Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2027/08.5TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00042829
Relator: JOSÉ FERRAZ
Descritores: PRODUTO DEFEITUOSO
PRAZO DE GARANTIA
Nº do Documento: RP200907092027/08.5TJPRT.P1
Data do Acordão: 07/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO - LIVRO 805 - FLS. 199.
Área Temática: .
Sumário: Na compra e venda abrangida pelo DL nº 67/2003, de 08.04 (na sua versão primitiva), com a reparação da avaria ocorrida no bem vendido não se renova o prazo de garantia inicial
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 2027.08.5TJPRT - APELAÇÃO
José Ferraz (482)
Exmos Adjuntos
Des. Amaral Ferreira
Des. Ana Paula Lobo

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I) – B………….., com domicílio na avenida ………., …., ….., ……, Vila Nova de Gaia, instaurou acção declarativa de condenação contra C…………….., S.A., com sede na Rua ………, ……, Porto, alegando, em síntese, que, em Setembro de 2004, comprou uma viatura à ré, em estado de nova, e, em Janeiro de 2006, a caixa de velocidades automática, com que o veículo vinha equipado, avariou.
Tendo a avaria ocorrido dentro do período de garantia de dois anos, a ré substituiu a caixa de velocidades por uma nova, sem custos para a autora.
Em 30/11/2007, e após o veículo ter percorrido noventa mil quilómetros. Antes de decorridos dois anos desde a substituição da caixa de velocidades, esta avariou novamente.
A ré não assumiu a reparação e substituição da caixa, prontificando-se apenas a fazer um abatimento do custo da reparação, pelo que teria a autora de suportar o valor de € 2.260,31.
Posição que a autora não aceitou, tendo procedido à reparação numa outra concessionária “FORD”, no que despendeu a quantia de € 5.083,97, valor que tem direito a reaver da ré.
A autora beneficia de um (novo) prazo de garantia de dois anos, relativamente à caixa de velocidades substituída.
Viu-se privada de usar o seu veículo, que utiliza diariamente para fins profissionais, familiares e de lazer, de 30/Novembro/2007 até 27/05/2008, data em que a viatura voltou a circular.
A conduta da ré causou-lhe desgosto, ansiedade, incómodos.

Termina a pedir a condenação da ré a pagar-lhe as quantias de:
- € 5.083,97, correspondentes à despesa para reparação da viatura;
- € 2.136,00, de indemnização pela privação do uso do veículo e
- € 1.500,00, de indemnização pelos desgostos, incómodos e mal-estar sofridos.

A ré contestou a acção, alegando, em síntese, que a avaria alegada pela autora ocorreu depois de esgotado o prazo de garantia, em Setembro de 2006.
Pede a improcedência da acção.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, e decidida a matéria de facto provada e não provada, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré C…………., S.A., a pagar à autora, B………….., a quantia de € 7.719,97, acrescida de juros moratórios à taxa, em cada momento em vigor, a partir da data da citação e até ao efectivo pagamento.

II) - Inconformada com a sentença dela recorre a RÉ.
Alegando doutamente, conclui:
……………..
……………..
……………..
……………..
Em resposta, a apelada defende a confirmação da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

