Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0812926
Nº Convencional: JTRP00041486
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RP200806250812926
Data do Acordão: 06/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 536 - FLS 156.
Área Temática: .
Sumário: Na decisão que determina a aplicação do segredo de justiça ao processo na fase de inquérito, nos termos do art. 86º, nº 3, do Código de Processo Penal, o Ministério Público, em vista à validação dessa decisão pelo juiz de instrução, não pode limitar-se a invocar uma qualquer directiva emanada da Procuradoria-Geral da República, tendo de indicar as razões que, em seu entender, justificam, no caso, a aplicação do segredo de justiça.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 2926/08-1.
1ª Secção Criminal.
Processo nº ../08.2PASTS-A.
*
Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
1.
Nos autos de processo comum nº ../08.2PASTS do .º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santo Tirso em que é arguido,
B………., melhor id. nos autos,
por despacho do Ministério Público datado de 18.1.2008 (v. fls. 19), foi determinado a aplicação aos respectivos autos de inquérito o segredo de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 86º, nº 3, do Código de Processo Penal
2.
Submetida a apreciação judicial, tal determinação de segredo não foi validada conforme teor do despacho datado de 24.1.2008 - v. fls. 20.
3.
Desta decisão recorreu o Ministério Público que formula as seguintes conclusões:

1.º – Tratando-se de um inquérito por eventual crime de maus-tratos, em que o Ministério Público, em obediência a Directiva do Procurador-Geral da República, determinou a aplicação do segredo de justiça, não pode nem deve o Juiz de Instrução Criminal, sem mais, não validar essa determinação.
2.º – Com efeito não pode ignorar as indicações sobre política criminal constantes da Lei n.º 17/2006 de 23 de Maio e as funções que nesse âmbito atribui ao Ministério Público e ao Procurador-Geral da República e os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009 (Lei n.º 51/2007), entre os quais se situa a prioridade e eficácia na investigação dos crimes de maus tratos e da promoção da protecção das vítimas especialmente frágeis.
3.º – Assim, e a Directiva invocada pelo Ministério Público no despacho de aplicação do segredo de justiça, apresenta-se também, face às dificuldades criadas pela Lei n.º 48/2007, como um instrumento de concretização dos objectivos da política criminal, estabelecidos para este biénio e não como um acto voluntarista, infundamentado e desproporcional, que a decisão recorrida pudesse ignorar, apesar do papel que desempenhara no falado despacho não validado.
4.º – A Directiva teve em conta as alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007 em fase de investigação, que justificam, pelas implicações na forma como o Ministério Público deverá dirigir o inquérito e exercer a acção penal, a adopção de orientações adequadas a garantir uma actuação uniforme desta magistratura, tendo em conta o seu carácter unitário e hierarquizado, designadamente quanto ao segredo de justiça quando visam, como no caso, crimes cuja investigação eficaz é prioritária, não só pelo perigo de reincidência que significam, como pelas lesões das vítimas vulneráveis, cuja protecção foi tida igualmente como prioritária.
5.º – O Juiz de instrução criminal, ao validar ou não o segredo de justiça cuja aplicação foi determinada pelo Ministério Público, não pode deixar de ter presente que se trata exactamente de “validar” e não de “determinar” (o que já foi feito), o que postula atitudes e competências diferentes.
6.º – Ao Ministério Público compete, apreciando os parâmetros legais e tendo presente que está num domínio e numa fase de investigação cuja condução lhe pertence, determinar se a aplicação do segredo de justiça é necessária à investigação, à protecção da vítima ou do arguido, e não é excessivamente onerosa.
7.º – Ao juiz de instrução não compete, ao validar essa determinação substituir-se ao Ministério Público no juízo que a este cabe, mas com bom senso e parcimónia, verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação.
8.º – Ora, a decisão recorrida extravasa esse controlo, substituindo-se à apreciação do Ministério Público, no seu próprio campo, sem tomar em consideração a Directiva invocada por este, e os objectivos da política criminal.
9.º – Na verdade, a responsabilidade indeclinável do juiz de instrução tem a ver com o equilíbrio e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e o direitos de defesa do arguido, por outro lado; e não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só.
