Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
222/10.6GFVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VASCO FREITAS
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
FIEL DEPOSITÁRIO
VEÍCULO APREENDIDO
Nº do Documento: RP20101215222/10.6GFVNG.P1
Data do Acordão: 12/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não incorre em ilícito criminal [crime de desobediência] ou contra-ordenacional [art. 161.º, n.º 7, do CE] o fiel depositário que circula em veículo automóvel apreendido por falta de título de registo de propriedade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 222/10.6GFNG.P1


Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I RELATÓRIO
No 3º juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido B………, devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu absolvê-lo da prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348º ° nº1 al. b) do C. Penal, determinando-se extracção de certidão da respectiva sentença e sua remessa à ANSR para efeitos de eventual procedimento contra-ordenacional.
Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso o MºPº, pugnando pela condenação do arguido e formulando as seguintes conclusões:
“1 Encontrava-se o arguido acusado pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348°, n.° 1, al.a) do C.P..
2 Da matéria dada como provada resulta que o arguido foi interceptado no dia 11.07.2010, pelas 3h20m, quando conduzia na via pública o veículo identificado nos autos, que havia sido apreendido pela GNR em 9.04.2010, por falta de actualização de registo de propriedade, tendo então este sido nomeado fiel depositário do veículo e pessoalmente notificado de que não podia utilizá-lo, com a advertência expressa de que, caso não cumprisse, incorreria na prática de um crime de desobediência.
3 Porém, decidiu o Sr. Juiz pela absolvição do arguido, por considerar que a apreensão do veículo do arguido teve por base o disposto no artigo 162°, n.° 1, al. e) do Código da Estrada, a qual implica obrigatoriamente a apreensão do documento de identificação do veículo (161°, n.° 1, al. e)), pelo que, prevendo a lei expressamente uma sanção para quem conduzir veículo que tenha o documento de identificação apreendido, conforme resulta do artigo 161°, n.° 7 do C.E. onde se sanciona tal conduta a título de contra-ordenação com coima de € 300 a € 1.500, não é legítima a cominação da prática do crime de desobediência, atenta a subsidiariedade do preceito incriminador.
4 A situação em causa nestes autos não é a condução de um veículo com o documento de identificação apreendido mas antes a conduta do fiel depositário de um veículo apreendido e que expressamente advertido pela autoridade competente, de que não podia utilizá-lo e que caso não cumprisse incorreria na prática de um crime de desobediência, transita com ele na via pública, desobedecendo a tal ordem.
5 Não se pode concluir, como fez o Sr. Juiz a quo, que estando a conduta do arguido tipificada como contra-ordenação não é legítima a cominação da prática de um crime de desobediência, pelo que, atento o carácter subsidiário do preceito incriminador – artigo 348°, n.° 1 do C.P. -, aquela conduta não integra a prática daquele crime.
6 É que a conduta praticada pelo arguido e que está provada nos autos não se encontra prevista por qualquer disposição legal, designadamente de natureza contra-ordenacional nos termos defendidos pela decisão recorrida, já que, como vimos, uma coisa é a condução de um veículo com os documentos apreendidos e outra coisa, diferente daquela, e a condução de veículo apreendido...
7 A contra-ordenação p. e p. _pelo artigo 161º, nº 7 do Código da Estrada é praticada por aquele que utiliza um veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, tenha esta apreensão ocorrido por qualquer um dos fundamentos previstos nas alíneas daquele artigo 161º.
8 E o crime é praticado por quem, sendo fiel depositário de um veículo apreendido, o utiliza, desobedecendo à ordem legítima que havia recebido.
9 O que trata o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.° 5/2009 é uma questão diferente da que consta destes autos: é a questão da qualificação jurídica – crime qualificado ou simples - do ilícito cometido pelo depositário que, contra a ordem legítima recebida em sentido contrário pela autoridade pública competente, coloca em circulação um veículo apreendido.
10 O que nos leva a concluir que a posição assumida pelo tribunal recorrido sempre seria uma falsa divergência em relação ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.° 5/2009, não porque nestes autos não se tratar de uma apreensão de veículo por falta de seguro mas relacionada com o registo de propriedade, mas porque, se debruça sobre uma realidade fáctico-jurídica diferente daquela sobre a qual incidiu o referido aresto e por isso não afasta a jurisprudência fixada no sentido de que os factos objecto destes autos, integram, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do art° 348° n°1 alínea b) do Código Penal.
11 Concluindo: se o fiel depositário reincidir na condução do veículo automóvel apreendido sem haver regularizado a situação que despoletou a sua apreensão comete o crime de desobediência, caso tenha havido a regular cominação com tal crime.
12 Neste caso, o crime de desobediência não se reconduz à circulação do veículo sem documento de identificação por este se encontrar apreendido mas sim ao desrespeito pela proibição de circular com o veículo apreendido sem o registo de propriedade actualizado.
13 De resto, basta atentar-se na sentença recorrida para se concluir que todos os referidos elementos constitutivos do crime se encontram preenchidos, dando-se como reproduzidas as considerações efectuadas supra acerca da legitimidade da ordem dada, e da inexistência de outra disposição legal a prever e punir a conduta em causa.
14 Também o dolo do arguido se encontra dado como provado.
15 Assim, verificados que estão os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual vinha o arguido acusado, não poderá deixar de se concluir pela sua condenação, devendo a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que o condene, em conformidade.
Deverá assim, ser o presente recurso considerado procedente e, em consequência, substituir-se a sentença recorrida por outra que condene o arguido pelo crime de que vinha acusado, com o que se fará
JUSTIÇA.”
O recurso foi admitido.
Na resposta, o arguido pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso, concluindo como segue:
“1. Da decisão recorrida não se conclui que o Tribunal "a quo" tenha incorrido num equívoco ao absolver o arguido pela prática de um crime de desobediência porque foi submetido a julgamento;
2.A apreensão do veículo em causa foi efectuada ao abrigo do disposto nos art. 161°, n° 1, al. e) e 162°, n° 1, al. e) ambos do CE;
3.Implicando tal apreensão, de acordo com o disposto na al. e) , do no 1, do art. 161º do CE, a apreensão do documento de identificação do veículo, a condução deste nessa situação constitui contra-ordenação (leve) e é sancionada com coima;
4.A incriminação prevista a al. b), do n° 1, do art. 348° do CP tem carácter meramente subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência pelos particulares a normas legais ou ordens ou proibições;
5. Existindo, ilícito próprio no qual se subsume a conduta do arguido que não respeite a proibição de conduzir um veículo apreendido sem que tivesse actualizado o registo de propriedade - art. 162º, n° 1, al. e), do CE- considera-se que a autoridade policial não podia cominar com o crime de desobediência o desrespeito pela ordem dada;
6.Pelo que a autoridade ou o funcionário apenas podem fazer a cominação da prática do crime de desobediência quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto na lei para sancionar essa mesma conduta, independentemente da sua natureza;
7.Daí que, sendo ilegal, a cominação do crime de desobediência feita pelo agente de autoridade, não se mostram preenchidos os pressupostos do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348° no 1 al. b) do CP.
8. Não se vislumbra que a posição assumida pelo tribunal "a quo" seja uma falsa divergência em relação ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência;
9.0 que trata a jurisprudência fixada é uma questão diferente da dos presentes autos, e refere-se expressamente à apreensão de veículo por falta de seguro;
10.Por outro lado a jurisprudência fixada teve em vista a divergência jurisprudencial que se traduzia em saber se a utilização de veículo apreendido por falta de seguro obrigatório constituía um crime de desobediência qualificada ou simples;
11. O Acórdão de Fixação de Jurisprudência em apreço não se debruçou sobre a questão de a utilização de veículo apreendido (por falta de seguro obrigatório) estar prevista como contra-ordenação.
