07.2PASJM, do .º Juízo do Tribunal de São João da Madeira, foi o arguido B………. julgado em Tribunal singular.
Proferida sentença, na mesma o arguido foi condenado na pena de 1 ano de prisão, pela prática de 1 crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto nos Arts. 22º e 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal.
Inconformado, veio o arguido recorrer para este Tribunal da Relação.
Foi entretanto o recorrente convidado a completar as suas conclusões.
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São estas as conclusões ipsis verbis do recurso (que balizam e limitam o seu âmbito e objecto):
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1- ERRO NO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
1.º
A Meritíssima Juiz, “a quo”, para condenar o arguido, considerou, como provados, entre, outros, com relevo os seguintes factos:
3. “Já dentro desse estabelecimento, o arguido começou a procurar dinheiro e objectos de valor que eventualmente lhe interessassem e que facilmente poderia transportar no seu veículo estacionado ali perto.”
8. “Ao actuar da forma descrita agiu o arguido voluntária e conscientemente, com o intuito de fazer seus os objectos e dinheiro que encontrasse no estabelecimento sobredito, bem sabendo que não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do respectivo dono.”
2.º
Assim, de acordo com os seguintes depoimentos:
Depoimento da testemunha C………. — fita magnética desde o n.° “0526” ao n.° “1185”, do lado A, cassete n.° 1.
“Nada foi roubado, absolutamente nada”
3.º
Depoimento da testemunha D………. — fita magnética desde o n.° “1186” ao n.° “1564”, do lado A, cassete n.° 1.
“Passado dois ou três minutos estávamos no local, não teve tempo para fazer nada”;
“Não tinha qualquer objecto com ele”;
“A reacção dele foi: eu não roubei nada”; “Sempre colaborou com a polícia”
4.º
Depoimento da testemunha E………. — fita magnética desde o n.° “1565” ao n.° “1722” do lado A, cassete n.° 1.
“Dirigimo-nos ao local e entrei dentro do café com um holofote e encontrei este senhor atrás do balcão”;
“Não tinha qualquer objecto com consigo”;
“Eu não roubei nada, foi a única coisa que disse”;
“O carro não tinha nada, foi revistado com a autorização dele”
5.º
Assim como, refere a Meritíssima Juiz, “a quo”, na sua fundamentação: “foram prontamente ao local Indicado, pelo que, nas suas declarações, foi tudo de tal forma rápido que não deve ter dado tempo ao arguido de fazer nada”.
6.º
Ora, da prova produzida não se pode retirar que o arguido começou a procurar dinheiro e objectos de valor que eventualmente lhe interessassem e que facilmente poderia transportar no seu veículo estacionado ali perto, com o intuito de fazer seus os objectos e dinheiro que encontrasse no estabelecimento, até porque era impossível sozinho transporta-los para um veículo que se encontrava a 300 metros do local.
7.º
Não havendo no processo qualquer prova ou mesmo indício que o arguido tivesse procurado objectos e dinheiro dentro do estabelecimento.
8.º
Ao se dar como provados os factos, descritos nos pontos 3 e 8, quando deviam ter sido dados como não provados, estamos perante concretos pontos de facto que foram incorrectamente julgados, nos termos do artigo 412, n.° 3, alínea a) do C.P.P..
9.º
Pelo que, salvo melhor opinião, se deve dar como não provados, os factos descritos em 3 e 8 dos factos dados como provados.
10.º
Ao se decidir, como se decidiu, violou-se o disposto no artigo 412, n.° 3, alínea a) do C.P.P.
II- DA NÃO EXISTÊNCIA DE ACTOS DE EXECUÇÃO
11.º
O artigo 22° do C.P. refere que: «Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.
12.º
Na Douta sentença é dito, apenas, que “o arguido com intenção de subtrair do interior do estabelecimento de F………. e se apropriar dos objectos e valores que aí encontrasse e que pudesse levar consigo, praticou os actos de execução próprios do referido ilícito penal.”
13.º
Conforme refere a proprietária do estabelecimento no seu depoimento, “o arguido não furtou nada, não mexeu em nada, nem danificou nada dentro do estabelecimento”, assim como, os Srs. Agentes Policiais nos seus depoimentos, referem que, “não trazia nada consigo, nem tinha qualquer objecto no veículo”.
14.º
O arguido apenas entrou dentro do estabelecimento e não tentou furtar qualquer um dos objectos aí existentes. Pelo que, não existem elementos suficientes nos autos que permitam concluir que o arguido praticou actos de execução de furto de qualquer objecto que se encontrava dentro do estabelecimento. Estamos perante a não punição do crime, uma vez que, o arguido apenas cometeu actos de preparação e não actos de execução.
15.º
E, para se cometer o crime de furto na forma tentada, é necessário que o agente entre dentro do estabelecimento comercial e se apodere de objectos ai existentes, nem que seja apenas tirar os objectos do lugar.
16.º
Pelo que, deveria o arguido ser absolvido do crime de furto qualificado na forma tentada.
17.º
Ao se decidir como se decidiu, violou-se o disposto no artigo 22° e 23° do c.P.
III - DA NÃO QUALIFICAÇÃO DO CRIME DE FURTO
18.º
O artigo 204° n.° 4 do C.P. refere que: “Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor».
19.º
A Douta sentença, apenas se refere aos objectos que se encontravam dentro do estabelecimento, nada sendo dito dos objectos que o arguido “tentou” furtar.
20.º
E, não se pode presumir, como foi presumido pela Meritíssima Juiz, “a quo”, que o arguido ia furtar todos os bens que se encontravam no estabelecimento.
21.º
Embora existissem dentro do estabelecimento comercial os bens descritos no ponto 5 dos factos dados como provados, era impossível ao arguido sozinho apropriar-se deles e transporta-los para o seu veículo. Pelo que, é impossível presumir, como foi presumido, que o arguido ia furtar todos os bens existentes no estabelecimento.
22.º
E, tendo em conta que o arguido não se apropriou de quaisquer bens, seria de aplicar o n.° 4 do artigo 204.° do C.P.
23.º
Pois, não há lugar à qualificação sempre que o arguido se aproprie de bens de diminuto valor, independentemente de ter usado o meio de arrombamento ou escalamento para se introduzir dentro do estabelecimento comercial.
24.º
Ora, se o arguido nem do dinheiro da caixa se apropriou, (cerca de cinquenta euros) — (quem permite o mais - apropriação de bens de diminuto valor, permite o menos - apropriação de nada) terá por força deste normativo de não se qualificar o crime de furto.
25.º
E, não se qualificando o crime de furto, o arguido não podia ser condenado por este tipo de crime. Devendo assim, ser considerado um crime de furto simples.
26.º
E, conforme foi referido pela proprietária do estabelecimento comercial - fita magnética desde o n.° “0526” ao n.° “1185”, do lado A, cassete n.° 1:
“Eu não apresentei queixa”, tendo dito claramente que só foi ao posto no dia seguinte, porque os agentes da G.N.R. lhe disseram para ir.
27.º
Pelo que, deve o arguido ser absolvido do crime de furto simples, por a ofendida não desejar procedimento criminal contra o arguido, tendo mesmo a Meritíssima Juíza, “a quo”, proferido a folhas 10 da douta sentença, último parágrafo “Julgamos mesmo que se teve tal atitude perante a ofendida foi porque julgava assim poder obter uma desistência de queixa, que lhe pediu e a que esta acedeu, embora sem consequências processuais por força da natureza pública do crime que lhe esta imputado”.
28.º
Ao se decidir, como se decidiu, violou-se o disposto no artigo 204°, n.° 4 do C.P.
IV - DA MEDIDA DA PENA APLICADA E SUBSTITUIÇÃO DA MESMA
29.º
O artigo 71, n.° 2 do C. P. diz que «para a determinação concreta da pena o tribunal deve ter em consideração todas as circunstâncias que depuseram a favor e contra o arguido».
30.º
A situação económica do arguido, deve ser uma medida atenuante, de forma a diminuir a culpa do mesmo. Devendo-se ter em consideração que o arguido é uma pessoa de modesta condição socioeconómica, que se encontra a ajudar os seus familiares mais próximos e que se encontra a trabalhar.
31.º
É certo que os seus antecedentes criminais, devem ser tidos em consideração.
32.º
Contudo, deve ter-se especial atenção para a data em que ocorreram os factos determinantes dessas condenações.
33.º
O arguido possui quatro condenações pelo crime de furto qualificado, contudo, as três primeiras condenações remontam a factos praticados nos anos de 1996 a 1999. E a 4 condenação é por factos praticados no ano de 2006.
34.º
Ora, não restam dúvidas que existe um lapso temporal elevado (cerca de 7 anos) entre as primeiras três condenações e a quarta condenação.
35.º
E, apesar do comportamento do arguido ser reprovável, o facto é que o mesmo nunca mais cometeu qualquer tipo de crime, desde a data da prática dos factos dos presentes autos, ou seja, Agosto de 2007.
36.º
E também não prejudicou os ofendidos. Tendo-os ressarcido dos danos causados pelo seu comportamento reprovável.
37.º
Pelo que, tendo em conta que o arguido esteve cerca de sete anos sem cometer nenhum crime e, apesar de ter cometido um crime no ano de 2006 (tendo em conta que o outro processo ainda se encontra pendente), e um crime no ano de 2007, entendemos que isso não é suficiente para se condenar o arguido numa pena de 1 ano de prisão efectiva.
38.º
E, conforme refere a testemunha de defesa, G………., no seu depoimento gravado na fita magnética do n.° “1723” ao n.° “2091”, do lado A, cassete n.° 1.
Meritíssima Juíza, Ele falou-lhe desta situação? Sabe porque fez isto?
“Eu soube disto há pouco tempo”;
“Confrontei-o com palavras agressivas, porque o programa o exige”; “Eu sou o padrinho dele devido a um programa que fez de toxicodependência”.
“Tenho uma vaga ideia, ele tem uma relação doentia com a mãe da filha dele, o B……….o não tinha o estofo suficiente para a ajudar, porque ela também consumia, penso que tenha sido para a ajudar”. “Estou convencido e tenho quase a certeza que ele não consume drogas ou álcool, ou melhor, tenho a certeza absoluta”;
“Há sete anos que ele não consume”;
O arguido encontra-se em recuperação, não consumindo drogas ou álcool desde há cerca de 7 anos. O que significa que o arguido encontra-se com uma vida estável e integrado na sociedade.
39.º
Para além disso, o arguido arrependeu-se efectivamente do que fez, conforme ficou provado pelas atitudes do arguido, que logo colaborou com as autoridades e foi pedir desculpas sinceras à ofendida.
40.º
Pelo exposto, ao se condenar o arguido, como se condenou, a pena aplicada foi desproporcionada, por demasiado elevada.
41.º
O artigo 206º do C.P., refere que a pena deve ser especialmente atenuada quando tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo para terceiro.
42.º
Pelo que, deve-se aplicar ao arguido a atenuante prevista no artigo 206° do C.P., e que não foi referida pela meritíssima juiz, por o mesmo ter reparado os danos por sua iniciativa, livre e espontaneamente, antes do inicio da audiência de discussão e julgamento, conforme ficou provado na Douta Sentença.
43.º
Por outro lado, conforme refere o artigo 500 do C.P., sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, se concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, deve a pena ser suspensa na sua execução.
44.º
E, para não se suspender a pena de prisão, não se deve ter em conta, apenas o facto de o arguido ter cometido o crime dos presentes autos, durante a suspensão da pena de outro crime pelos mesmos factos, conforme fundamenta a Meritíssima Juiz, “a quo”.
45.º
A defesa é do entendimento, que o facto do arguido ter sido condenado por os mesmos factos e mesmo assim, ter cometido o crime dos presentes autos, não é por si motivo suficiente para se condenar o arguido a uma pena de prisão efectiva.
46.º
Uma vez que, temos de ter em atenção, e analisar com cuidado, o registo criminal do arguido. Verificando-se que passaram cerca de 7 anos entre a terceira condenação e a última condenação.
47.º
Assim como, os factos praticados nesta “recaída” não se revelam graves, tendo indícios muito claros no processo do arrependimento do arguido, não tendo o mesmo praticado qualquer facto ilícito desta ou de outra natureza a partir da prática dos factos por que foi condenado.
48.º
E, tendo em conta que a pena aplicada — 1 ano — ou seja, é muito inferior a três anos.
49.º
Que o arguido é pessoa de condição socio-económica muito modesta.
50.º
Não se deve condenar o arguido a prisão efectiva, só por o mesmo ter cometido os factos durante o período da suspensão da pena de prisão.
51.º
Pelo que, os factos expostos são suficientes para se suspender a pena de prisão, nos termos do artigo 50º do C.P.