10.º – Nessa ponderação entre os interesses da investigação encabeçados pelo Ministério Público e os direitos de defesa do arguido, deve ter em conta se está perante situações reais de perigo de lesão grave destes direitos, como acontece no caso de aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, ou se não o sendo, os direitos de defesa do arguido têm um peso menor, por não comprometidos por espera por fases ulteriores do processo, essas sim já dominadas pelo princípio do contraditório.
11.º – A decisão recorrida mostra-se insuficientemente fundamentada, pois que, mesmo na sua óptica, não esclarece quais são os outros meios de reacção e de protecção aos interesses da vítima que não contendem com a possibilidade de defesa por parte do arguido; em que é que a possibilidade de defesa por parte do arguido é significativamente contundida pelo segredo de justiça determinado pelo Ministério Público.
12.º – E, quando sustenta: “não se vislumbrando – até porque não fundamentada de facto – qualquer possível lesão para a investigação decorrente da publicidade dos autos”, viola os conhecimentos de experiência comum que indicam que, neste tipo de situações em que frequentemente a vítima reside com o agente e é dele dependente, aquela corre graves riscos quanto este se apercebe que foi apresentada queixa e decorre um inquérito.
13.º – Com esse conhecimento o agente, para além do risco de repetição dos eventos, está em condições de fazer pressão sobre a vítima e muitas vezes sobre as testemunhas, podem facilmente perturbar a eficácia do inquérito, além de perturbar a vítima, normalmente muito frágil neste tipo de crimes.
14.º – Por todas estas razões deveria o M.º Juiz a quo ter validado a determinação do Ministério Público de aplicar ao presente inquérito o segredo de justiça.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e validada aquela determinação.
4.
O despacho recorrido foi fundadamente sustentado - v. fls. 76 a 85.
11.
Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
12.
Foram colhidos os vistos e realizou-se a conferência.
II
São as seguintes as questões suscitadas nas conclusões de recurso e que cumpre apreciar:
1. A relevância da Circular invocada pelo Ministério Público na determinação do segredo de justiça.
2. Os poderes do juiz na sindicância do despacho do Ministério Público que determina o segredo de justiça no inquérito.
III
1.
É o seguinte o teor do despacho do Ministério Público que determinou o segredo de justiça:
“Os factos em causa nestes autos são, eventualmente, em abstracto apreciados, eventualmente susceptíveis de configurar o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º do CPenal (anterior crime de maus-tratos a cônjuge)
Tal ilícito é punível com pena de prisão até 5 anos e trata-se de crime contra a integridade física, pelo que se trata de criminalidade violenta, nos termos do art.º 1.º, n.º 1, al.ª j), do CPP.
Face ao exposto, em obediência ao determinado no Ofício Circular n.º 3/2008, da PGD do Porto, porquanto tal é do interesse, quer da investigação, quer especialmente da vítima, determino a aplicação a estes autos do segredo de justiça, nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Para os efeitos previstos na parte final desse n.º, faça os autos presentes ao Mm.º JIC, de imediato”.
2.
Por sua vez, é o seguinte o teor do despacho recorrido:
“Embora se compreenda a tomada de posição por parte do Ministério Público, atento o respectivo dever de ofício, decorrente da invocada Circular da Procuradoria Geral da República, a verdade é que não se vislumbra qualquer motivação factual concreta para tal despacho, sendo certo que por referência ao interesse da vítima, existem outros meios de reacção e protecção aos mesmos que não contendem com a possibilidade de defesa do arguido, sendo certo que a ofendida assumiu já um comportamento activo determinante nos autos, apresentando queixa no próprio dia dos factos.
Em conformidade com o exposto e nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não julgo válido o despacho proferido pelo Ministério Público.”
IV
Apreciando:
1ª questão.
Resulta do despacho do Ministério Público que o segredo de justiça foi determinado no inquérito em causa, com base na Directiva da Procuradoria-Geral da República veiculada pelo Ofício-Circular nº 5/2008, de 15/01/2008, conjugado com o facto de o crime em causa ser punível com pena de prisão de 1 a 5 anos e caber, pois, no campo de previsão da alínea j) do artº 1º do CPP.
E na motivação, o recorrente é explícito em afirmar que o despacho recorrido não ponderou sequer o sentido, valor e alcance da Directiva - v. ponto 3.3. das alegações a fls. 12 deste processo de recurso.

Uma vez que os Magistrados do Ministério Público devem obediência à Directiva, é para os mesmos obrigatório, em cada inquérito em que se investigue cada um dos crimes previstos naquelas alíneas, determinar a aplicação do segredo de justiça naquela fase processual.
Mas é sabido que a(s) Directiva(s) não são fonte de direito. Vinculam o Ministério Público representando pelos diferentes Magistrados nos vários Tribunais, seus únicos destinatários, mas não vinculam o Juiz.
Este, enquanto Juiz de instrução que intervém e pratica os actos no inquérito consignados pela lei, apenas deve obediência a esta - v. artºs 3º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, 9º, nº 1, do Código de Processo Penal e 4º, nº 1, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho.
Será, assim, à luz do nº 3 do artº 86º, do Código de Processo Penal, que o Juiz deverá apreciar se a determinação do segredo é ou não é fundada.
2ª questão
1.
Considerações de índole geral.
Com a entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, que veio dar nova redacção, entre outros, aos artigos 86º e 89º, do Código de Processo Penal, o paradigma do segredo de justiça/publicidade do processo, inverteu-se.
Até então o segredo era a regra nem podendo sequer considerar-se a publicidade excepção, pois esta só era admissível a partir de determinadas fases processuais[1].
Actualmente, a regra passou a chamar-se de publicidade[2].
Mas como desde logo é ressalvado na parte final do transcrito nº 1, do artigo 86º, a natureza pública do processo penal deve ceder perante outros interesses de igual relevância, sob pena de, se assim não fosse salvaguardado, a finalidade última do inquérito jamais ser alcançada[3] e direitos do arguido ou outros intervenientes processuais serem devassados.
Daí o consagrar-se a possibilidade legal do segredo de justiça, que os artigos 86º a 90º, regulam.
A instituição, avaliação e determinação do regime de segredo tem de balear-se, pois, no confronto/conjugação de interesses relevantes mas de índole em parte antagónicos.
1.1. Por um lado e com relevo na criminalidade dita de violenta, pretende-se uma investigação essencialmente eficaz e eficiente, só assim se conseguindo o objectivo primeiro: julgar o autor ou autores de crimes.
1.2. A par desta investigação, no reverso da medalha, existem os direitos e garantias do arguido que, para além dos seus direitos processuais referentes a cada acto concreto, podemos acrescentar os de definição/segurança da sua situação jurídica[4].
1.3. Conjugando a necessidade de eficácia da investigação com o reconhecimento e salvaguarda dos direitos do arguido, surge a pretensão legislativa de uma maior celeridade processual, acompanhada de um controlo/fiscalização hierárquica no incumprimento dos prazos legais - v. nºs 4, 5 e 6 do artigo 276º, do Código de Processo Penal[5].
2.
O regime do artigo 86º do Código de Processo Penal:
2.1. Dispõe o nº 3, deste preceito:
«Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas».

O Ministério Público determinou o segredo nos seguintes termos:
“Face ao exposto, em obediência ao determinado no Ofício Circular n.º 3/2008, da PGD do Porto, porquanto tal é do interesse, quer da investigação, quer especialmente da vítima, determino a aplicação a estes autos do segredo de justiça, nos termos do art.º 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal”.
Já em fase de alegações de recurso, o Ministério Público vem explicitar parte do teor daquela Directiva, onde se fundamenta, perante as alterações introduzidas no regime de segredo de justiça que:
«consubstanciam mudanças significativas na concepção de diversos institutos fundamentais do nosso sistema processual penal, desde logo pela inversão do paradigma, tradicional entre nós, de sujeição a segredo de justiça dos processos em fase de investigação. Tais alterações justificam, pelas implicações na forma como o Ministério público deverá dirigir o inquérito e exercer a acção penal, a adopção de orientações adequadas a garantir uma actuação uniforme desta magistratura, tendo em conta o seu carácter unitário e hierarquizado»
Fundamentos que levam o Digno Magistrado subscritor das alegações de recurso a afirmar:
“O que vale por dizer que a Directiva invocada, não se apresenta como voluntarista, arbitrária, infundamentada e desproporcional, mas como um dos instrumentos de eficácia e concretização da política criminal já então enunciada pela Assembleia da República, Governo e objecto de directivas da Procuradoria-Geral da República.

De acordo com esta posição doutrinal… não poderia o Senhor Juiz a quo optar pela não validação da determinação do Ministério Público”.

2.2.
Já se anotou, o Juiz não deve obediência a esta ou a outras Circulares.
Sem dúvida que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público - artigo 263º, nº 1, do Código de Processo Penal.
E com vista à prossecução dos objectivos da investigação por um lado (artigo 263º, do mesmo diploma) e sempre que os interesses dos sujeitos processuais o justificarem, por outro, pode determinar o segredo do inquérito (artigo 86º, nº3 do CPP).
Mas ao determinar o segredo, o Ministério Público deve ter presente algumas premissas:
a. A regra é a publicidade do inquérito; o segredo é uma excepção - artigo 86º, nº 1, do CPP.
b. Ao decretar o segredo, o Ministério Público está a comprimir, a restringir os direitos de defesa do arguido, que estão, no mínimo, em pé de igualdade com o interesse do segredo e que só por uma questão de conflito de interesses relevantes da investigação, devem, temporariamente, ceder[6].
c. A determinação do segredo não se faz por directivas gerais e abstractas[7] mas é determinado em concreto em cada inquérito de acordo com os interesses em jogo.
d. O segredo não tem, necessariamente, de ser determinado logo no início do inquérito, podendo sê-lo a qualquer momento, desde e logo que o mesmo se justifique.
e. Na determinação do segredo, o Ministério Público não pode limitar-se a fazer uso ou a fundamentar o segredo com base na ordem emanada da Directiva ou transcrevendo a “fórmula legislativa”: deve, sim, sem prejuízo de, se o entender, referir a Directiva, exprimir e concretizar as razões que no presente caso justificam que seja determinado o segredo de justiça.
f. Tem de ter presente e como certo que a sua decisão está sujeita a controlo judicial para validação, no prazo máximo de 72 horas.
g. Que este controlo não é apenas a aposição de uma chancela para cumprimento das formalidades legais.
h. Que o controlo significa apreciação e ponderação sobre os fundamentos justificativos da determinação do segredo, ou seja, uma apreciação de natureza substantiva e não de mero controlo dos requisitos formais.
i. Não se pode confundir “segredo de justiça” com ocultação pura e simples de inquérito.

2.3. Subsumindo o conteúdo destas premissas quer ao teor do despacho quer das alegações do Ministério Público, facilmente verificamos que a maioria delas não foi observada ou considerada.

Destacamos o facto de a fundamentação do segredo se cingir à citação da referida Circular, olvidando o despacho, por completo, a explicitação da necessidade do segredo.
Ora, este deve ser decretado não por orientações gerais e abstractas, ainda que por tipos de crime, devidamente catalogados, mas por referência ao caso específico.
Pode muito bem suceder que perante um crime grave, nesse concreto caso não se justificar a determinação do segredo.
Em contrapartida, perante um crime não integrante da dita Circular, o Ministério Público pode vir a entender que, nesse caso, se justifica determinar o segredo de justiça.
Temos para nós como quase certo que, se surgir esta situação, o Ministério Público vai fundamentar devidamente por que motivo se justifica o segredo: ou porque a investigação tem de proceder a determinados actos difíceis ou sensíveis de prova, a buscas, apreensões, exames ou outros, que de algum modo não se coadunam com a publicidade do processo, ou que a vítima é vulnerável a determinados actos ou situações pelo que, para uma melhor angariação dos elementos probatórios, tudo aconselha que se determine o segredo.
Ora, apesar da Directiva, é o que o Ministério Público terá de fazer relativamente a cada inquérito em que entenda que se justifica o segredo: indicar as concretas razões daquela situação (da investigação ou sujeitos processuais).
Dos autos apenas resulta que se está perante um crime de maus tratos.
Perante a medida da pena este crime cabe no âmbito da Directiva.
Mas não chega invocá-la. Se assim se entendesse, estar-se-ia, por esta via, a derrogar o princípio processual e geral da publicidade. De excepção, o segredo assumia o estatuto de regra.

Perante a inexistência das razões que determinaram e justificam, no caso concreto, o segredo de justiça, não pode o Sr. Juiz sindicar, avaliando da ponderação dos interesses que neste inquérito se discutem e que assumem uma face tripartida: da investigação, da vítima e do arguido.

Estes interesses foram avaliados pelo Ministério Público abstractamente: não cuidou de saber e justificar qual a dificuldade ou conveniência do segredo em termos de andamento e recolha de prova da investigação; não cuidou de saber qual a situação concreta da vítima e se o interesse desta justificava o segredo imediato do processo; não cuidou de saber e apurar se estava em causa, efectivamente um crime violento no sentido literal da palavra, independentemente da qualificação jurídica face à pena prevista para o mesmo e a real perigosidade do arguido.
São elementos que o Ministério Público tem de trazer ao processo, para uma efectiva apreciação pelo juiz.
A não ser assim, pode determinar-se o segredo em inquéritos que, de todo, não o justificariam.
A fazer fé no teor do despacho de sustentação da Srª Juíza[8], tudo leva a crer que este seria precisamente um deles.
E como se aflorou supra, não se pode confundir segredo de justiça com ocultação do inquérito, no caso, ao arguido.
É que, se se pode “esconder” a pendência do inquérito do arguido por algum tempo, este tem limites, pois surgirá inevitavelmente a necessidade de constituir arguido, o suspeito e ouvi-lo em declarações, sendo certo que este, a partir desse momento e mesmo com o inquérito em segredo de justiça, é sujeito de direitos, conforme artigo 61º, do Código de Processo Penal.
Daí que o objectivo essencial do segredo não seja o de não dar a conhecer ao arguido que contra ele corre termos o inquérito, como parece fazer crer o Ministério Público nas suas alegações, para desta forma proteger a vítima.
Com certeza que o segredo protegerá a vítima em alguns aspectos, a começar pelo teor das suas declarações.
Mas essa protecção terá de ir para além do mero segredo, pois este termina, inevitavelmente e a vítima, a partir daí, ficará desprotegida.
Essa protecção passa, necessariamente, pela aplicação das medidas de coação mais adequadas ao caso, bem sugeridas e apontadas no despacho de sustentação[9]:
“… promover a realização de interrogatório judicial do arguido[10], tendo em vista a definição do respectivo estatuto coactivo, mediante a aplicação, conforme já referido, de uma medida de coacção como a proibição de contactos com a vítima e a obrigação de se ausentar (ou proibição de permanecer) na residência do casal”.
3.
Por todas estas razões, entendemos que andou bem a Srª Juíza ao decidir que “não se vislumbra qualquer motivação factual concreta para tal despacho” e, consequentemente, não validar o segredo de justiça em causa, sob pena de estar a validar um acto processual que de todo lhe era desconhecido nos seus fundamentos.
O Ministério Público exige uma fundamentação do despacho judicial sobre fundamentos inexistentes no despacho a sindicar.
Ora, o Juiz só pode apreciar o que é alegado, dito, esclarecido pelos fundamentos.
E, nesta parte, o despacho recorrido está fundamentado: fundamenta-se exactamente na não fundamentação do despacho do Ministério Público. O legislador estabeleceu uma sequência lógica para esta questão do segredo de justiça: e tudo começa no despacho do Ministério Público: fundamentado com factos, para poder ser apreciado pelo juiz que também deve fundamentar a sua concordância ou discordância[11].
V
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso do Ministério Público, mantendo na íntegra o despacho recorrido.

Sem custas.

Porto, 25/06/2008
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto

_____________________
[1] Dizia o anterior artigo 86º, nº 1, do Código de Processo Penal:
“O processo penal é, sob pena de nulidade, público, a partir da decisão instrutória ou, se a instrução não tiver lugar, do momento em que já não pode ser requerida”.
[2] Diz o artigo 86º, nº 1, do Código de Processo Penal:
“O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei”.
[3] “O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” - nº 1, do artigo 262º, do Código de Processo Penal.
[4] Direitos que, embora de natureza diferente, devem ser assegurados quer ao assistente quer ao ofendido, pelo que lhes é igualmente reconhecido quer o direito de requer que seja determinado o segredo de justiça quer de requerer o seu levantamento - v. nºs 2 a 5 do citado artigo 86º, do Código de Processo Penal.
[5] Mais adiante se referirá uma outra consequência resultante do incumprimento dos prazos legais do inquérito, a consagrada no artigo 89º, nº 6, do Código de Processo Penal.
[6] V. a fórmula legislativa de “sempre que…os interesses da investigação…o justifiquem…”.
[7] Pois, se assim fosse ou se desejasse que fosse, o legislador definia em concreto os tipos de crime em que haveria sempre segredo de justiça, o que manifestamente não quis.
[8] “…no caso dos autos, verifica-se que em declarações subsequentes à queixa prestadas pela própria ofendida, parece que o facto de ter sido instaurado o procedimento criminal e de o arguido ter tomado conhecimento do mesmo terá sido favorável à própria ofendida, sendo certo que em causa não estará, segundo as declarações prestadas, uma situação de reiteração ou de continuação, mas um episódio pontual (cfr. fls. 53 a 55 do presente apenso)”.
[9] Claro que a investigação e a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público mas estando em causa a definição do estatuto de publicidade ou de segredo de justiça do mesmo, com base, entre outros argumentos, na defesa da vítima e cabendo ao juiz avaliar e ponderar da razoabilidade ou necessidade do segredo, não lhe pode passar indiferente a forma efectiva e capaz de defender esses mesmos interesses e de avaliar, dessa forma, a justeza do segredo.
Sobre este aspecto v. o recente acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 7.5.2008, proferido no processo nº 0811925, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrp, onde se decidiu:
“Aliás, no nº 3 do artº 86º, os interesses da investigação, como fundamento da aplicação do segredo de justiça, estão ao mesmo nível dos direitos dos sujeitos processuais… e ninguém sustentará que só ao MP cabe decidir o que convém à protecção destes direitos”.
[10] Afirmando-se no respectivo despacho que até ao momento ainda não foi feito.
[11] Sobre este aspecto v. ainda o ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 7.5.2008, citado na nota 9, onde se decidiu:
“Mas a aplicação do segredo de justiça é uma excepção à regra da publicidade, afirmada no nº 1 do artº 86º; uma excepção que representa a compressão de outros interesses, como é o caso dos direitos de defesa do arguido.
E porque assim é, em ordem a melhor garantir a protecção desses direitos, a lei exige a concordância do juiz de instrução sobre a aplicação do segredo de justiça, na fase do inquérito. Concordância do juiz de instrução com o despacho do MP que aplica o segredo de justiça é o que traduz a validação desse despacho. E concordância com esse despacho significa concordância com os seus fundamentos. Por isso, se o fundamento do despacho do MP for a necessidade do segredo de justiça para os interesses da investigação, o juiz de instrução, para concordar ou discordar, há-de poder ajuizar dessa necessidade”.