III) - Na sentença recorrida vem julgada provada a seguinte factualidade:
1. A Autora, em 22 de Setembro de 2004, comprou à Ré a viatura “Ford”, modelo C-Max, de matrícula ..-..-XZ, pelo preço de € 27.250,00, em estado de nova.
2. A Ré é concessionária oficial, no Porto, da Ford Lusitana, sendo que esta é a importadora e representante em Portugal dos veículos da marca Ford.
3. Negócio a determinar pela Ré vendedora a prestação de garantia de bom funcionamento do veículo – de peças, acessórios e demais componentes – de 2 anos a contar da data da compra.
4. Viatura que a Autora passou a utilizar na sua vida profissional, familiar e em lazer, sempre com os cuidados necessários em termos de utilização, condução e manutenção.
5. As revisões periódicas impostas pelo fabricante foram sempre realizadas sob a responsabilidade directa dos serviços mecânicos da Ré e nas suas instalações nesta cidade.
6. Em Janeiro de 2006, apenas 16 meses depois da compra, foi detectada grave avaria na caixa de velocidades automática que equipava o veículo de fábrica, a determinar a sua imediata imobilização.
7. Avaria logo denunciada à Ré, pelo que o “Ford” foi transportado para as suas instalações oficinais, no Porto.
8. Tendo a Ré, em consequência e a fim de evitar custos e prejuízos adicionais e outros contratempos, alugado um veículo à “D………..” para utilização diária da Autora.
9. Certa da gravidade da avaria e conhecedora da elevada ocorrência de idênticos defeitos nas caixas de velocidades automáticas que equipam os veículos do mesmo modelo.
10. Tendo presente que a avaria da caixa de velocidades se encontrava coberta pela garantia de bom funcionamento prestada.
11. A Ré assumiu na íntegra a substituição e montagem da caixa de velocidades automática por uma nova.
12. Operação realizada no período de 10/01/2006 a 24/02/2006, data em que o “Ford” foi entregue à Autora devidamente reparado e em normais condições de operacionalidade e funcionamento, nada pagando à Ré de tal proveniência
13. O “Ford” da Autora após ter percorrido cerca de 90.000 Kms, e em período inferior a 2 anos contados desde a substituição pela Ré da primitiva caixa de velocidades, mais precisamente em Novembro de 2007 voltou a ficar imobilizado.
14. Novamente com avaria grosseira na caixa de velocidades a impedir a sincronização automática das respectivas velocidades de marcha.
15. Ocorrência que determinou a imediata denúncia à Ré, com o consequente remoção do veículo para as suas instalações, o que aconteceu em 30/11/2007.
16. A Ré em 18/12/2007 apresentou à Autora (na pessoa do seu marido) estimativa de reparação de veículo pelo preço global de € 3.592,83, sem IVA, valor este a integrar o custo da caixa de velocidades automática nova, 8,9 litros de óleo da caixa e o serviço de mecânica correspondente a 5,30 horas.
17. Sendo que, a Ré em tal documento declarava que comparticiparia a reparação da viatura, ficando a Autora a suportar o valor final de € 2.260,31 (IVA incluído).
18. A Autora perante tal posição, decidiu manifestar à Ré a sua discordância quanto à proposta de comparticipação da reparação do seu “Ford”, o que lhe transmitiu por carta de 20/1/2008.
19. Cuja cópia da carta remeteu à Ford Lusitana, a qual mereceu resposta desta em 30/1/2008 e aí patenteando ser já conhecedora da proposta de comparticipação apresentada pela sua concessionária, a Ré, mas nada adiantando no que à resolução da questão respeitava.
20. Posição que a Ré igualmente sustentou, já que na carta-resposta que enviou à Autora, datada de 31/01/2008, para além das evasivas que da mesma constam, não se responsabilizava pela avaria na totalidade, mas sim mantinha a sua disposição de a comparticipar numa pequena percentagem.
21. A autora, por carta de 7/2/2008, decidiu declarar a sua não aceitação do proposto e que iria ordenar a reparação do veículo, uma vez que a sua imobilização causava-lhe prejuízos e contratempos que não tinha de suportar, tanto mais que não lhe fora emprestado, por cortesia, qualquer viatura de substituição.
22. Que uma vez concluída a reparação despoletaria os meios necessários visando o ressarcimento dos seus prejuízos.
23. Não obstante o decidido pela Autora, a Ré entendeu retirar a proposta por si apresentada de comparticipação da reparação de substituição da caixa de velocidades, o que deu a conhecer por carta de 14/2/2008.
24. Com tal decisão da Ré, a Autora decidiu reiterar a sua posição em carta que lhe dirigiu de 20/02/2008 e declarar que iria levar a sua indignação ao conhecimento da Ford Lusitana, o que fez por carta de 22/02/2008.
25. Dado que desta não obteve qualquer resposta, por carta de 13/3/2008 a Autora, numa última tentativa de resolução da questão amigavelmente, decidiu conceder prazo de 5 dias para o fim em vista.
26. Pelo que recebeu da Ford Lusitana carta de 26/3/2008 a considerar-se irresponsável pelo sucedido e a informar que iria encerrar o processo.
27. A Autora retirou a viatura das oficinas da Ré e confiou a sua reparação a outra concessionária da “Ford”, no caso a sociedade “E……………., SA”, com instalações oficinais também no Porto.
28. Operação de substituição da caixa de velocidades automática avariada por uma nova que importou em € 5.083,97, montante que a Autora pagou do seu bolso.
29. A Autora ao ver-se privada do normal uso do seu “Ford” desde 30/11/2007 até 27/05/2008, data em que voltou a circular com a viatura, sofreu prejuízos de toda a ordem tendo presente que a utiliza diariamente para fins profissionais, familiares e de lazer.
30. Com os transtornos inerentes foi forçada a alterar a sua vida, recorrendo não só aos transportes públicos, como ao apoio de familiares e amigos para fazer face às suas deslocações.
31. Tendo a viatura 4 anos, já percorreu mais de 150.000Kms, o que demonstra a utilização permanente que a Autora faz do seu “Ford”.
32. A Autora percorre por mês, em média, cerca de 4.000 Kms.
33. Isto por a Autora se deslocar com frequência de Miramar, onde reside, quer à Régua, quer a Sta. Marta de Penaguião, onde gere, conjuntamente com o seu marido, exploração agrícola familiar (F………….., L.da.).
34. A Autora é quem normalmente conduz os seus 3 filhos ao estabelecimento de ensino, em Arcozelo.
35. A Autora viu-se confrontada com um comportamento inadequado da Ré que lhe causou desgosto, incómodos e mal-estar.
36. Os técnicos da Ré concluíram que era necessário substituir a caixa.

IV) – Pela apelante são suscitadas as questões, a resolver:
- se a avaria de 30/11/07 ocorreu depois de decorrido o período de garantia,
- caducidade do direito de denúncia,
- indevida indemnização por incumprimento,
- indemnização pela privação de uso,
- indemnização por danos não patrimoniais e
- juros de mora.

V) - Em 22 de Setembro de 2004, a apelada comprou à apelante um veículo automóvel (marca Ford, modelo C-Max), em estado de novo, com caixa de velocidades automática.
Beneficiava, e quanto a tal aspecto não há desacordo, de uma garantia de bom funcionamento do veículo – de peças, acessórios e demais componentes – de 2 anos a contar da data da compra.
Em Janeiro de 2006, a caixa de velocidades teve avaria.
A apelante “assumiu na íntegra a substituição e montagem da caixa de velocidades automática por uma nova”, a que procedeu “no período de 10/01/2006 a 24/02/2006, data em que o ‘Ford’ foi entregue à A. devidamente reparado e em normais condições de operacionalidade e funcionamento, nada pagando à ré de tal proveniência” – como a autora afirma – isto é, nada pagou a autora à ré por essa reparação/substituição.

Sucede que em 30 de Novembro de 2007, o caixa (nova/substituta) de velocidades voltou a avariar, implicando a avaria a necessidade da sua substituição.
A autora exigiu da ré a reparação, sem quaisquer despesas para si, alegando que, tendo a substituição da caixa de velocidades sido efectuada em Fevereiro de 2006, em Novembro de 2007, “ainda estava a coberto do período de garantia (2 anos) de órgãos/componentes/peças novas”.

Entende a autora que a garantia “reiniciou-se” com a substituição dessa peça do veículo, e no momento da entrega do veículo reparado.
Por sua vez, entende a apelante que a garantia (legal), em Novembro de 2007, já havia caducado, por decorrido o período por que fora prestada – desde 22 de Setembro de 2006.