TERMOS EM QUE e nos mais de Direito que possam V. Exas. doutamente suprir, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida nos seus termos a douta decisão recorrida, assim se fazendo a inteira, esperada e sã
JUSTIÇA”
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O Exmº Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal limitou-se a acompanhar a posição do MºPº na 1ª instância.
Foi cumprido o art. 417º nº 2 do C.P.P.
No exame preliminar suscitou-se a questão da rejeição do recurso e daí que, colhidos os vistos, tenham estes autos sido apreciados em conferência.
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II FUNDAMENTAÇÃO
A factualidade consignada na sentença recorrida é, para o que ora nos interessa, a seguinte:
“a) Pelas 3 horas e 20 minutos do dia 11 de Julho de 2010, o arguido seguia ao volante do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-EC, conduzindo-o pela Rua ………., em ………., Vila Nova de Gaia.
b) Tal veículo, tal como o documento de identificação, encontrava-se apreendido desde 9 de Abril de 2010, por acção da Guarda Nacional Republicana, uma vez que, naquela ocasião, o veículo foi encontrado a circular sem que tivesse o registo de propriedade actualizado para o nome do arguido.
c) Quando as autoridades policiais procederam à apreensão do veículo, o arguido foi constituído fiel depositário do mesmo, tendo naquela ocasião sido advertido, nomeadamente, de que não o podia utilizar, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
d) Após a apreensão, o arguido não regularizou a situação registar do veículo.
e) Apesar disso, o arguido não respeitou a obrigação que sobre si incorria como fiel depositário e utilizou o aludido veículo, circulando com o mesmo nos termos referidos em a), tendo agido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de conduzir e circular com o veículo em causa, bem sabendo que o mesmo se encontrava apreendido e por isso lhe estava vedada a respectiva utilização, estando ciente de que desobedecia a uma ordem legítima emanada de uma autoridade competente e de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Outros factos provados
f) O arguido está desempregado desde 2007.
g) Até ao final de 2009, auferiu RSI, no valor mensal de pelo menos 1E280,00.
h) Neste mês de Julho, iniciou uma formação remunerada, com duração de 20 dias, sendo que, no global, irá auferir pelo menos C 300,00.
i) O arguido vive com um filho menor em casa arrendada, pagando cerca de C 250,00 de renda.
j) O veículo supra referido foi adquirido pelo arguido, em 2009, pelo preço de C 500,00.
k) O arguido tem o 12° ano de escolaridade.
1) O arguido não tem antecedentes criminais.”

O Direito
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão do presente recurso é da saber se a conduta do arguido, nomeado fiel depositário de veículo apreendido, que circulava com ele na via pública, é punida como desobediência por ter sido advertido expressamente dessa cominação, ou será antes uma contra-ordenação, e se a decisão recorrida viola a jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 5/2009
O ilícito penal de que o arguido vinha acusado encontra-se previsto no artigo 348º n°1 do C.P. o qual refere que comete o crime de desobediência: "Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente é punido com ( ... ), se":
a) "Uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples;
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.".
Do exposto retira-se que o crime de desobediência existe se,
- existir uma disposição legal que expressamente comine a punição da conduta como desobediência [alínea a) do art.º 348º do C. Penal];
Ou na sua ausência,
- se uma ordem formal e substancialmente legítima, provinda de autoridade competente para a emitir for comunicada ao agente [alínea b) do art.º 348º do C. Penal][2].
Em situação análoga à dos autos, o STJ[3] fixou jurisprudência no sentido de que “O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto -Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro”.

Por isto há que ter em atenção que Acórdão de Fixação de Jurisprudência n° 5/2009 fixou Jurisprudência no sentido de que " O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do art° 348° nº l al.b) do Código Penal, e não o crime de desobediência qualificada do art° 22° nos 1 e 2, do Decreto –Lei n°54/75, de 12 de Fevereiro".
