Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0745380
Nº Convencional: JTRP00041149
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: CONTUMÁCIA
Nº do Documento: RP200803120745380
Data do Acordão: 03/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 305 - FLS 29.
Área Temática: .
Sumário: I - A suspensão do processo por efeito da declaração da contumácia não é obstáculo à apreciação de questão prévia susceptível de obstar ao conhecimento do mérito da causa.
II - No caso de arguido declarado contumaz que se encontra no Brasil, a prestação de termo de identidade e residência através de carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias daquele país não teria a virtualidade de fazer cessar a situação de contumácia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª)
DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I

1. No processo n.º …../92.8JAPRT, da . .ª vara criminal do Porto, foi o arguido B………., por despacho de 22/09/1997, declarado contumaz, por não ter sido possível notificá-lo para julgamento.
2. O arguido veio ao processo requerer que fosse ordenada a sua apresentação no Consulado de Portugal, no ………. – Brasil, onde reside, para aí prestar o termo de identidade e residência (TIR), o que lhe foi indeferido.
3. Posteriormente, em 12/06/2007, requereu que fosse emitida carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias competentes de justiça do Brasil, a fim de aí prestar o TIR.
4. Também essa pretensão foi indeferida, por despacho de 20/06/2007, por a «pretensão do requerente não integrar a noção de actos urgentes, constante dos artigos 335.º, n.º 3, e 320.º, do Código de Processo Penal[1], tanto mais que a pretensão do requerente não tem a virtualidade de fazer cessar a situação de contumácia em que o mesmo se encontra».
5. Desse despacho interpôs o arguido recurso, no qual formulou as seguintes conclusões:
«1.º Em 22/09/1997 o arguido foi declarado contumaz (fls.227).
«2.º A sua primeira intervenção processual ocorreu em Março de 2007 (fls. 346 e 347), com a junção de procuração forense e constituição de defensor.
«3.º Foi o próprio arguido que informou os autos do seu actual paradeiro e residência.
«4.º O arguido não tem qualquer documento válido, nem de identificação portuguesa, nem de viagem, pelo que não pode sair do país onde reside (Brasil), nem pode apresentar-se em juízo em território nacional.
«5.º O arguido está contumaz à ordem de outros dois processos: No Proc. n.º …./94.1TBSTS do ..º juízo criminal de Santo Tirso, decidiu-se o envio de solicitação ao Consulado para que o arguido aí prestasse o TIR, enquanto que no Proc. n.º …./92.5TBPRT do ..º juízo, ..ª secção do Tribunal Criminal do Porto, decidiu-se a emissão de carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias competentes da justiça do Brasil.
«6.º A junção de procuração pelo arguido, com indicação oficial do seu paradeiro, a indicação de um endereço em Portugal para onde deverão ser dirigidas as posteriores notificações e a prestação de TIR, é suficiente para cessar a contumácia.
«7.º Durante a situação de contumácia do arguido, além dos actos urgentes, devem-se também praticar os actos tendentes à caducidade da declaração de contumácia.
«8.º A carta rogatória, embora não seja um acto urgente em si mesmo, deverá ser ordenada, porque a sua execução é um acto processual tendente a pôr termo a tal situação de contumácia e o processo retome a sua normal sequência.
«9.º A declaração de contumácia visa forçar o arguido a colocar-se à disposição do tribunal, pelo que, sendo o próprio arguido a querer colocar-se à disposição do tribunal, não poderá ser impedido de o fazer por tal instituto.
«10.º De contrário, protelar-se-ia injustificadamente o direito do arguido consagrado no artigo 32.º, n.º 2, in fine da CRP de ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
«11.º O despacho recorrido violou, entre outros, o artigo 14.º, 32.º, n.º 2, in fine, e artigo 20.º, n.º 4 e n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 335.º, 336.º e 337.º do CPP.»
Terminou pedindo que, no provimento do recurso, seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que declare cessada a declaração de contumácia ou que ordene a emissão de carta rogatória às autoridades judiciais brasileiras, para aí prestar TIR, por carecer de documentos pessoais válidos, para viajar para Portugal.
6. Admitido o recurso, e na sequência da notificação da sua admissão, foi apresentada resposta pelo Ministério Público, na qual suscitou a questão da não admissibilidade do recurso e, sobre o mérito do mesmo, pronunciou- se no sentido de lhe ser negado provimento.
7. Nesta instância, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º do CPP, o Exm.º Procurador-geral-adjunto expressou a sua concordância com a resposta do Ministério Público em 1.ª instância.
8. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido veio responder sustentando que o recurso interposto deve ser aceite e julgado em todos os seus termos.
9. Como dos elementos com que o recurso foi instruído resultava que também havia sido interposto recurso do despacho supra referido em 2. (o qual precedeu o despacho de que foi interposto o presente recurso), cuja decisão poderia vir a prejudicar (tornar inútil) a decisão deste, entendeu a relatora aguardar a decisão desse recurso - que se veio a averiguar ser o recurso n.º 5416/07-4.ª -, sendo os autos instruídos com cópia do acórdão, de 23/01/2008, pelo qual a decisão recorrida foi mantida.
10. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II

Cumpre decidir.
1. Dispõe o n.º 3 do artigo 335.º do CPP que «a declaração de contumácia ... implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º».
A suspensão dos termos ulteriores do processo, por efeito da declaração de contumácia, significa isso mesmo; que o processo não pode prosseguir para a fase de julgamento à «revelia» do arguido (impede a marcha normal do processo) mas não implica que o juiz esteja impedido de ter intervenção no processo para, oficiosamente ou a requerimento, apreciar questões que possa desde logo decidir e que obstem ao conhecimento do mérito da causa, tornando, portanto, absolutamente inútil a manutenção de um processo suspenso e a subsistência de uma declaração de contumácia, com graves efeitos na esfera pessoal e jurídica do contumaz[2].
Surgindo, num processo que segue a sua normal tramitação ou num processo que tem a sua normal tramitação suspensa, por efeito da declaração de contumácia, uma questão prévia susceptível de obstar ao conhecimento do mérito da causa, acerca da qual não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo ser apreciada, deve ela ser imediatamente conhecida e decidida.
Como questões supervenientes que devem ser imediatamente apreciadas podem apontar-se, a título meramente exemplificativo, as causas de extinção da responsabilidade criminal – morte do agente, amnistia da infracção ou descriminalização dos factos.
Mas a suspensão dos termos ulteriores do processo também não implica que não deva diligenciar-se pela localização do arguido contumaz e pela realização de todos os actos susceptíveis de porem termo à situação de contumácia e, portanto, de permitirem a realização dos termos ulteriores do processo.
O recorrente veio ao processo requerer a prática de um acto o qual, na sua perspectiva, seria adequado a determinar a caducidade da declaração de contumácia.
A leitura que se deve fazer do artigo 335.º, n.º 3, do CPP não só não o impedia de apresentar o requerimento, como não é por causa do estado do processo que a sua pretensão deve ser indeferida.
E, por ser assim, também a suspensão dos termos ulteriores do processo não constitui causa impeditiva do conhecimento do recurso interposto do despacho que indeferiu a sua pretensão[3].
2. A declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido, sendo, logo que se apresente ou for detido, sujeito a termo de identidade e residência (artigo 336.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).
O que o recorrente, afinal, pretende é a sua sujeição à medida de coacção, sem, previamente, se apresentar.
Isto é, obter a caducidade da declaração de contumácia sem se apresentar.
Com efeito, a apresentação do arguido a que se refere o n.º 1 do artigo 336.º do CPP, até porque tem efeitos equivalentes aos da detenção, pressupõe uma actuação do arguido de colocação à disposição do processo, de forma a que se mostre assegurada a possibilidade da sua ulterior tramitação.
Ora, vir ao processo constituir mandatário e informar a residência no Brasil, requerendo que seja emitida carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias competentes de justiça do Brasil, a fim de aí prestar TIR, não constitui apresentação válida, nos termos do artigo 336.º, n.º 1, do CPP. É uma mera informação sobre o seu actual paradeiro.
Por isso, a prestação de TIR, nas circunstâncias dadas, não teria a virtualidade de fazer cessar a declaração de contumácia, como se reconheceu no despacho recorrido.
3. Mas, ainda que assim não fosse, o Tratado de Auxílio Mútuo em Matéria Penal entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da República Federativa do Brasil, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/94, de 3 de Fevereiro, não comporta o acto pretendido pelo recorrente, dada a fase processual em que o processo se encontra (fase de julgamento).
Na verdade, do objecto e âmbito do auxílio, segundo as disposições do Tratado, estão excluídos os actos processuais posteriores à decisão judicial de recebimento da acusação ou de pronúncia do arguido (artigo 1.º, n.º 3).
4. Não se pretenda que o entendimento que temos vindo a expor conduz ao resultado indesejável e absurdo de «condenar» o recorrente a viver indocumentado, no estrangeiro, na situação de contumaz.
Ainda que se aceite que o recorrente não tem documentos válidos que lhe permitam viajar para Portugal e, aqui, apresentar-se, isso não significa a inevitável perduração da situação de contumácia.
Não temos por comprovado que a falta de documentos de identificação válidos impossibilite o Consulado de emitir ao recorrente documentos de viagem, nos termos do artigo 40.º, n.º 1, alínea g), e 48.º, do Decreto-Lei n.º 381/97[4], de 30 de Dezembro, que aprovou o Regulamento Consular - uma vez que os documentos de viagem não se incluem naqueles que ficou impedido de obter ou renovar por força da declaração de contumácia - que permitam ao recorrente viajar para Portugal e, aqui, apresentar-se, conforme é requerido pelo artigo 336.º, n.º 1, do CPP.
5. Neste entendimento, e pelas razões expostas, a pretensão do recorrente não pode ser deferida, sem que esta solução ofenda as normas processuais penais indicadas pelo recorrente.
Pretende, ainda, o recorrente que o despacho recorrido viola os artigo 14.º, 32.º, n.º 2, in fine, 20.º, n.ºs 4 e 5, da Constituição da República.
Neste ponto, não nos afastaremos do que, a propósito, consta do acórdão de 23/01/2008, no referido recurso n.º 5416/07-4.ª, para o qual, nesta parte, remetemos.
O recorrente é que, ausentando-se para o estrangeiro, impossibilitou a sua notificação para julgamento, criando a situação que levou a que fosse declarado contumaz. E, bem vistas as coisas, só porque se viu impossibilitado de obter documentos é que, 10 anos depois, deu «sinal de vida».
Neste contexto, a invocada violação das normas constitucionais referidas carece de sentido e de fundamento sério.
Quanto ao artigo 14.º, é de dizer que o recorrente não foi, nem é, nem pode ser, juridicamente beneficiado ou prejudicado pelo facto de se ter ausentado para o estrangeiro. Tem, e deve ter, no plano do instituto da contumácia, o mesmo tratamento dos portugueses residentes em Portugal.
Quanto ao artigo 20.º, n.ºs 4 e 5, é de referir que a frustração do direito a ser julgado em prazo razoável e a procedimentos céleres é da inteira responsabilidade do recorrente.
Quanto ao artigo 32.º, n.º 2, só se pode reafirmar que foi o recorrente quem, por acção sua, não permitiu a realização do julgamento no mais curto prazo.
III

Termos em que, com os fundamentos expostos, mantemos a decisão recorrida, negando provimento ao recurso.
Por ter decaído, condenamos o recorrente nas custas, com 8 UC de taxa de justiça.

Porto, 12 de Março de 2008
Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
José João Teixeira Coelho Vieira

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[1] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP.
[2] Como temos sustentado, cfr., v.g., acórdão de 31/10/2007, no recurso n.º 3684/07-4.ª, da mesma relatora e com os mesmos Exm.ºs Adjuntos.
[3] Neste sentido, cfr. o acórdão referido no ponto 9.
[4] Alterado pela Lei n.º 22/98, de 12 de Maio, e pelo Decreto-Lei n.º 162/2006, de 8 de Agosto.