Independentemente da relevância (ou não) da distinção entre reparação e substituição da coisa (artigo 4º/1[1] do DL 67/2003 – versão inicial) para efeitos de resolução do diferendo, como bem se refere na decisão recorrida, em Fevereiro de 2006, a ré/apelante apenas procedeu à reparação da viatura e não à sua substituição. A reparação, ainda que com necessidade de substituição duma peça (mesmo que essencial ao funcionamento do veículo) não implica a substituição do bem vendido, que foi uma viatura (adequada a determinada afectação) e não uma caixa de velocidades (que, para a autora, não teria préstimo algum). Mas não deixa de ser incorporada no veículo uma peça nova.

Pese embora o que consta da mesma sentença - que “em rigor, a Autora não exerce por via desta acção qualquer dos direitos elencados no diploma por si invocado - reparação ou substituição da coisa, à redução do preço a pagar ou resolução do contrato. A Autora pretende, antes, ser indemnizada dos danos alegadamente por si sofridos – v.g., pagamento do preço da reparação feita por terceiro –, fruto de um alegado incumprimento definitivo por parte da Ré da sua obrigação de respeitar um dos descritos direitos: a reparação da viatura” – releva à solução saber se, quando ocorre a segunda avaria na caixa de velocidades (30/Novembro/2007), o veículo estava a coberto da garantia de bom funcionamento do veículo.
É que o reconhecimento do direito a indemnização invocado pela autora assentou na reflexão – “aqui chegados, podemos concluir que, afinal, irrelevante se torna apurar se estamos perante um caso de reparação ou perante um caso de substituição, já que, ainda que se considere que estamos perante um caso de reparação, o defeito agora denunciado é o mesmo que já foi objecto de uma tentativa frustrada de reparação. Em qualquer caso, a Autora goza do prazo de dois anos para denúncia do mesmo, contados da data da entrega da coisa depois de supostamente reparada”.

Estabelecia o citado DL 67º/2003 (na redacção em vigor na data da compra do veículo pela apelada):
- “O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda” – artigo 2º/1.
-“As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade” – artigo 3º/2
- “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato” – artigo 4º/1.
- “O comprador pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel” – artigo 5º/1.
- “O decurso dos prazos suspende-se durante o período de tempo em que o consumidor se achar privado do uso dos bens em virtude das operações de reparação da coisa” – artigo 5º/5.

A coisa vendida é defeituosa se sofre de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tem as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destinam (artigo 913º/1 do CC), o que, de modo mais amplo, se prevê no artigo 2º/2 do mencionado DL. Como escreve Pedro Romano Martinez[2] “a coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado”.
Claro é que se um veículo é portador de uma caixa de velocidades que não funciona, padece de vício que, antes de mais, impede a realização do fim a que se destina - circular. De acordo com aquelas normas, o bem (veículo automóvel) é defeituoso, não está “conforme com o contrato de compra e venda”, que implica a entrega de um bem isento de defeito.

Estando o vendedor obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e sendo a coisa fungível, mostrando-se aquela (reparação) impossível (arts. 921º/1 do CC 4º/1 e 5 do referido DL). O vendedor garante a boa qualidade da coisa vendida (durante o período abrangido), “assegura por um certo período um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento por causa inerente à coisa e dentro do seu uso normal”[3]. Nesse período o comprador apenas tem o ónus da denúncia da anomalia (para o vendedor poder repará-la, ou substituir o bem, se necessário, sem necessidade de alegar e provar a concreta avaria ou defeito. Consagra-se como que uma “responsabilidade especial de natureza objectiva que tem por base a assunção pelo vendedor do risco relativo a defeitos de funcionamento da coisa”[4].
O vendedor, pela garantia de bom funcionamento, assegura um resultado – o bom funcionamento durante determinado período – e, portanto, assume a obrigação de reparação de qualquer avaria que surja ou, se necessário, a substituição da coisa, mesmo que não haja culpa da sua parte, só podendo desobrigar-se provando que a anomalia, a avaria ou a causa do mau funcionamento, é posterior à data da entrega do bem e foi provocada por conduta culposa do comprador. Surgindo avaria no período de garantia, o comprador tem direito à reparação ou substituição da coisa, direito que acresce aos previstos nos arts. 913º e seguintes do CC.

Nos negócios jurídicos relativos a bens de consumo (como é o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a ré nestes autos – arts. 2º/1 da Lei nº 24/96, de 31/7 – pois trata-se de contrato celebrado entre um consumidor final, um particular não profissional e um profissional que actua no quadro da sua actividade comercial, a ré), a citada Lei reforça a tutela dos direitos do consumidor em termos mais amplos que os previstos no Código Civil, conferindo-lhe o direito à qualidade dos bens e serviços destinados ao consumo (direito à qualidade dos bens e serviços consumidos que tem assento constitucional – artigo 60º/1 da Lei Fundamental). É o que resulta do artigo 4º/1 desse diploma, quando dispõe “os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”[5], o que não pode ser contrariado por quaisquer cláusulas do contrato (artigo 16º/1). Havendo alguma desconformidade do bem fornecido com o acordado (artigo 2º/2 do DL 67/2003), há responsabilidade do vendedor, pois que este responde por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem é entregue ao comprador (artigo 3º/1 desse DL), deve entregar coisa isenta de vícios, de bens que estejam em desconformidade quer com o contratualmente estabelecido quer com o que, legitimamente, for esperado pelo comprador, devendo a coisa entregue ser idónea para satisfazer os fins e produzir os efeitos a que se destina, segundo as normas legalmente estabelecidas e as expectativas legítimas do consumidor. A tutela da confiança do consumidor na idoneidade dos bens adquiridos, que têm as qualidades asseguradas ou legitimamente esperadas, justifica a garantia contra defeitos da cosia, reportada à data da sua entrega.

Em caso de falta de conformidade do bem entregue com o contrato, o consumidor tem direito a que seja reposta a conformidade preterida, por meio de reparação ou de substituição do bem, pela redução do preço, podendo, ainda, resolver o contrato (artigo 4º/1 do DL 67/2003), além do direito a indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais (artigo 12º/2 de Lei 24/96), que o comprador pode sempre exercer isoladamente ou em conjunto com os outros direitos previstos naquele artigo 4º/1.
Mas, se o vendedor responde pela desconformidade do bem, mesmo sem culpa, desta não prescinde a obrigação de indemnizar, nos termos desse artigo 12º/1, ainda que, como se está no âmbito da responsabilidade contratual, a culpa se presuma (artigo 799º/1 do CC).

A autora pretendeu exercer, perante a ré, o “direito” à reparação da viatura, pela avaria verificada na caixa de velocidade, exigindo-a da (ora) apelada. No âmbito da norma (segundo se extrai da petição), apenas pretendeu exercer esse direito, reparação essa que se revelava possível (e a própria ré se dispôs a efectuá-la – com encargos/pagamento pela autora - e como veio a ser efectivamente executada por outro “concessionário”).
E, independentemente do entendimento que se adopte quanto à admissibilidade do exercício alternativo dos direitos consignados no artigo 4º/1 – em livre opção do comprador[6] – ou do seu exercício escalonado “em sequência lógica” (reparação/ substituição, redução do preço/resolução), é linear que, em caso de avaria, detectada dentro do prazo de garantia, a autora, beneficiava do direito à reparação da viatura (ou, se se preferir, à substituição da caixa de velocidades).

Embora os prazos previstos no artigo 5º/1 desse DL não constituam prazos de garantia do bom funcionamento do bem durante esse período, pois o vendedor só responde por vícios existentes no momento da entrega[7], acabam por ter efeitos semelhantes uma vez que qualquer desconformidade verificada nesses prazos se presume existente na data da entrega do bem.
Para exercer quaisquer dos direitos previstos no artigo 4º/1, deve o comprador denunciar a avaria ou a desconformidade e nos prazos (dois meses, tratando-se de coisa móvel corpórea não consumível) previstos no artigo 5º/3, sob pena de caducidade do direito, nomeadamente do direito à reparação da coisa defeituosa. Na situação concreta, não se coloca em causa que a denúncia dos “vícios” foi efectuada (a autora comunicou imediatamente as anomalias e exigiu a reparação) tempestivamente e a sua reparação exigida.

O bem deve ser idóneo para o fim a que se destina, ter as qualidades que têm os bens idênticos, e deve corresponder às legítimas expectativas do consumidor (frequentemente assentes na publicitação de virtudes e qualidades do bem pelo próprio vendedor). Aparecendo qualquer anomalia, que prejudique a efectiva utilização do bem, que não corresponda às expectativas legítimas do consumidor (tendo presente o bem em causa), e que apareça no período da garantia, é da responsabilidade do vendedor (a não ser que demonstre que avaria ou anomalia se deve a actuação inapropriada do consumidor, ou seja, que não decorre de vício ou defeito, ou menor qualidade, existente na data da entrega do bem), ficando obrigado a reparar a avaria ou a substituir o bem se necessário[8], tratando-se de coisa fungível.
Mas a obrigação do vendedor de proceder à reparação, sem encargos para o adquirente, está limitada às anomalias que apareçam no período de garantia. O consumidor não goza de assistência gratuita durante toda a vida útil do bem; a garantia não é ilimitada no tempo.

Verifica-se da alínea 2) da matéria de facto e decorre do 5º/1 do DL 67/2003, a “garantia” é de dois anos – tratando-se de coisa móvel, o comprador pode exercer os direitos previstos no artigo 4º/1, quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois a contar da entrega do bem.
O vendedor responde se o defeito existia na data da entrega do bem e se a falta de conformidade se manifestar no prazo de dois anos a contar da entrega, presumindo-se que o defeito existia nessa data se a desconformidade se manifestar dentro desse prazo. Daí que o consumidor só terá de alegar e provar a desconformidade, independentemente da causa concreta, e que o defeito se manifestou dentro do prazo de “garantia”.

No caso, importa averiguar se a anomalia (avaria da caixa de velocidades), detectada em 30/11/2007) se manifestou dentro do prazo de “garantia” (dois anos) de que, por lei, e convenção, beneficiava a autora.
A autora afirma-o, pela ocorrência se verificar dentro de dois anos subsequentes à substituição da caixa de velocidades, em Fevereiro de 2006 – que na sentença se diz ter sido uma tentativa de reparação frustrada - uma vez que, desde esse momento (entrega do veículo pretensamente “reparado”, corre outra “garantia” (de dois anos). A apelante entende que essa garantia caducou antes da ocorrência (avaria na caixa substituta).

Quanto a esta questão, dispunha o artigo 4º da Lei nº 24/96, na versão primitiva:
1 –
“2 – Sem prejuízo do estabelecimento de prazos mais favoráveis por convenção das partes ou pelos usos, o fornecedor de bens móveis não consumíveis está obrigado a garantir o seu bom estado e funcionamento por um período nunca inferior a um ano.
3 –
“4 – O decurso do prazo de garantia suspende-se durante o período de tempo em que o consumidor se achar privado do uso dos bens em virtude das operações de reparação[9] resultantes de defeitos originários”.

Estas normas transcritas foram substituídas pelo artigo 5º do DL 67/2003 que dispõe:
“1 - O comprador pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.
2 –
3 –
4 –
“5 - O decurso dos prazos suspende-se durante o período de tempo em que o consumidor se achar privado do uso dos bens em virtude das operações de reparação da coisa”.

Quanto nesse nº 5 se diz que o decurso do prazo suspende-se quer referir-se, não especificando, a todos os prazos previstos nesse no artigo, incluindo os prazos previstos no nº 1 (o que vem na sequência do artigo 4º/4 da Lei 24/96), não se limitando aos prazos de denúncia dos defeitos detectados no bem.

Este dispositivo (artigo 5º) veio a ser alterado pelo DL 84/2008, de 21/Maio (que entrou em vigor em 20 do mês seguinte) – que revogou os nº 3, 4 e 5 e aditou dos nº 6 e 7 nos seguintes termos:
“6 – Havendo substituição do bem, o bem sucedâneo goza de um prazo de garantia de dois ou de cinco anos a contar da data da sua entrega, conforme se trate, respectivamente, de bem móvel ou imóvel.
7 – O prazo referido no nº 1 suspende-se, a partir da data da denúncia, durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens”.

Normas que não têm aplicação directa à situação dos autos, ocorrida antes da sua entrada em vigor, mas das quais se depreende que o que se suspende é o decurso do prazo da garantia. Nesses preceitos não se fala em interrupção dos prazos, mas suspensão do seu decurso.
Se o decurso do prazo se suspende durante as operações de reparação (enquanto o consumidor se encontra privado do uso efectivo do bem, suspensão que deve considerar-se desde o aparecimento da anomalia que importe a privação desse uso, pelo menos, a partir da denúncia), é porque a lei entende que, fora as situações previstas (actualmente – artigo 5º/6), não há uma renovação da garantia após as operações de reparação.

O artigo 5º/5 desse DL, na versão primitiva, actualmente revogado pelo citado DL 84/2008, dispunha “o decurso dos prazos suspende-se durante o período de tempo em que o consumidor se achar privado do uso dos bens em virtude das operações de reparação da coisa” (suspensão que, como se referiu, se reporta a todos os prazos previstos nos números anteriores desse artigo), doutrina que, em parte, consta do nº 7 introduzido pelo DL 84/2008.

A propósito do artigo 5º/5 (versão inicial) escreveu J. Calvão da Silva[10] “a reparação ou a substituição do bem suspende e não interrompe os prazos de denúncia e de caducidade – não se inutilizando, portanto, todo o tempo decorrido anteriormente nem começando a correr novo prazo desde a (re)entrega do objecto reparado ou desde a entrega do objecto substituto -, aplicando-se ao bem substituto a presunção referida no nº 2 do art. 3 sempre que a sua falta de conformidade se manifeste ainda no prazo de dois ou cinco anos a contar da entrega da coisa (novel ou imóvel) substituída”.
Entende-se pois que, decorridos dois anos sobre a entrega do bem (acrescidos do período em que o prazo se suspendeu nos termos desses artigo 5º/5) a garantia extingue-se.
Nem se afigura inteiramente correcto afirmar-se que a reparação feita pela apelante, em Fevereiro de 2006, foi uma tentativa de reparação frustrada.
No que respeita à caixa de velocidades, foi esta substituída por uma nova. O vício/anomalia verificado nesta não é o defeito verificado na substituída. E, como afirma a autora/apelada, a ré “assumiu na íntegra a substituição e montagem da caixa de velocidades automática por uma nova”, a que procedeu “no período de 10/01/2006 a 24/02/2006, data em que o ‘Ford’ foi entregue à A. devidamente reparado e em normais condições de operacionalidade e funcionamento”. Quer dizer que a avaria foi reparada e bem reparada e não uma reparação frustrada (o que parece suceder é que o material não tem a qualidade e fiabilidade suficiente para assegurar o perfeito funcionamento durante um período de, pelo menos, dois anos). E tanto assim, que o veículo circulou mais de vinte e um meses, sem que se indicie a existência de problemas com a caixa de velocidades substituta.

Esta veio a ter avaria, como assente está, em 30 de Novembro de 2007, mas, até essa data, haviam decorrido mais de três anos (e já descontado o período de tempo em que a autora esteve privada do veículo para reparação) sobre a entrega do veículo à autora, portanto, depois de esgotado o prazo de garantia.
A avaria ocorre já depois de finda a garantia legal e contratual.
O que sucederia igualmente, segundo a lei em vigor à data da aquisição do veículo (e mesmo da reparação efectuada pela apelante), se se tratasse de substituição (e não de reparação do bem).

Por outro lado, não se coloca qualquer questão de abuso do direito ou má fé da apelante, na medida em que, na reparação efectuada não detecta actuação fraudulenta tendente a ludibriar o exercício dos direitos pela autora, nomeadamente pela execução de operações de reparação apressadas e (essas sim) frustradas até, e com a finalidade de, se esgotar a garantir, sem que o veículo fosse colocado em “condições de operacionalidade”.

Todos os direitos invocados pela autora importavam que se concluísse que a avaria estava a coberto da garantia. Concluindo-se pela sua caducidade, essas pretensões terão também de improceder.
O que a autora pretendia era que a ré procedesse à reparação da viatura sem encargos para si e foi pela discordância com essa pretensão que vêm a ter lugar as despesas e os danos atendidos na sentença. Inexistindo o direito a essa reparação sem encargos, ficam sem fundamento todas as restantes pretensões indemnizatórias.
Assim, a apelação procede, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela apelante no seu recurso.

Faz-se mais uma referência – a apelante não se recusou a reparar a viatura da autora. O que se recusou foi repará-la sem pagamento do custo da reparação.
Custo esse muito inferior ao que a autora veio a suportar noutra oficina, acrescendo que o recurso a essa outra concessionária fez aumentar o tempo de indisponibilidade da viatura. Não se colocando (ainda que sem motivação) problema de confiança técnica na capacidade da apelante para reparar a viatura (nada foi alegado que o revelasse), não se veria razão para o acréscimo de dispêndios na reparação, já que a apelada, no bem fundado da sua posição, não estava impedida de exigir o retorno do que pagasse à ré para reparação da viatura.

Em síntese – na compra e venda abrangida pelo DL 67/2003 (na sua versão primitiva), com a reparação da avaria ocorrida no bem vendido, não se renova o prazo de garantia inicial.

VI) – Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação procedente, revogar a douta sentença e absolver a ré do pedido.
Custas pela apelada.

Porto, 09 de Julho de 2009
José Manuel Carvalho Ferraz
António do Amaral Ferreira
Ana Paula Fonseca Lobo (vencida por entender que o prazo de garantia de peça substituida se não esgotara ainda.)
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[1] “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.
[2] Em “Direito das Obrigações, Contratos”, 2º Ed., 130.
[3] João Calvão da Silva, em “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4ª ed., 64.
[4] Luís Menezes Leitão, em “Direito das Obrigações”, III, 4ª Ed., 131.
[5] Como se escreve no douto Ac. do STJ, de 13/12/2007, na ITIJ/net, proc. 07ª4160 “este normativo da LDC deixa entrever uma clara protecção do consumidor, desde logo, do consumidor, ao considerar um critério objectivo – a coisa vendida para ser isenta de “defeito” deve ter aptidão, idoneidade, e as qualidades intrínsecas hábeis a satisfazer os fins e os efeitos a que se destinam, segundo as normas legalmente estabelecidas – e, também, um critério subjectivo, atribuindo relevância às expectativas legítimas do consumidor.
[6] Liberdade sempre condicionada pelos limites impostos pela boa fé (arts. 762º/2 e 334º do CC), sob pena de se haver de obstar a pretensões abusivas (como sejam desproporcionadas à gravidade da avaria, excessivamente onerosas ou dispendiosas para o devedor sem correspondência com os benefícios a que legalmente pode aspirar o credor).
[7] Luís Menezes Leitão, ob. cit., 154.
[8] O que significa que não é qualquer avaria ou anomalia que atribui ao consumidor o direito á substituição do bem.
[9] Os itálicos são todos nossos.
[10] Em “Venda de Bens de Consumo”, 3ª ed., 96.