E isto porque “a apreensão do veículo por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil não se enquadra em nenhum dos actos regulados no Decreto-Lei n.º 54/75 e não sendo uma «apreensão prevista neste diploma» (a ela se não referem os art.ºs 1 e 2 do artigo 22.º). E ainda porque inexiste ilícito próprio no qual se subsuma a conduta do agente que não respeite a proibição de conduzir um veículo apreendido por falta de seguro obrigatório, nem existe norma legal que a qualifique como desobediência simples ou qualificada.
Assim sendo, resta a subsunção directa dessa conduta à alínea b) do n.º 1 do artigo 348º do Código Penal.
Diga-se desde já que partilhamos da posição do recorrente quando refere que o aresto citado faz referência a uma situação distinta à tratada nos presentes autos.
Com efeito naquele discute-se a questão se é crime de desobediência qualificada ou não a conduta do depositário que contra ordem legítima, fundada na falta de seguro obrigatório, coloca em circulação um veículo apreendido, concluindo-se pela aplicação do artº 348º nº 1 al. b) do Cod. Penal ou seja pela existência de um crime de desobediência simples, não qualificada e a que se referia o artº 22º nº 2 do Dec-lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro
Aqui discute-se se o fiel depositário de um veículo apreendido por falta de título de registo de propriedade, incorre num ilícito criminal ou contra-ordenacional, este previsto no artº 161º nº 7 do Cod. da Estrada quando contra ordem legítima recebida em sentido contrário o coloca em circulação.
O artº 85º do Cod. da Estrada referindo-se aos documentos que o condutor deve ser portador refere no seu nº 2 que:
“Tratando-se de automóvel, …………………, o condutor deve ainda ser portador dos seguintes documentos:
a) Título de registo de propriedade do veículo ou documento equivalente
b) ……..
Por sua vez o seu nº 4 estabelece que se o condutor se não fizer acompanhar de um ou mais documentos referidos nos nº 1 e 2 é sancionado com uma coima cujo valor será de € 60,00 a € 300,00, salvo se os apresentar no prazo de 8 dias, caso em que o valor da mesma passará a ser de € 30,00 a € 150,00
Por sua vez, o artº 162º nº 1 al. e) do Cod. Estrada refere que haverá lugar à apreensão do veículo quando “O respectivo registo de propriedade ou a titularidade do documento de identificação não tenham sido regularizados no prazo legal”
Assim sendo, a ordem dos agente da PSP de proibir o veículo de transitar na via pública enquanto não tiver regularizado o respectivo registo de propriedade, sob pena de desobediência é legítima e em obediência à dita lei.
Por outro lado verifica-se que inexiste norma a mandar punir como desobediência a conduta de condução de veículo apreendido, pelo que esta só pode ser punida como desobediência prevista na alínea b) do art.º 348º do C. Penal, se ao agente tiver sido regularmente transmitida uma ordem formal e substancialmente legítima, provinda de autoridade competente para a emitir, advertindo das consequências.
Uma segunda questão é a de saber se a conduta é punida a título de contra-ordenação, o que impediria que seja punida a título de desobediência.
É ponto assente e pacífico que os elementos do tipo de desobediência, quando esta não esteja expressamente punida por Lei, são:
1. Uma legalidade formal traduzida na existência de um comando da autoridade ou do funcionário, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, que pode ser positiva (acção) ou negativa (omissão), em termos concretamente definidos na ordem ou mandato e apreensíveis;
2. Que a ordem seja substancial e formalmente legítima;
3. Que a autoridade que dá a ordem tenha competência para tanto;
4. Que a ordem seja regularmente comunicada ao destinatário.
5. Também é comummente aceite que a autoridade ou o funcionário só podem impor a conduta, sob pena de desobediência, se o comportamento em causa constituir um ilícito, seja ele de natureza criminal ou contra-ordenacional
Aqui haverá que ter em conta que a alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente.
Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal (Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 354.).
São as chamadas desobediências não tipificadas, a ficarem dependentes, para a sua relevância penal, de uma simples cominação funcional.
Em suma. E para o que nos interessa faltar à obediência devida não constitui, por si só, facto criminalmente ilícito, exigindo-se que o dever de obediência que se incumpriu, se não tiver a sua fonte numa disposição legal que comine, no caso, a sua punição, como desobediência, radique na cominação da punição da desobediência, feita por autoridade ou funcionário competentes para ditar a ordem.
Defende o Sr. Juiz que a conduta é punível como contra-ordenação.
Com o devido respeito, assim não é.
Como é sabido, está instituído em Portugal o regime de obrigatoriedade de porte de documentos, dentre os quais sobressai o título de registo de propriedade do veículo ou documento equivalente- artº 85º nº 1 e 2 al. a) do Cod. Estrada que visa:
- individualizar os respectivos proprietários e
- publicitar os direitos inerentes aos respectivos veículos automóveis
Quem violar tal obrigatoriedade fica incurso em coima de € 60,00 A € 300,00 ou de € 30,00 a € 150,00 se o condutor apresentar o título do registo no prazo de 8 dias à autoridade indicada pelo agente de autoridade
Esta contra-ordenação é considerada leve – n.º 2 do art.º 136º do C. Estrada.
A alínea e) do n.º 1 do artigo 162.º do Código da Estrada manda que o veículo seja apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando o respectivo registo de propriedade ou a titularidade do documento de identificação não tenham sido regularizados no prazo legal. Porém, o veículo não pode manter-se apreendido por mais de 90 dias devido a negligência do titular do respectivo documento de identificação em promover a regularização da sua situação, sob pena de perda do mesmo a favor do Estado. (nº 2 do citado preceito legal)
Se e quando o veículo for apreendido, manda a alínea e) do n.º 1 do art.º 161º do C. da Estrada que o documento de identificação do veículo seja também apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes.
A condução de veículo sem que o condutor seja portador do documento de identificação do veículo, estando este (documento único) apreendido, é punida com coima de 300€ a 1500€ - n.º 8 do art.º 61º do C. Estrada – e já não só com a coima 60€ a 300€, sanção aplicável pelo facto de o condutor não se fazer acompanhar do documento único (não estando este apreendido).
Ora da simples leitura dos preceitos referidos, torna-se obrigatório concluir que o legislador distingue claramente:
1. A apreensão do veículo;
2. A apreensão de documentos do veículo, mesmo que esta tenha na sua origem a apreensão do veículo.
Com efeito se a apreensão do veículo determina a apreensão do documento único, a inversa não é verdadeira: é possível fazer-se a apreensão dos documentos sem que se faça também a apreensão do veículo. Veja-se o caso da alínea c) do art.º 161º do C. da Estrada que manda fazer a apreensão do documento único quando o mesmo “se encontre em estado de conservação que torne ininteligível qualquer indicação ou averbamento”, e sem que o veículo seja apreendido.
Assim haverá forçosamente que concluir que a condução do veículo com os documentos apreendidos nada tem que ver com a condução de veículo estando este apreendido, embora esta possa implicar aquela e não já o contrário.
Trata-se, por isso, de condutas diversas, distintas, a reclamar distinto tratamento jurídico sendo que a apreensão, em cada uma das situações, visa fins diferentes:
- Enquanto que a apreensão dos documentos tem por finalidade primordial facilitar a fiscalização, evitando “a circulação do veículo desacompanhado do documento de identificação”, a finalidade da apreensão do veículo é de evitar “a prossecução de uma situação antijurídica, que consiste na condução em via pública de veículo a motor”, neste caso sem o registo de propriedade ter sido regularizado no prazo legal.
Assim, enquanto que à data dos factos a circulação com os documentos apreendidos é punida com coima de 300€ a 1500€ - n.º 7 do art.º 161º do C. da Estrada -, o certo é que o mesmo código não sanciona com qualquer coima a circulação/trânsito com o veículo apreendido.
Neste caso, porque a apreensão foi efectuada por agente de autoridade que, em cumprimento do disposições do Cod. da Estrada, transmitiu a ordem de não circulação enquanto se mantiver a apreensão, uma vez desobedecida, e verificados os restantes requisitos do tipo, o agente fica incurso em crime de desobediência.
Assim e atento o exposto resultar a nosso ver claro que a contra-ordenação p. e p. pelo n.º 7 do art.º 161º do C. da Estrada sanciona apenas a condução de veículo com documentos apreendidos, já que prevê a aplicação de uma coima apenas para quem conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido.
Mas já não prevê nem sanciona a situação de quem conduzir ou transitar com veículo apreendido, sendo que conforme supra se referiu é possível conduzir um veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, e sem que aquele esteja, também, apreendido.
Não sendo possível recorrer-se à analogia para efeitos de incriminação sob pena de se violar o princípio da legalidade, forçoso será de concluir que o preceito não é aplicável a quem conduzir ou fizer transitar veículo apreendido, comportamento esse que é punível com a pena da desobediência se verificados os requisitos do tipo.
Poder-se-ia ser tentado a sustentar que a situação em causa nos autos integraria a figura de desobediência qualificada prevista no artº 22º nº 2 do Dec-Lei nº 54/75 de 12 de Fevereiro,
Cremos que não.
Na verdade, as normas do Decreto-Lei n.º 45/75, de 12 de Fevereiro, referem-se a questões de registo de ou sobre automóveis, reportando-se sempre a situações que estão previstas como actos sujeitos a registo (artigo 5.º). regulamentando procedimentos que decorrem da obrigatoriedade de registo (artigo 10.º) ou acautelando o desenvolvimento dos seus procedimentos, como a apreensão que visa acautelar a venda do veículo e o direito do credor (artigos 17.º e 18.º).
Da análise do artº 5º do diploma citado, verifica-se que nos termos da sua al. e) o registo dos actos a ele sujeitos abrange, para além do arresto e penhora de veículos automóveis, “a apreensão prevista neste diploma”.
Esta refere-se à apreensão ordenada pelo juiz no âmbito do processo para apreensão de veículo, a previstos nos artigos 15.º a 21.º ou seja, a apreensão em virtude do vencimento e não pagamento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, do não cumprimento do contrato por parte do adquirente, ordenada pelo juiz no processo a que se reporta o artigo 15.º.
E é este tipo de apreensão (ao lado da penhora e arresto de veículos, todos especialmente referidos no Decreto-Lei n.º 45/75 e sujeitos a registo) que envolve a proibição de o veículo circular e se comina com o crime de desobediência qualificada (artigo 22.º, n.os 1 e 2.) não se aplicando nem nada indicando em sentido diverso, designadamente quanto à sua aplicação em geral como é o caso dos autos.
Em conclusão: não sendo a conduta de quem conduz ou transita com veículo apreendido punida com coima (particularmente a prevista no artigo 161º, nº 7, do CE, como invocado pelo julgador da 1ª instância), e porque o bem jurídico violado carece de tutela jurídico-penal, nada obsta a que seja punida por desobediência, se estiverem reunidos os restantes elementos do tipo.
Assim, procede o recurso interposto pelo MºPº, impondo-se a revogação da sentença, a qual deverá ser substituída por outra, a proferir pela 1ª instância, partindo do pressuposto de que a apurada conduta do arguido não integra a dita contra-ordenação prevista no artigo 161.°, n.° 7, do CE.
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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente os recurso, e em consequência do que revogam a sentença recorrida, a qual deverá ser substituída por outra no pressuposto de que a apurada conduta do arguido não integra a dita contra-ordenação prevista no artigo 161.°, n.° 7, do CE.
Sem custas.

Porto, 15 de Dezembro de 2010
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias