Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0536414
Nº Convencional: JTRP00038678
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RP200601120536414
Data do Acordão: 01/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I- O direito de habitação da casa de morada de família previsto no artº 2103º-A do Cód. Civil, adquirido por um herdeiro a quem não tocou a propriedade da casa, constitui-se ex novo sobre coisa alheia, como emerge da redacção do nº 3 do mesmo artº 2103º-A.
II- Com tal direito não se pode estar a reforçar quantitativamente a posição sucessória do cônjuge sobrevivo, ou seja, não se pode com aquela disposição (artº 2103º-A) ampliar o quinhão do cônjuge.
III- Assim, se para cálculo do valor de direito de habitação da casa de morada da família, previsto no artº 2103º-A, do Cód. Civil-- à falta de outros critérios legais específicos, e não havendo consentimento de todos os partilhantes, pois, havendo-o, prevalecerá--, há que fazer uso das percentagens previstas no artº 13º do C.I.M.T.,
IV- tais percentagens devem incidir sobre o valor da propriedade plena de todo o prédio e não (apenas) sobre uma (pretensa) “meação” do inventariado nesse bem.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

No ...º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Ovar correm termos uns autos de inventário com o nº ...../04. 0TBOVR , para partilha da herança aberta por óbito de B....., sendo cabeça de casal o cônjuge sobrevivo C...... .

Foi apresentada a relação de bens pela cabeça de casal, de entre os quais se relacionou o imóvel que constituía a casa de habitação do casal (verba nº 8)- cfr. fls. 37.
Teve lugar a conferência de interessados, sendo que, logo que a mesma foi aberta, foi pela cabeça de casal (cônjuge sobrevivo) requerido o seu encabeçamento no direito de habitação da casa de morada de família, constituída pela aludida verba nº 8 da relação de bens, bem assim no direito de uso do respectivo recheio, constituído pelos móveis das verbas nºs 2 a 7 , ao que nada opôs a outra interessada na partilha D...... (cfr. fls. 74).
Organizado um único lote, com as verbas 2 a 7 – a verba nº 1 constituía o passivo e foi aprovada por ambos os interessados--, teve lugar a licitação dos bens, tendo esse lote de bens (nºs 2 a 7) sido licitado pela cabeça de casal, tendo a interessada D....... licitado na verba nº 8 (cfr. fls. 75).

Foi dada a forma à partilha, quer pelos interessados (fls. 76), que pelo Mmº Juiz a quo (fls. 80).

A fls. 86 foi calculado o direito à habitação - em “35% sobre a meação” e não sobre o valor da propriedade plena do imóvel (verba nº 8).

A fls. 87 a 89 é elaborado o mapa informativo, no qual o valor do aludido direito de habitação figura nos termos acabados de referir (35ª sobre a meação), seguindo-se o cumprimento do disposto no artº 1377º, nº1 CPC.

Vem, então, a interessada D..... requerer que o Mmº Juiz se pronuncie sobre o cálculo do direito de habitação, no sentido do propugnado pela requerente - isto é, que o mesmo seja calculado sobre o valor da propriedade plena de todo o imóvel (fls. 94).

Sobre o requerido recaiu o despacho de fls. 97, do seguinte teor:
“O mapa informativo de fls. 87/89 encontra-se elaborado em sintonia com o despacho determinativo da partilha de fls. 80.
Sempre se acrescentará, entretanto, que, não estando a ser partilhada a propriedade plena do imóvel da verba nº 8, mas a propriedade plena de metade do mesmo, é obvio que é sobre esta meação que deve incidir a percentagem de 35% prevista no artº 13º do C.I.M.I.
Notifique.”

Inconformada com este despacho, vem a interessada D...... dele interpor recurso - recebido como agravo e a subir com o primeiro que depois dele houvesse de subir imediatamente (fls. 103)--, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES (fls. 115 verso):
“1 - Nos termos do artº 13º do C.I.MT. o valor da propriedade, separada do direito de habitação vitalício, obtém-se deduzindo ao valor da propriedade plena a percentagem de 3 5%, tendo em conta a idade do cônjuge sobrevivo;

2 - Essa percentagem incide sobre o valor da totalidade da propriedade plena de todo o prédio e não sobre metade;

3 - Ao considerar que essa percentagem incidia sobre a propriedade plena de metade do prédio, o despacho recorrido interpretou e aplicou de forma incorrecta o referido artigo;

Termos em que o recurso deve ser julgado procedente, ordenando-se que o cálculo da percentagem incida sobre a propriedade plena de todo o prédio e, consequentemente, ordenando-se a rectificação do mapa de partilha que deverá ser elaborado de harmonia com a forma à partilha apresentada em conjunto por todos os interessados.”

Contra-alegou a agravada, sustentando a manutenção do despacho agravado.

Foi proferida a sentença homologatória da partilha (fls. 141), tendo da mesma a interessada D....... interposto recurso de apelação (fls. 146), apresentando alegações que termina com as seguintes

CONCLUSÕES (fls. 153):
“1 - E a totalidade do prédio que está a ser partilhado e não a propriedade plena de metade;

2 - E sobre o valor total do prédio que deve incidir a percentagem prevista no artº 13º do CIMT;

3 - Assim não entendendo, o despacho e a ulterior sentença homologatória da partilha fizeram errada interpretação do referido artº 13º;

Termos em que o recurso deve ser julgado procedente revogando-se a sentença e ordenando-se que a mesma homologue um mapa elaborado de harmonia com o defendido nas alegações do recurso de agravo, ou seja, em que a percentagem de 35% incida sobra o valor da totalidade do prédio.”

Contra alegou a apelada, sustentando a manutenção do sentenciado.

Foram colhidos os vistos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a única questão a apreciar (suscitada, quer na apelação, quer no agravo), consiste em saber se, tendo a cabeça de casal requerido, na qualidade de cônjuge sobrevivo, o encabeçamento no direito de habitação da casa de morada de família, nos termos do artº 2103ºA do CC - tendo o imóvel sido adjudicado à filha do inventariado--, o valor de tal direito atribuído ao cônjuge deverá ser calculado sobre o valor da propriedade plena da casa (de todo o prédio) ou apenas sobre a meação do inventariado “no referido imóvel”.

II. 2. FACTOS:

Os supra relatados que aqui nos dispensamos de repetir.

III. O DIREITO:

Antes de mais, cumpre anotar que se começará pela apreciação do agravo, quer porque assim resulta do disposto no artº 710, nº1 do CPC, quer porque com a procedência do agravo prejudicado fica o conhecimento da apelação.

- QUANTO AO RECURSO DE APELAÇÃO:

Vejamos, então, a questão suscitada no agravo, que consiste, como vimos, em saber como determinar o valor do direito de habitação da casa de morada de família-- cujo encabeçamento foi requerido pela cabeça de casal, na qualidade de cônjuge sobrevivo, tendo o imóvel sido adjudicado à filha do inventariado--: se deverá ser calculado sobre o valor da propriedade plena da casa (de toda ela) ou apenas sobre a meação do inventariado “no referido imóvel”.

Como vimos, entendeu o Mmº Juiz a quo que, “não estando a ser partilhada a propriedade plena do imóvel, mas a propriedade plena de metade do mesmo, é óbvio que é sobre esta meação que deve incidir a percentagem de 35% prevista no artº 13º do CIMI”.

Cremos que mal andou o Mmº Juiz-- salvo o devido respeito, naturalmente.
Vejamos.

Como resulta dos autos, a cabeça de casal, cônjuge sobrevivo, requereu - na conferência de interessados [Deve salientar-se que tal direito do cônjuge sobrevivo de ser encabeçado no direito da casa de morada de família, previsto no artº 2103º-A, nº1, do CC tem de ser exercido até à conferência de interessados - tal como, aliás, o direito ao uso do recheio da casa, previsto no artº 2103º-B CC--, sob pena de extinção do direito por renúncia tácita.
É que, no momento das licitações todos os interessados devem saber com o que podem contar, ou seja - no que ora interessa--, devem saber se vão adquirir um bem livre ou onerado, designadamente com o direito de habitação a favor de outro interessado. A essa potencial oneração obviamente que não é alheio o valor que os interessados darão pelo bem, sendo, assim, que essa será uma das questões a submeter e decidir na conferência de interessados, pois é uma daquelas “cuja resolução pode influir na partilha” (neste sentido, ver os Acs. da Rel. do Porto, de 19.02.1991, Bol. M.J. 404º-514 de 21.11.1995, Bol. M.J. 451º-504).
Já Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, II, 3ª ed., a pág. 182) referia que de ente as questões que devem ser deliberadas na conferência de interessados por a sua resolução poder influir na partilha, estava a “atribuição específica de certos bens em função do determinado em lei expressa”. Ora, o encabeçamento nos aludidos direitos consiste numa “atribuição preferencial”, estruturando-se a licitação como uma arrematação (cfr. artº 1371º, nº1 CC e Lopes Cardoso, op. cit., a págs. 292 a 294), não é negligenciável recordar que, na arrematação, os preferentes têm de exercer logo o seu direito, exercício que não podem reservar para momento ulterior (arts. 892º, nº1 e 897º, nº4, do CPC).
Aceitar que o pedido de encabeçamento, designadamente, na casa de morada de família pudesse ser exercido em momento ulterior à conferência de interessados, teríamos aberta a porta à possibilidade de emenda à partilha, por erro susceptível de viciar a vontade do interessado licitante (artº 1386º CPC), punindo-se injustamente a parte colhida de surpresa, sobrecarregada por vicissitude a que não deu causa.
Portanto, cremos que a manifestação de vontade de encabeçamento nos direitos de habitação da casa de morada de família e de uso do recheio tem o seu “dies ad quem” no acto da conferência de interessados, sem que, para tanto, o titular dos direitos tenha de ali comparecer - bastando, portanto, que em simples requerimento o interessado faça saber nos autos da sua intenção de se abrigar na faculdade que a lei lhe confere, a fim de serem determinados os valores dos direitos em questão serem (maxime - se o(s) interessado(s) o desejarem, por avaliação).] -- o seu encabeçamento no direito de habitação da casa de morada de família, constituída pela verba nº 8 da relação de bens, ao que nada opôs a outra interessada D...... .
Seguidamente procedeu-se à licitação, tendo as verbas nºs 2 a 7 sido licitadas pela interessada/cabeça de casal e a verba nº 8 licitada pela interessada D..... .
Não se procedeu, porém, antes das licitações - como cremos que deveria ter acontecido - à avaliação ou determinação do valor do aludido direito à casa de morada de família.
O certo, porém, é que, apesar de ter sido proposta a forma à partilha de fls. 76 - isto é, que o valor do direito de habitação requerido pela viúva fosse calculado sobre o valor da propriedade plena do imóvel--, o certo é que tal sugestão não foi seguida, pois o Sr. Escrivão procedeu à aludida avaliação tendo em conta, para o cálculo da mesma, não a propriedade plena do imóvel, mas a mera meação do inventariado (cfr. fls. 86) - tendo assim feito constar do mapa informativo (cfr. fls. 88).
Na sequência de pedido de esclarecimento feito pela interessada D....... (fls. 94), a aludida posição tomada no mapa informativo foi secundada pelo Mmº Juiz a fls. 97, considerando nada a haver a corrigir a tal mapa.
Vejamos.

Foi com o DL nº 496/77, de 25.11, que se introduziu no CC uma nova secção no capítulo da partilha da herança, a que foi dada a designação de “atribuições preferenciais” (arts. 2103º-A a 2103º-C do CC).
Tal resultou da ideia de assegurar, em caso de necessidade, o encabeçamento do cônjuge sobrevivo, no momento crucial da partilha, em dois poderes que, embora não tendo grande expressão económica, são de capital importância para a continuidade do convívio familiar ou, pelo menos, para manutenção do lar conjugal [Ver A Posição do Cônjuge Sobrevivo no Actual Direito Sucessório Português, de França Pitão, 2ª ed., pág. 46.].
Trata-se de normas inspiradas nas alterações sociológicas tendentes à transformação da chamada família-linhagem na família nuclear ou conjugal (cfr. Nuno Espinhosa Gomes da Silva, “Posição sucessória do cônjuge sobrevivo”, in Reforma do Código Civil, págs. 55 e ss).
Assim, no caso em apreço, na esteira do artº540º do CC italiano, se bem que em solução não inteiramente coincidente, lançou-se mão dos direitos reais de uso e de habitação, o direito de uso do recheio e o direito de habitação da casa de morada de família (v. art. 1484º, nºs 1 e 2, CC).

A questão que, desde já, se pode pôr é se com tal direito se está, ou não, a reforçar quantitativamente a posição sucessória do cônjuge sobrevivo.
A resposta não pode deixar de ser negativa. E tal emerge, desde logo, do facto de o artº 1203º-1, fine, preceituar que, se o seu valor exceder o da sua parte sucessória (na herança do finado), acrescida da meação, se a houver, tem o cônjuge que ficar com tal direito preferencial que dar tornas aos demais herdeiros.
Continuemos.

Aberta a sucessão (com a morte do seu autor- artº 2031º CC), procede-se à partilha - sendo uma das formas o inventário judicial.
Os bens a partilhar são os bens comuns e os que são próprios do falecido.
Ao apresentar a relação de bens, o cabeça de casal indicará o valor que atribui a cada um (artº 1346º, nº1 CC). E é com base nesse valor, com os aumentos eventualmente resultante de licitações, que se determinará a parte que a cada herdeiro tocará.
E para tal determinação do valor dos bens nada tem a ver a meação ou quinhão a que este ou aquele herdeiro tem direito: os bens são considerados nos precisos termos (no seu todo) em que foram deixados pelo de cujus.
Vale isto para dizer que aberta a sucessão temos uma comunhão hereditária em que cada interessado tem direito, não a parte certa e determinada do bem x ou Y, mas a uma quota ideal sobre a totalidade dos bens.
Isto é de capital importância, uma vez que parece patente que no despacho recorrido - quando se refere que se está a partilhar apenas “a propriedade plena de metade” do imóvel - se faz confusão entre compropriedade (aqui, sim, pode-se falar em direito a uma quota parte de bem certo e determinado) e comunhão hereditária.
É obvio que enquanto a herança se encontrar aberta não se pode falar em compropriedade, mas numa comunhão hereditária (no todo indiscriminado ou individualizado) dos bens a partilhar. Assim, numa primeira fase há que ter em conta o valor total do património a partilhar, independentemente da parte que nessa indivisão possa caber a cada um dos herdeiros.
Tratando-se, como se trata, de uma comunhão hereditária cada interessado apenas tem direito a uma quota ideal sobre a totalidade dos bens. Repete-se: o direito ideal do herdeiro não recai sobre qualquer bem individualizado do acervo hereditário mas antes sobre todo esse acervo.
Transportanto estes princípios para o caso sub judice, temos que no caso sub judice o cônjuge sobrevivo só tem direito a uma fracção ideal de 3/4 (2/4 da meação +1/4 enquanto herdeira do marido) de todos os bens que compõem a herança, sem poder arrogar-se no direito específico a qualquer dos bens (em parte ou no seu todo).

Assim sendo, é claro que a entender-se - como fez o Mmº Juiz a quo -- que se estava a partilhar a propriedade plena de apenas metade dos bens, e não a propriedade plena dos mesmos no seu todo, chegaríamos a uma solução lesiva dos interesses dos demais herdeiros para além do cônjuge sobrevivo, pois o património hereditário seria constituído por apenas metade dos bens da….herança!
Como bem salienta a agravante, “A vingar a tese do despacho recorrido, a cabeça de casal recebe tornas pelas «duas metades» mas só desconta o usufruto por «uma metade»...”.
Não pode ser! É que, a ser assim, então também não deveria ser licitada a propriedade plena da casa mas apenas a propriedade plena de… metade: da metade que se ia partilhar!

Com o encabeçamento do direito de habitação da casa de morada de família pelo cônjuge sobrevivo - isto é, por um herdeiro a quem não tocou a propriedade da mesma casa--, constitui-se ex novo um direito de gozo desse cônjuge sobre coisa alheia, como emerge da redacção do nº 3 do mesmo artº 2103º-A.
E sendo alheia a propriedade plena da casa, obviamente que aquele direito de habitação, a ser constituído - sobre todo o bem--, terá um valor a determinar em função do valor da mesma propriedade plena. Sob pena de haver um ilegítimo enriquecimento do cônjuge sobrevivo. É que não pode para efeitos de exigência de tornas teve-se em conta, designadamente na determinação da meação e do quinhão do cônjuge sobrevivo, o valor dos bens da herança, tal como foram relacionados (com os aumentos eventualmente resultantes das licitações) e depois para a determinação do valor de uma atribuição preferencial, como é o caso da casa de morada de família, se não tenha em conta igualmente a propriedade plena do bem, com o mesmo valor que lhe foi atribuído na relação de bens (e aumento das licitações).
Como escreve Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ª ed., a pág. 425, “estas atribuições preferenciais consistem num direito de escolha, na partilha, de certos bens ou direitos, para comporem o quinhão de cônjuge sobrevivo”. Portanto, o seu valor é determinado em função do valor do bem sobre que incide (tal como foi relacionado e partilhado).
Da mesma forma ensina o mesmo professor Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, Coimbra Editora, a págs, 485 ss, que “esta disposição” - refere-se aos arts. 2103º-A a 2103º-C - “não amplia o quinhão do cônjuge. A medida deste foi já dada por disposições anteriores…”.
Ora, se o direito de habitação da casa de morada de família fosse avaliado sobre metade do imóvel em questão, então teríamos por esta via um nítido aumento do quinhão do cônjuge, pois ficaria com tal direito sobre todo o bem e apenas pagaria a aludida atribuição preferencial sobre…metade do bem !!