52.º
Uma vez que, o julgador deve-se reportar ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, como aconteceu com a decisão que ora se põe em crise, e no momento da decisão fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
53.º
E, se a suspensão da pena é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, o julgador tem o dever de a aplicar sempre que os pressupostos se verifiquem.
54.º
Embora, possa não ser considerado argumento válido, é certo que se o arguido tiver de cumprir prisão efectiva vamos aproximá-lo do mundo da toxicodependência e da delinquência.
55.º
Entendemos, por todo o exposto, tendo em conta a pouca gravidade do furto e o arrependimento demonstrado, que se deve dar uma oportunidade ao arguido.
56.º
Pelo que, a pena de prisão ao não ser suspensa vai proporcionar que o arguido volte a ser delinquente, e não, como visa a norma legal, que o mesmo se ressocialize e se afaste o arguido da criminalidade.
57.º
Uma vez que, o arguido se encontra totalmente integrado na sociedade e a trabalhar.
58.º
Caso assim não se entenda, sempre a suspensão da pena pode ser acompanhada por regras de condutas previstas no artigo 52° do C. P.
59.º
Por todo o exposto, salvo opinião diversa, deve a pena de prisão ser suspensa e pode ser sujeita a regras de condutas, como seja a apresentação periódica perante uma entidade competente, de forma a garantir que o arguido continue integrado na sociedade.
60.º
Ao se decidir, como se decidiu, violou-se o artigo 50°, 70°, 71° e 206° do c.p.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, revogando a douta Sentença em recurso, substituindo-a por um acórdão que considere existir erro no julgamento da matéria de facto e, em consequência considerar os pontos 3 e 8 dados como provados, como não provados, e, revogar a Douta decisão por um acórdão que absolva o arguido do crime na forma tentada por não existir actos de execução e, assim, absolvendo o arguido.
Caso assim não se entenda, deverá substituir a Douta decisão por um acórdão que não qualifique o crime de furto e, admitida a desistência de queixa, absolvendo-se o arguido.
E, finalmente, e caso assim não se entenda, deverá suspender a pena de prisão, sujeitando a suspensão a regras de conduta.
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A este recurso respondeu o Ministério Público, contrapondo a sua tese à do recurso do arguido, alegando que não há qualquer erro de julgamento na matéria de facto e que a pena aplicada é justa e decorre das regras de punição, nomeadamente a prevenção geral. Conclui pela improcedência do recurso.
Já neste Tribunal, o Senhor Procurador-geral Adjunto aderiu à resposta do Ministério Público em primeira instância, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente.
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Da sentença, são estes os factos (provados e não provados) e a respectiva motivação:
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Factos provados
No dia 29 de Agosto de 2007, pelas 3h41m, ao passar pelo estabelecimento de restauração e bebidas denominado F………., na altura pertencente a C………., sito na ………., S. João da Madeira, o arguido decidiu assaltá-lo.
Para esse efeito, fazendo uso das duas chaves de fendas apreendidas nos autos e que trazia consigo, estroncou os fechos de uma janela em vidro que serve de vitrina do estabelecimento, abriu essa janela e, através dela, passou para o interior do bar.
Já dentro desse estabelecimento, o arguido começou a procurar dinheiro e objectos de valor que eventualmente lhe interessassem e que facilmente poderia transportar no seu veículo estacionado ali perto.
Porém, alertados para a presença do arguido no local, os agentes da Polícia de Segurança Pública de São João da Madeira, E………. e D………., interceptaram-no no interior do estabelecimento, encontrando-se então o arguido, no momento da subsequente detenção, escondido atrás do balcão.
Nesse estabelecimento a ofendida possuía, entre outros artigos de valor, tabaco no valor de cerca de €1.500,00, bebidas no valor de cerca de €500,00 euros, um plasma no valor de cerca de €2.500,00, além de €50,00 em moedas no interior da caixa registadora.
Com o comportamento do arguido a ofendida sofreu prejuízos decorrentes da necessidade de substituição das fechaduras estroncadas e do vidro da vitrina em valor não concretamente apurado.
O arguido procurou-a em data não apurada para lhe pedir desculpas, e ainda que retirasse a queixa, pagando-lhe então o valor por ela gasto no conserto da vitrina, de cerca de €180,00.
Ao actuar da forma descrita agiu o arguido voluntária e conscientemente, com o intuito de fazer seus os objectos e dinheiro que encontrasse no estabelecimento sobredito, bem sabendo que não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do respectivo dono.
E só não logrou tais intentos face à pronta intervenção da Polícia de Segurança Pública, que não lhe deu tempo para se apoderar e sair dali com quaisquer bens.
Tinha o arguido perfeito conhecimento do carácter ilícito e criminoso do seu comportamento.
O arguido é solteiro, vive com a mãe, em casa desta e com quatro irmãos; tem uma filha de 2 anos de idade a viver com a progenitora; trabalha ocasionalmente para G………., seu amigo e construtor civil, que lhe paga €5,00/hora; trazia consigo quando da sua detenção a quantia de €455,00 em numerário.
O arguido tem pendente no T.J. de Santa Maria da Feira, com acusação deduzida, processo crime por tentativa de furto qualificado relativo a factos de 2006.
O arguido foi já anteriormente condenado nas seguintes penas:
de 2 anos de prisão suspensa na execução pelo mesmo período pela prática de um crime de furto qualificado, acórdão de 17/10/96, processo comum colectivo …/96, do Círculo de Santa Maria da Feira, extinta em 25/6/99 pelo decurso do prazo de suspensão;
de 7 meses de prisão suspensa na execução por 15 meses, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, sentença de 7/1/97, processo comum singular …/96, do .º Juízo Criminal do T.J. de Santa Maria da Feira, extinta em 18/10/99 pelo decurso do prazo de suspensão;
de 75 dias de multa pela prática de um crime de receptação, acórdão de 5/6/97, processo comum colectivo ../97, do Círculo de Santa Maria da Feira, vindo a ser declarada extinta a prisão subsidiária de 50 dias por aplicação da L. 29/99, de 12/5 (amnistia) em 19/5/2003;
de 20 dias de multa pela prática do crime de consumo de estupefacientes, acórdão de 14/7/97, processo comum colectivo ../97, do Círculo de Santa Maria da Feira, extinta;
de 12 meses de prisão suspensa na execução por 3 anos pela prática de um crime de furto qualificado, sentença de 4/12/97, processo comum singular …/96, do .º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira;
de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa na execução por 3 anos pela prática do crime de furto qualificado, sentença de 13/10/99, processo comum singular …/97, .º Juízo Criminal do T.J. de Santa Maria da Feira;
4 meses de prisão suspensa na execução pelo prazo de um ano e seis meses com a obrigação de pagamento de quantia à empresa lesada, pela prática de um crime de furto qualificado, sentença de 21/5/2007, processo abreviado …/06.9GAVLC do .º Juízo do T.J. de Vale de Cambra.
B) Factos não provados
Não existem.
C) Motivação
A nossa convicção baseou-se essencialmente nos depoimentos testemunhais de C………., dona, à data dos factos, do estabelecimento furtado, F………., e dos agentes policiais que procederam à sua detenção, D………. e E………. .
C………. deu-nos conta dos valores existentes dentro do estabelecimento, descrevendo-nos o seu recheio e avaliando-o, confirmando além do mais ter dinheiro na Caixa Registadora, admitindo que fossem cerca de €50,00 em moedas, pois deixava sempre ficar de um dia para o outro as moedas acumuladas, fosse qual fosse o seu montante.
Mais deu conta de duas deslocações do arguido ao seu estabelecimento, uma para lhe pedir desculpas e uma segunda para que não apresentasse queixa contra si, oferecendo-se para lhe pagar o prejuízo, vindo efectivamente a ressarci-la nessa ocasião da quantia de cerca de €180,00 que gastou no conserto da vitrina de vidro estroncada.
Já os agentes policiais descreveram de forma linear e consistente a ocorrência em que intervieram no estabelecimento, dando conta de que estavam a efectuar ronda no carro patrulha nas imediações do F………. quando receberam comunicação do Comandante da Esquadra segundo a qual deveriam deslocar-se àquele estabelecimento porquanto fora recebida uma chamada anónima que denunciava um indivíduo a tentar entrar naquele F………. e que estava pendurado na varanda.
Foram prontamente ao local indicado, pelo que, nas suas declarações, foi tudo de tal forma rápido que não deve ter dado tempo ao arguido de fazer nada; certo é que, depois de se munirem de um holofote, e entrando no estabelecimento pela porta estroncada, descobriram o arguido por detrás do balcão, tendo este dito: “eu não roubei nada”, mais informou os agentes de que tinha o carro estacionado a 300 m.
Na ocasião, tendo embora visto na zona do balcão uma chave de fendas, não a apreenderam por não saberem se se tratava de ferramenta do estabelecimento; porém, no dia seguinte a dona do F………. entregou na esquadra umas ferramentas dizendo não serem dela – cfr. termo de entrega de fls. 32.
O arguido trazia ainda consigo €455,00, conforme auto de apreensão de fls. 9, que veio a justificar por referência ao subsídio de desemprego que receberia na altura e pagamento de uns trabalhos efectuados para a testemunha G………. .
O arguido não quis prestar declarações.
Ora dos acima referidos depoimentos, os quais nos mereceram inteira credibilidade, numa leitura à luz das regras da experiência comum resulta medianamente claro que o arguido decidiu assaltar o F………. para do seu interior subtrair dinheiro e outros valores que ali pudesse encontrar, e deles se apropriar.
Na execução dessa decisão arrombou com recurso a chaves de fendas a vitrina de vidro do estabelecimento, introduzindo-se em seguida no seu interior; quando ali se encontrava foi surpreendido com a chegada da polícia que, por tão rápida, não lhe permitiu apropriar-se de nenhum objecto ou dinheiro.
Deixou ainda o seu carro estacionado ali perto, como constataram os agentes mediante informação logo ali prestada por aquele, o que lhe permitiria transportar consigo, se necessário, alguns objectos.
Note-se que o arguido tem vastos antecedentes criminais pela prática de crimes de furtos qualificados consumados, não sendo propriamente “novato” nestas lides, tudo apontando por isso para que, não fora a pronta intervenção da polícia, teria o mesmo concretizado os seus intentos criminosos apoderando-se de todos os bens que pudesse levar consigo do interior do estabelecimento.
Quanto às condições pessoais e sócio-económicas do arguido, relevaram as suas próprias declarações nesta matéria, e bem assim o depoimento testemunhal de G………., seu amigo de infância que o tem procurado auxiliar ao longo da vida, dando-lhe ocasionalmente trabalho na construção civil.
Considerou-se por fim o respectivo certificado de registo criminal junto a fls. 137 e sgs..
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Questões a resolver:
Neste recurso do arguido, estão pendentes as seguintes questões: a) o erro de julgamento na matéria de facto; b) a existência de actos de execução do crime: c) a qualificação do crime de furto; d) a medida da pena e sua eventual suspensão na execução.
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a) Do recurso de facto.
Após convite nesse sentido, o arguido veio apresentar novas conclusões de recurso; se bem que as mesmas ainda não respeitem todas as regras impostas pela lei e mencionadas no despacho, o certo é que o arguido fez um duplo esforço, no sentido de corrigir e condensar as mesmas; e assim, o recurso não será rejeitado.
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Como nota prévia e fundamental, importa desde já considerar e recordar que o recurso da matéria de facto não representa um novo julgamento (o que só ocorre nos casos restritos de renovação da prova em segunda instância, nos termos do Art. 430º do Código de Processo Penal); ele constitui um meio de cura para os eventuais vícios de julgamento em primeira instância, sempre tendo em atenção que este último tribunal julga em condições diversas do tribunal de recurso: a oralidade e a imediação são princípios basilares na recolha dos elementos probatórios; é na primeira instância que, em regra, o juiz se encontra em condições de avaliar a validade e a credibilidade de um documento, ou de um depoimento, quer de um declarante, quer de uma testemunha, quer mesmo de um arguido.
Dependendo o juízo de credibilidade (das provas oralmente produzidas) do carácter, da postura e da integridade moral de quem as presta e não sendo tais predicados apreensíveis mediante leitura, exame, audição e análise das peças processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é notório e evidente que o tribunal superior, salvo algumas excepções, adoptará o juízo valorativo formulado pelo e no tribunal a quo; esta linha orientadora de pensamento encontra eco e está hoje traduzida de forma perene na jurisprudência dos tribunais superiores.
Assim, usando aqui as palavras do Acórdão deste Tribunal, proferido em 29 de Setembro de 2004 (in Col. Jur., nº 177, pág. 211), o tribunal de segunda instância vai à procura, não de uma nova convicção, mas de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas, com os demais elementos dos autos, pode exibir perante si.
Por outro lado, estabelece o Art. 127º do Código de Processo Penal: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”: este é o princípio da livre apreciação da prova, peça basilar do nosso sistema jurídico-penal.
Este princípio deve ser entendido como o dever de “perseguir a verdade material, de tal sorte que a apreciação da prova há-se ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, susceptível de motivação e controle”.
São estas as regras a que esse mecanismo deve obedecer (Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 227): a livre apreciação da prova, porque não impressionista nem meramente arbitrária, deverá ter sempre subjacente, tal como encontra eco no Art. 374º, nº 2 do C. P. Penal, uma motivação ou fundamentação, ou seja, os motivos de facto que fundamentam a decisão, os quais não são, nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova ou os factos probatórios (thema probandum), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de certa forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
Livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado, 15ª edição, pág. 318).
Na mesma vertente, escreveu também Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, pág. 126): a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma real motivação da decisão; com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim: a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.
Graduando os diversos níveis deste mecanismo temos, numa primeira abordagem, a credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova, que depende e resulta essencialmente da imediação e da oralidade, com intervenção de elementos não racionalmente explicáveis ou definíveis; como exemplo, o valor e a credibilidade que se atribui a um determinado meio de prova, em consonância com o modo como essa prova surge no julgamento e perante o julgador.
Num outro nível, já referente à própria valoração da prova, intervêm as ilações e conclusões que o juiz opera a partir dos diversos meios probatórios; aqui, já estas induções não dependem apenas da supracitada imediação, mas basear-se-ão nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nas razões de ciência.
Esta linhagem de pensamento está hoje vertida e consagrada de forma unânime na jurisprudência dos tribunais.
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Feita esta introdução sobre o mecanismo que leva à formação da convicção, com especial incidência no princípio do livre apreciação, cumpre agora regressar à questão concreta, analisando – dentro destes parâmetros – a sentença recorrida, com especial atenção às provas indicadas nas alegações de recurso.
Não esquecemos, porém, que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, antes há-de surgir da análise global de toda a prova produzida, sem o que estaríamos a cindir o mecanismo de fundamentação em átomos desagregados, sem consistência, ou sem homogeneidade.
A apreciação da prova é a pedra de toque que revela a qualidade de quem julga; fazer ressaltar a verdade material é tarefa árdua, complexa e exigente, que alia o traquejo de vida, ao bom senso e às regras da lógica e experiência comum; finalmente, deve o juiz sempre colocar-se em posição equidistante das tensões em confronto, construindo a par e passo a verdade que lhe surge, sem nunca abdicar da sua independência e da sua função soberana.
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Ataca o recorrente a sentença nos pontos 3 e 8 dos factos provados, entendendo que os mesmos não resultam da prova produzida (Já dentro desse estabelecimento, o arguido começou a procurar dinheiro e objectos de valor que eventualmente lhe interessassem e que facilmente poderia transportar no seu veículo estacionado ali perto. Ao actuar da forma descrita agiu o arguido voluntária e conscientemente, com o intuito de fazer seus os objectos e dinheiro que encontrasse no estabelecimento sobredito, bem sabendo que não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do respectivo dono).
E nesse âmbito, aponta os extractos dos depoimentos que considera serem relevantes.
Ouvida a prova produzida em audiência, usando das regras de experiência comum e da lógica, facilmente a tese do arguido é desmontada:
As testemunhas (polícias) que falaram sobre a sua intervenção dentro do café confirmam que o arguido lá se encontrava escondido, atrás do balcão; naturalmente que este não foi ao café apenas em visita nocturna… Se lá se encontrava, é mais que lícito concluir que procurava subtrair objectos que ali se encontravam; e a frase proferida pelo arguido (não roubei nada) é a habitual em situações idênticas, sendo inconsequente.
Por outro lado, a pretensa colaboração com a polícia em nada releva, considerando a situação em que foi detectado, dentro do café e ali escondido: nada fez nesse sentido, para além de dizer que tinha vindo de carro e que nada roubara.
Aliás, as testemunhas não podiam dizer mais do que disseram, por não terem presenciado as acções do arguido antes da sua chegada. Mas é lícito ao julgador, partindo destas premissas conhecidas, atingir as conclusões obtidas, quer em relação às intenções do arguido, quer em relação à forma de agir e às suas consequências: quem entra de madrugada num café encerrado só pode ter um intuito, que é o de furtar; tal é a conclusão lógica de tal atitude.
E não se diga que, por não ter havido testemunha presenciais, a prova não pode ser assim interpretada: mal iria o Estado de Direito se apenas os crimes presenciados fossem punidos...
Finalmente, o arguido vale-se de pequenas frases ditas pelas testemunhas indicadas, esquecendo aquilo que já ficou escrito: a prova é apreciada em globo, não em parcelas; e só se uma destas parcelas fosse fortemente relevante, seria a mesma atendida; não é esse, decididamente, o caso!
Ressalta de todo o mecanismo de fundamentação e análise crítica explicitado na sentença recorrida um especial cuidado em – usando as regras da lógica e da experiência comum – convencer da sua bondade; dir-se-á mesmo que não seria exigido tanto, em sede de motivação; mas o julgador houve por bem explicar, ponto por ponto, as razões da sua convicção, criticando de forma exemplar os meios probatórios produzidos; e assim, essas razões surgem-nos tão claras, que difícil seria contrariar as mesmas…
A sentença fundamentou e motivou a matéria de facto nos depoimentos das únicas testemunhas que revelaram clareza, isenção, coerência e credibilidade, usando das regras de experiência e tirando as únicas conclusões correctas e de forma cristalina.
Sem mais considerandos, resulta claro que a prova foi bem avaliada e que os factos provados representam a verdade resultante daquela (outra terá sido a convicção do recorrente, mas não é essa a determinante, em Tribunal...).
Assim sendo, não havendo motivos para alterar o acervo fáctico, o mesmo é mantido e assim definitivamente fixado.
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b) Os actos de execução do crime.
Na segunda vertente do seu recurso, o arguido pretende que não praticou actos de execução do crime de furto, mas apenas actos de preparação, pelo que não será punível tal conduta.
De harmonia com o disposto no Art. 22º, nº 1, do Código Penal, há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
São actos de execução: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzirem o resultado típico; c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicados nas alíneas anteriores.
Diferenciando os conceitos, como escreve o Prof. Germano Marques da Silva (Direito Penal, II, 1998, pág. 232), os actos preparatórios são já actos externos que preparam ou facilitam a execução, mas ainda não são actos de execução. O seu conceito delimita-se, aliás, pela definição dos actos de execução do crime: o critério legal para a distinção entre actos preparatórios e actos de execução é um critério objectivo; os actos de execução hão-de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem. Acto executivo, portanto, é o acto dotado de idoneidade (capacidade potencial de produção do evento) plus inequivocidade. E acto preparatório é o acto que, além de inidóneo, deverá apresentar-se como equívoco, isto é, ambíguo (ibidem).
É frequente dizer-se que a tentativa constitui um crime imperfeito, o que é verdade quando se reporta a tentativa ao crime que o agente decidiu cometer e que fica incompleto. Nessa medida, a tentativa é um crime incompleto, um minus relativamente ao crime consumado, mas, do ponto de vista estrutural, a tentativa é um crime perfeito porque apresenta todos os elementos da estrutura essencial do crime em geral. Assim, no plano normativo, a tentativa constitui um título autónomo de crime, caracterizado pelo evento ofensivo que lhe é próprio (perigo), embora conservando o mesmo nomen juris do crime consumado (tipo) a que se refere e de que constitui execução incompleta. A configuração da tentativa como ilícito autónomo nasce da conjugação das duas normas: a da parte especial que incrimina determinado facto e a do Art. 22º que estende a incriminação a actos que não representam ainda a consumação do crime a que se referem. Há, pois, fusão de duas normas: a da parte especial que prevê determinado tipo de crime que o agente queria cometer e a da parte geral que estende a punição ao comportamento que o agente efectivamente comete: Ac. desta Relação, de 30.1.2008, relatado pelo Des. Borges Martins, www.dgsi.pt, proc. nº 0714132.
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Em relação ao caso em apreço:
Como resulta mais que óbvio, o arguido não praticou apenas actos preparatórios, mas actos de execução de um crime que, por razões alheias à sua vontade, não se consumou.
Ao entrar no estabelecimento, não o fez com outra intenção que não a de furtar, sendo indiferente que se tenha ou não apropriado dos objectos (aliás, se se tivesse apropriado, tal acto consumaria o crime de furto).
E tanto assim é que, mesmo não se provando o dolo específico (intenção de furtar, que ultrapassa o dolo genérico) do crime de furto, sempre resultaria provado um outro tipo legal, qual seja o crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto no Art. 191º do Código Penal.
Assim, de harmonia com o disposto no já referido Art. 22º, nº 2, alíneas a), do Código Penal, os actos praticados são de execução e constituem – em relação ao crime de furto – uma tentativa: o arguido praticou aqueles actos de execução do crime que decidira cometer, sem este se consumar.
Falece, deste modo, a argumentação do recurso.
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c) O crime de furto e a sua qualificação.
O crime de furto, previsto no Art. 203º do Código Penal, traduz a subtracção de coisa alheia, com intenção de apropriação para o agente ou para terceiro; a este intuito, contra a vontade do dono, chama a doutrina dolo específico (fraude), ou especial direcção de vontade que está para além do dolo genérico, exigindo porém a verificação deste e com ele convivendo.
Não é um acaso considerar-se o furto um dos exemplos mais marcantes de crime patrimonial simétrico: ao empobrecimento da vítima corresponde igual enriquecimento por banda do agente da infracção.
O bem jurídico protegido na norma incriminadora é a propriedade: o interesse protegido pela incriminação do furto ou do abuso de confiança é só o do proprietário (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, p. 513), consumando-se o crime com a entrada da coisa furtada na esfera patrimonial do agente ou de terceiro (B.M.J. nº 182, pág. 314).
São estas as grandes máximas normativas expressas que integram a construção dogmática da infracção: a) ilegítima intenção de apropriação e b) subtracção de coisa móvel alheia; c) a estes elementos expressos há ainda que acrescentar um elemento implícito, qual seja, o valor patrimonial da coisa.
Assim, o conceito de coisa móvel é dado pelas regras do direito civil: Art. 205º do Código Civil, por referência a contrario do Art. 204º do mesmo diploma legal.
É alheia toda a coisa que esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção, excepcionando-se aqui as res nullius, res derelictae e res commune omnium.
Subtracção traduz-se em uma conduta pela qual a coisa sai do domínio de facto do precedente detentor ou possuidor; implica, por consequência, a eliminação do domínio de facto que outrem detinha sobre a coisa: consiste na violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou de dispor dele, e a substituição desse poder pelo do agente; é na entrega ou sua falta que aparece nítida a diferença entre o furto, a burla e o abuso de confiança: no primeiro, a coisa passa por subtracção, isto é, sem a vontade do detentor, para o poder do agente; nos dois últimos, a coisa não é subtraída, mas entregue, é confiada ou posta à disposição do agente do crime, por vontade do detentor.
Finalmente, importa considerar que o crime de furto é, como ressalta de imediato, um crime essencialmente doloso.
Noutro ângulo, se neste crime se verificar qualquer uma das circunstâncias agravantes referidas no Art. 204º, tal infracção será qualificada e a pena será agravada; nomeadamente: quando a coisa furtada é de valor elevado: nº 1, alínea a), por referência ao Art. 202º, alínea a), do mesmo diploma legal; quando o furto é praticado com ilegítima introdução em habitação, estabelecimento ou espaço fechado: nº 1, alínea f); quando a introdução ilegítima em habitação, estabelecimento ou espaço fechado é feita através de arrombamento, escalamento ou chaves falsas: nº 2, alínea e).
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Considerando o acervo fáctico provado – que não foi alterado – estão ali reunidos todos os elementos essências, objectivos e subjectivos, do tipo legal incriminador, nomeadamente a sua qualificação, nos termos do Art. 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal: o arguido introduziu-se ilegalmente em estabelecimento comercial, com arrombamento (estroncamento) de uma janela.
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Resta uma questão, que o arguido interpretou de novo de forma incorrecta: ainda que se tratasse de crime de furto simples (e não é o caso), sempre terá de se afirmar que houve queixa formal: para tanto, bastará ler a participação de folhas 6 verso, onde está bem explícito o desejo de procedimento criminal pela vítima.
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Nada mais será necessário acrescentar, para se concluir pela correcta qualificação jurídica dos factos provados, tendo assim o arguido cometido um crime de furto qualificado, na forma tentada, tal como resulta da sentença recorrida.
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d) A medida da pena e a sua eventual suspensão.
No último segmento do seu recurso, o arguido insurge-se contra a pena que lhe foi aplicada, considerando que é elevada e que reúne as condições para a mesma ser suspensa na sua execução.
Para se decidir sobre este elemento do recurso, importa fazer uma incursão breve sobre as regras de determinação da medida concreta da pena:
A medida concreta da pena atinge-se, avaliando o comportamento delituoso dentro do respectivo enquadramento jurídico-penal, procurando dar a resposta punitiva adequada à medida da culpa e fazendo apelo aos princípios de prevenção geral e especial; de acordo com o Art. 40º, nº 1, do Código Penal a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; e estipula o nº 2 que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa. Por sua vez, o nº 1 do Art. 71º estatui que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção; e o seu nº 2 manda atender àquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime em causa, depuserem a favor ou contra o agente, indicando algumas dessas circunstâncias nas várias alíneas.
A culpa do agente fixa, assim, a moldura da punição, cuja medida concreta será ainda ajustada às exigências dos fins de prevenção (Robalo Cordeiro, Jornadas de Direito Criminal, pág. 271); a quantificação dessa medida da culpa resultará da ponderação de todos aqueles elementos, que nela se reflectem.
A individualização judicial da pena de prisão emerge do princípio da culpa; domina, na sua determinação, a teoria da margem de liberdade, que funciona entre parâmetros concretos, do já adequado à culpa ao ainda adequado à culpa, sem deixar de ter em conta os fins de prevenção geral e de prevenção especial.
Considerando que a reacção criminal tem em vista proteger interesses relevantes (os bens jurídicos protegidos), conservá-los e defendê-los, a sua razão de ser resulta da necessidade de evitar que esses interesses venham a ser violados, ou voltem a sofrer violações.
Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, o que significa que não há pena sem culpa e que esta decide a medida daquela. À luz aliás dos princípios emergentes do Direito Penal constituído, as penas devem reflectir essas finalidades de forma harmónica, visando sempre a protecção do bem jurídico que lhes subjaz e a realização dos fins éticos do sistema. Tal é a filosofia do já citado Art. 40º do Código Penal, a que acresce a ratio do Art. 71º, nº 1.
Em suma, o juízo de culpa ressalta da intuição do julgador, acessorada pelas regras da experiência comum: a lei oferece uma moldura mais ou menos ampla, dentro da qual o julgador há-de fixar a pena concreta, tendo em conta conjuntamente as particularidades do crime e do seu autor, orientando-se por critérios valorativos objectivos e nunca por critérios pessoais ou emocionais; o juízo de culpa, como juízo de valor, é uma enunciação que expressa o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e do direito (Ac. do STJ, de 10.04.1996, Col. Jur. STJ, IV, tomo 2, pág. 168).
Não sendo a pena concreta o resultado de simples operações aritméticas – que não teriam nunca razão de ser – ela há-de resultar da ponderação de todo o circunstancialismo provado, aquilatado pela personalidade do agente e sufragando as regras gerais de punição e os princípios delas emergentes.
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Na fixação da pena concreta, o Tribunal a quo utilizou os seguintes fundamentos:
Efectuado o enquadramento jurídico dos factos, cabe agora determinar a pena e sua medida concreta relativamente ao crime pelo qual vimos de condenar o arguido.
Para tanto, haverá que considerar que a moldura abstracta da pena prevista para o crime de furto qualificado em referência, tendo em atenção o preceituado nos arts. 41º/1, 47º/1, 23º/2 e 73º, todos do Código Penal, é de prisão de um mês até cinco anos e 4 meses.
Cabe, pois, dentro desta moldura abstracta encontrar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido considerando as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham contra ou favor dele.
Os critérios de determinação da medida concreta da pena encontram-se exemplificativamente enumerados no art. 71º do Código Penal, nele se definindo que a pena será delimitada pela inultrapassável medida da culpa do arguido, determinando-se o seu quantitativo tendo em atenção essa mesma culpa e as exigências de prevenção.
A prevenção geral, no seu entendimento mais actual, como prevenção geral positiva ou de integração, é um momento irrenunciável que não pode deixar de relevar decisivamente para a medida da pena, sendo que, no caso concreto, tais exigências são elevadas atenta a grande incidência deste tipo de cri­minalidade, as suas consequências ao nível da actividade económica e bem assim os sentimentos de insegurança que gera na comunidade que pressente em relação a estes ilícitos uma certa impunidade.
São, por isso, elevadas as exigências estabilização contra-fáctica da confiança da comunidade na norma jurídica violada.
São igualmente muito elevadas as exigências de prevenção especial atendendo ao cadastro do arguido, preenchido com múltiplos furtos qualificados, um dos quais com sentença transitada em julgado que lhe aplicou pena de prisão suspensa na execução, estando esse período de suspensão a correr na data da prá­tica dos factos em apreciação.
Nunca ao arguido chegou, no entanto, a ser aplicada pena de prisão efectiva, revelando-se o mesmo insensível às penas de substituição, que se resumiram à suspensão da execução da prisão efectiva.
Como circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, se associam directamente à sua prática ou à motivação que lhe deu origem, haverá a considerar ainda que:
o arguido agiu com dolo na sua modalidade mais intensa, de dolo directo;
o arguido tem antecedentes criminais pela prática, entre outros, de crimes de furto qualificado, sendo a última condenação de 21/5/2007, transitada em julgado em 25/6/2007, nunca tendo porém cumprido efectivamente as penas de prisão que lhe foram aplicadas, atenta a suspensão da sua execução;
dirigiu-se à ofendida pedindo-lhe desculpas e ressarcindo-a dos prejuízos que teve com a reparação da vitrina arrombada;
está desempregado e efectua uns trabalhos para G………., construtor civil, seu amigo de infância, que, quando tem trabalho lhe paga a €5,00 à hora.
Face às circunstâncias descritas, uma vez que se revela intenso o grau de culpa, elevadas as exigências prevenção especial e geral positiva, julga-se justa a aplicação da pena de 1 (um) ano de prisão.
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Tenhamos presentes duas normas que serão essenciais na determinação da referida medida da pena: o Art. 72º, nº 3 e o Art. 206º, nº 2, do Código Penal.
A pena concreta que foi aplicada mostra-se, à partida, bem doseada, considerando a culpa, o grau de ilicitude, a personalidade do arguido, os seus antecedentes criminais e as demais circunstâncias atendíveis, reguladas pelo Art. 71º do mesmo diploma legal, estando a mesma determinada dentro dos parâmetros legais.
Importava sobretudo ter em conta que o arguido já tem antecedentes de larga monta e que os factos aqui discutidos foram praticados dentro do período de suspensão da pena que lhe fora aplicada no processo referido no acervo.
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Trata-se, por um lado, de crime tentado, o qual beneficia já de uma atenuação especial, conforme se prevê no Art. 23º, nº 2, ainda do Código Penal.
Por outro lado, é certo que o arguido ressarciu a vítima, em relação aos danos provocados com a sua entrada no estabelecimento em causa.
Porém, não se mostra provada: nem a data em que tal reparação teve lugar, sendo certo que o Art. 206º refere que a mesma terá de ocorrer até ao início do julgamento em primeira instância; nem se o arguido reparou integralmente o mal cometido.
Assim, não há lugar à aplicação do disposto no citado Art. 206º, nº 2, do Código Penal, sendo certo que, paradoxalmente, o legislador quis, neste aresto legal, apenas contemplar os crimes consumados contra a propriedade (deixando de fora os crimes em que não há efectiva apropriação da coisa, quer no furto, quer no abuso de confiança).
Por outro lado, beneficiando o arguido de uma atenuação especial da pena, por estarmos perante um crime tentado, não poderá beneficiar de uma segunda atenuação, face ao disposto naquele Art. 72º, ainda do mesmo diploma.
Finalmente, sempre se dirá que o arguido não reúne os predicados e os requisitos necessários para beneficiar desta benevolência.
Deste modo, considera-se justa e equilibrada a pena aplicada, pelo que a mesma será mantida.
Não foi, pois, violado qualquer aresto legal pelo tribunal recorrido, sendo a pena concreta um reflexo perfeito do grau de culpa do arguido e da sua personalidade.
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Não se vê, também, forma de justificar uma suspensão da execução de tal pena, não estando preenchidos os pressupostos previstos no Art. 50º do Código Penal: nomeadamente, a prognose relativa ao percurso de vida do arguido não se mostra favorável.
Deste modo, nunca a pena poderia ser suspensa na sua execução, sendo elementos essenciais a eficácia da pena, os seus antecedentes criminais e a violação das regras de suspensão da pena anterior.
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Mas a situação exige a ponderação das seguintes questões prementes, ainda na vertente da pena concreta adequada: as penas de multa, de trabalho a favor da comunidade e a suspensão da pena não seriam nunca as desejáveis, nem com elas se atingiriam as metas legais exigidas, considerando os elementos disponíveis e atendíveis; mas, por outro lado, convém ter em conta que o internamento prisional imediato e por 12 meses poderá ser contraproducente, considerando que o arguido tentou, até onde lhe era possível, indemnizar a vítima e que as consequências do crime são diminutas.
É certo que o arguido não tem um projecto de vida consistente, não tem trabalho certo, não tem uma vida familiar estável; também é certo que o internamento prisional é necessário; porém, não se torna exigível que o mesmo seja cumprido de forma abrupta e seguida, evitando os respectivos estigmas negativos.
Será, assim, caso de lhe aplicar uma medida detentiva mais ajustada, sem fazer perigar os prementes interesses punitivos do Estado.
Isto é, a medida adequada será a prisão por dias livres.
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A pena de prisão por dias livres, que é uma verdadeira pena autónoma, justifica-se como uma forma moderna de obviar, ou pelo menos de atenuar, os efeitos maléficos das penas curtas de prisão de cumprimento continuado (sendo também certo que alguma jurisprudência se inclina para as suas vantagens anti-criminógenas).
Ainda que conhecidas os inconvenientes (mesmo em sede de socialização) da pena de prisão, especialmente nos casos de pequena e mesmo média criminalidade, não podemos deixar de constatar, uma vez mais, que estamos perante um caso em que a simples censura do facto e a ameaça da pena não realizam de forma adequada as finalidades da punição.
O arguido revela um quadro de antecedentes criminais que dá nota de uma determinada propensão para a prática de crimes contra o património, sem sequer interiorizar a gravidade dessas suas condutas reiteradas.
Como já ficou escrito, nada aponta (não se mostra recuperado ou em vias de o fazer) para que pretenda pôr cobro a um tal agir e nem o facto de ter sido sucessivamente condenado em pena de prisão suspensa o determinou a proceder de forma a conformar-se com as regras e o respeito pelas punições já sofridas.
Por outro lado, porém, considerando que o arguido ainda não sofreu condenação em pena detentiva (efectiva), no sentido de se obviar aos referidos inconvenientes ligados ao cumprimento de penas curtas de prisão e aos reflexos, nomeadamente pessoais, familiares e sociais sobre o condenado, afigura-se adequado, nos termos previstos no Art. 45º, nº 2 e nº 3, do Código Penal, determinar o cumprimento de uma tal pena por dias livres, aos fins-de-semana, em períodos de 36 (trinta e seis) horas, entre as 9:00 horas de Sábado e as 21:00 horas de Domingo.
Tenhamos em atenção que no actual Código, vigente desde o dia 15 de Setembro de 2007, o referido Art. 45º do Código Penal foi alterado e permite hoje a aplicação de tal medida às penas de prisão fixadas até 1 ano.
Pretende-se que, desta forma (vincando que a impunidade não é - não pode ser - um galardão cívico), o arguido melhor tome consciência da necessidade de respeitar os valores que tem violado e de alcançar, de forma responsável, a sua ressocialização, ficando ao mesmo tempo pacificados os anseios legítimos de segurança da comunidade.
Deste modo, a pena de 1 ano de prisão efectiva aplicada ao arguido será cumprida em dias livres, no período já mencionado, correspondendo a 72 períodos de 36 horas cada um.
Deste modo, procede parcialmente o recurso do arguido, ainda que por razões e fundamentos diferentes.
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Decisão.
Pelo exposto, acordam nesta Relação em, julgando o recurso do arguido parcialmente procedente (ainda que por razões diversas), substituir a pena de prisão efectiva pela pena de prisão por dias livres, correspondente a 72 períodos de 36 horas cada um, das 9:00 horas de sábado até às 21:00 horas de domingo, com início no fim-de-semana seguinte ao trânsito desta decisão.
O arguido pagará 4 UCs de taxa de Justiça.
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Porto, 21.01.2009
António Luís T. Cravo Roxo
António Álvaro Leite de Melo