Portanto, para que as atribuições preferenciais possam ter lugar, é necessário que os bens façam parte da herança, ou seja, que pertençam em propriedade à herança, por serem próprios do de cujus ou bens comuns do casal. É o que emerge das disposições legais citadas, maxime do artº 2103º-B. E, cremos, em propriedade exclusiva (cfr., neste sentido, Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, pág. 245, nota 967).
Efectivamente, caso da herança do inventariado apenas fizesse parte metade indivisa de aludido imóvel onde estava instalada a sua morada de família, na falta de acordo cobre o uso da coisa comum, qualquer dos comproprietários tinha o direito a servir-se dela, nos limites legais, nomeadamente não privando os demais consortes do uso a que igualmente tinham direito. Pelo que atribuir-se, em caso de compropriedade, apenas ao cônjuge sobrevivo o direito de habitação traduz uma oneração dos demais comproprietários (ou seja, de coisa também alheia).
Assim sendo, se é certo que sem o consentimento de todos os partilhantes, o direito de habitação é insusceptível de se limitar a parte da casa de morada de família (cfr. Capelo de Sousa, ob cit., a pág. 244, nota 965), por maioria de razão o seria numa situação de compropriedade.
Isto é, a protecção e favorecimento do cônjuge sobrevivo ao abrigo dos arts. 2103º-A a 2103º-C só se justificam e têm suporte legais sendo feitas à custa do património próprio e exclusivo da herança [Sobre esta matéria, ver o c. desta Relação, de 13.02.1997, Col. Jur., ano XXII, T. I, a pág. 230].

Assim, portanto, se estivéssemos numa situação de compropriedade - esta, sim, pressuposta (embora mal, porém) no despacho do Mmº Juiz--, qualquer dos comproprietários podia servir-se do imóvel, à falta de acordo sobre o seu uso. E havendo esse acordo, então, sim, o direito de habitação já não seria calculado sobre o valor do prédio no seu todo.
Mas, no caso, estamos perante um imóvel que pertence, no seu todo, à herança do cujus. Pelo que, tendo a totalidade do prédio cabido a um interessado que não o cabeça de casal, este, para ser encabeçado no direito de habitação, tem que se sujeitar a que na sua parcela hereditária-- constituída pelo quinhão mais a meação - entre em linha de conta o valor desse direito calculado sobre o valor do prédio no seu todo e não sobre metade do mesmo.

Anote-se que o exercício desse direito ao cônjuge sobrevivo é uma mera faculdade. E por isso só usa dessa atribuição preferencial se quiser. Mas querendo, sujeita-se ao respectivo preço, que é calculado sobre o valor do prédio no seu todo - em correspondência, afinal, com o que lhe é entregue: não apenas metade do prédio, mas todo ele.
Aqui já não está em causa a propriedade do bem. Esta foi adjudicada à outra interessada/ ora agravante. Está-se já noutra fase, ou seja, na atribuição de um direito sobre um imóvel (direito de habitação) a quem já nada tem a ver com a sua propriedade, por lhe não ter ficado a pertencer (em qualquer proporção). Agora, já não se “não atribui ao cônjuge a propriedade de tais bens mas tão-só direitos reais de habitação e uso, ou sejam, relativos à «faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família” (Capelo de Sousa, ob. cit., II, 240/241).

Assim, temos que os direitos de habitação e de uso emergentes das atribuições preferenciais em causa “têm um valor próprio que é deduzido, nomeadamente, no valor da meação e da quota legitimaria do cônjuge sobrevivo” (Capelo de Sousa, cit., pág. 241). O valor dessas meação + quota do cônjuge sobrevivo é previamente determinado, independentemente da determinação do valor do direito de habitação do imóvel. Só depois de saber aquele valor se vai deduzir este último naquele, a fim de se saber se há, ou não, tornas a dar - ou receber pelo cônjuge sobrevivo. Pelo que tal valor do direito de habitação da casa de família é calculado - nos moldes legais, que mais à frente mostraremos - sobre o valor do bem da herança a que respeita, agora sem qualquer relevância da questão da meação ou quinhão de quem quer que seja.

É claro que se a casa de morada de família ou o recheio forem bens próprios do cônjuge sobrevivo ou vierem a caber na partilha a este, não há lugar a atribuições preferenciais [Capelo de Sousa, ob. e loc. cits., a pág. 242, nota 962]. Mas não sendo o caso, então mais não há a fazer do que determinar a parte que no valor do bem (no seu todo) tem esse direito para que o valor assim conseguido seja deduzido ao cônjuge sobrevivo.

Também Espinhosa Gomes da Silva (ob. cit., a pág. 68) refere que os direitos referidos no artº 2103º-A CC não acrescem à posição sucessória do cônjuge. Trata-se apenas de direitos que o cônjuge, em partilha, tem direito a encabeçar, mediante o pagamento de tornas, se o seu valor ultrapassar o seu quinhão e a eventual meação.

Portanto, o direito de habitação tem um valor próprio, que vai “integrar a eventual meação ou quinhão hereditário do cônjuge sobrevivo,…” (Capelo de Sousa, ob cit., a pág. 243) - sublinhado nosso.
Mas vai “integrar”, obviamente, pelo valor que tiver, calculado sobre o valor do bem em pleno, ainda, portanto, sem estar despido de tal direito [Sobre este tema, ver, ainda, Nuno Salter Cid, “A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português”, Coimbra, 1996]

Para determinação do valor pecuniário do direito de habitação em causa, parece-nos que, à falta de outros critérios legais específicos [Antes da nova redacção do CPC vigorava uma norma específica para este efeito, qual seja, o artº 603º, al. e) do CPC (ver, a este propósito, Capelo de Sousa, ob. cit., vol II, a pág. 243, nota 963) -- e não havendo consentimento de todos os partilhantes, pois, havendo-o, prevalecerá-- se deve recorrer às regras previstas no CIMT (Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões onerosas de Imóveis, aprovado pelo DL nº 287/2003, de 12.11), aplicando-se as percentagens que vêm previstas no artº 13º deste diploma.

Assim, segundo este normativo,
“…………a) O valor da propriedade, separada do …uso ou habitação vitalícios, obtém-se deduzindo ao valor da propriedade plena” - também por aqui se vê que se deve atender à propriedade”plena” e não a qualquer quinhão ou meação! - “as seguintes percentagens, de harmonia com a idade da pessoa de cuja vida dependa a duração daqueles direitos,…”:
..........................
Menos de 65 anos……………35%”.

Portanto, atenta a idade do cônjuge sobrevivo (cfr. doc. De fls. 79), o direito de habitação deveria ser valorado em 35% do valor da propriedade plena do todo da verba nº 8. E não - como se fez no processo (cfr. fls. 86) - em 35% sobre metade dessa propriedade plena.

É esta, aliás, ao que sabemos, a prática notarial: parte do princípio de que se está a partilhar a totalidade do bem e de que é sobre a propriedade plena do todo que incide a supra aludida percentagem.

Face ao explanado, procedem as conclusões da agravante.

Atento o desfecho a dar ao agravo, obviamente que prejudicada fica a apreciação da apelação.

CONCLUINDO:
O direito de habitação da casa de morada de família previsto no artº 2103º-A do Cód. Civil, adquirido por um herdeiro a quem não tocou a propriedade da casa, constitui-se ex novo sobre coisa alheia, como emerge da redacção do nº 3 do mesmo artº 2103º-A.
Com tal direito não se pode estar a reforçar quantitativamente a posição sucessória do cônjuge sobrevivo, ou seja, não se pode com aquela disposição (artº 2103º-A) ampliar o quinhão do cônjuge.
Assim, se para cálculo do valor de direito de habitação da casa de morada da família, previsto no artº 2103º-A, do Cód. Civil-- à falta de outros critérios legais específicos, e não havendo consentimento de todos os partilhantes, pois, havendo-o, prevalecerá--, há que fazer uso das percentagens previstas no artº 13º do C.I.M.T.,
tais percentagens devem incidir sobre o valor da propriedade plena de todo o prédio e não (apenas) sobre uma (pretensa) “meação” do inventariado nesse bem.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em:
a)- Conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que ordene que o valor do direito de habitação da verba nº 8 seja calculado fazendo incidir a percentagem (de 35%) prevista no artº 13º do C.I.M.T. sobre a propriedade plena de todo o prédio e, consequente, ordene a rectificação do mapa de partilha que deverá ser elaborado de harmonia com a forma à partilha apresentada em conjunto por todos os interessados (cfr. fls. 76);
b)- Não tomar conhecimento da apelação, por prejudicado.

Custas pela recorrida, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido (fls. 85).

Porto, 12 de Janeiro de 2006
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves