Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0543213
Nº Convencional: JTRP00040021
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
COMPETÊNCIA
JOGO
Nº do Documento: RP200702070543213
Data do Acordão: 02/07/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO EM MATÉRIA CONTRAORDENACIONAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 247 - FLS. 188.
Área Temática: .
Sumário: O Departamento de jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa não tem competência para o processamento de contra-ordenação concretizada em exploração ilicita de rifa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 3213/05-4
…..º Juízo T. J. de Vila Real, Proc. Nº …….-04.5TBVRL

Acordam, em Conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

A pessoa colectiva B……………., Lda., foi condenada, pelo Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, no pagamento de uma coima no valor de € 3.740,98, pela prática de facto que, no entender do mesmo departamento, integra a contra-ordenação p. e p. pelos arts. 161º e 163º, nº 2 do DL nº 422/89, 02/12, com a redacção alterada pelo DL nº 10/95, de 19/01.
Interpôs recurso a condenada alegando, fundamentalmente, que a entidade que a condenou não tem competência para proferir tal decisão, em virtude do estabelecido na Lei do Jogo.
No ..º Juízo T. J. de Vila Real, Proc. Nº …….-04.5TBVRL, foi, por Despacho, este recurso julgado precedente por provado e, em consequência, julgado o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa incompetente em razão da matéria, determinando-se a nulidade da decisão por este proferida.
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O MºPº, em 1ª Instância, interpôs recurso do referido Despacho, formulando as seguintes conclusões:
1. Arguida B………………, Lda, foi condenada pela Direcção do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, numa coima de 3.740,98 Euros, acrescida de custas (135,00 Euros), pela prática da contra-ordenação, p. e p. nas disposições conjugadas dos arts. 161º e 163º, nº 2, do DL 422/89, de 2 de Dezembro, alterados pelos arts. 1º e 2º, do DL 10/95, de 19 de Janeiro;
2. A SCML tem o monopólio das lotarias a nível nacional;
3. A SCML não é uma Instituição Particular de Solidariedade Social;
4. A SCML é Pessoa Colectiva de Utilidade Pública Administrativa – DL nº 322/91, de 26 de Agosto;
5. Sendo intervencionada pelo Governo, que nomeia os respectivos Mesários;
6. De acordo com o disposto nos estatutos da SCML e respectivos anexos, o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem competência para autuar, instruir e condenar pela prática de ilícitos relacionados com a exploração ilícita de lotarias;
7. Tal competência não lhe foi retirada, nem atribuída a entidade diversa, nomeadamente à Inspecção-Geral de Jogos;
8. Ao concluir-se que a SCML – Departamento de Jogos, não tem competência para aplicar coimas, aplicou-se e interpretou-se erradamente a Lei, nomeadamente ao concluir que nos Estatutos não existe preceito que o autorize e que os preceitos existentes anteriormente foram revogados;
9. Razão pela qual a presente Sentença deve ser substituída por decisão que confirme a competência da SCML – Departamento de Jogos para aplicar a coima à arguida, mantendo assim a condenação da arguida no seu pagamento;
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A este recurso respondeu a B………….., Lda., formulando as seguintes conclusões:
1- É matéria sub recurso a competência ou não do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para a aplicação de coimas, in casu a aplicação à ora recorrida B………………, Lda., de uma coima no valor de € 3.740,98, pela alegada prática de facto que, no entender da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, integra a contra-ordenação p. e p. pelos arts. 161º e 163º, nº 2 do DL. nº 422/89, de 02/12, com a redacção do DL. nº 10/95, de 19/01;
2- O art. 3º, nº 1, al. j), do Anexo II dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa atribui competência ao Departamento de Jogos daquela Misericórdia, aprovados pelo DL. nº 322/91, de 26/08, “natureza consultiva” na apreciação dos processos contra-ordenacionais relacionados com a exploração de jogos;
3- Não se extrai do teor do referido preceito legal qualquer atribuição de função administrativa ou poder de aplicação de coimas ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa perante condutas que julgue ilícitas;
4- A natureza de pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, atribuída pelo DL. nº 322/91, de 26/08 não confere ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa poderes sancionatórios como pretende o Digníssimo Magistrado do MºPº;
5- O conceito de Pessoa Colectiva de Utilidade Pública Administrativa recorta-se a par do de pessoa colectiva de mera utilidade pública – clubes desportivos, colectividades de cultura, etc. – e de instituição particular de solidariedade social, e bem distante do conceito de poder executivo e o exercício de poderes a este inerentes, neste particular, o poder de punir;
6- A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa não tem um vínculo público sob a intervenção directa do Estado. Não usufrui, por isso, dos poderes do Estado, nomeadamente, os poderes sancionatórios que a este competem;
7- A atribuição à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa da gestão e exploração do jogo da lotaria não é sinónimo de legitimidade e competência para a aplicação de sanções;
8- Carece o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de base legal e legitimidade para instrução de processos contra-ordenacionais e aplicação de sanções;
9- O DL. nº 422/89, de 02/12, alterado pelo DL. nº 10/95, de 19/01, veio, expressamente, atribuir competência em exclusivo ao membro do Governo responsável pela administração interna e governadores civis, por delegação de poderes daquele, cabendo às autoridades policiais competentes a instrução dos respectivos processos de contra-ordenação e designar a Inspecção-Geral de Jogos, como técnico consultivo e pericial dos governadores civis, para consultas e elaboração de pareceres em sede de matéria de exploração de jogos ilícitos;
10- Nega-se fundamento ao recurso a que se responde;
11- Impõe-se manter a Sentença sub recurso, nos precisos termos em que foi proferida!
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso, escrevendo, em síntese:
«Sobre o mérito do recurso:
Em minha opinião, o despacho recorrido não merece qualquer censura.
Com efeito, na eventualidade de o facto denunciado nos autos constituir uma contra-ordenação, p. e p. nos termos do art. 160º, nº 1 e 163º, nº 2 do DL 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo DL 10/95 (rifa – modalidade afim dos jogos de fortuna e azar – art. 159º, nºs 1 e 2 do citado diploma legal), a competência administrativa para a decisão sancionatória cabe ao Governador Civil de Vila Real, por força do disposto no art. 164º do citado DL 422/89, em conjugação com Despacho nº 8941/2005 do Ministério da Administração Interna, publicado na II Série do DR nº 79, de 22 de Abril de 2005 (no seu nº 2, o Ministro de Estado e da Administração Interna delegou nos governadores civis os poderes que lhe são conferidos pelos arts. 159º e 163º do DL 422/89, em matéria das modalidades afins dos jogos de fortuna e azar ou outras formas de jogo).
O Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa “tem por objectivo gerir a exploração de lotarias, apostas mútuas e quaisquer outros jogos que, a qualquer título sejam cometidos à Misericórdia de Lisboa e, bem assim, controlar e fiscalizar o integral cumprimento das disposições legais que os regulamentam “ – art. 1º do Anexo II do DL 322/91, de 26 de Agosto (Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa). A competência do mesmo órgão para “apreciar os processos de contra-ordenação … respeitantes a explorações ilícitas de lotarias, apostas mútuas ou outros jogos e actividades similares, com vista à aplicação de penalidades previstas na Lei” tem que ser interpretada à luz e no âmbito de tais objectivos: controlar e fiscalizar o integral cumprimento das disposições legais que regulamentam a exploração de lotarias, apostas mútuas e quaisquer outros jogos que, a qualquer título, sejam cometidos à Misericórdia de Lisboa.
Ora, não me parece que seja o caso das rifas.
Aqui tem plena aplicação o regime legal consagrado naquele diploma regulamentador dos jogos de fortuna e azar (422/89, de 2 de Dezembro, na redacção dada pelo DL 10/95), que, sendo posterior, sempre revogaria, ainda que tacitamente, as normas contidas nos Estatutos da Santa Casa da misericórdia de Lisboa que com ele fossem incompatíveis.
Face ao exposto, sou do parecer que o recurso não merece provimento.»
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor do Despacho recorrido:
«Veio B……………., Lda., interpor recurso de impugnação judicial de decisão proferida pelo Departamento de Jogos, da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, que a condenou no pagamento de uma coima no valor de € 3.740,98, e custas, pela prática de facto que no entender da mesma integra a contra – ordenação p. e p. pelos arts. 161º e 163º nº 2 do Dec.-Lei nº 422/89 de 02/12, com a redacção alterada pelo DL nº 10/95 de 19/01.
Alegou, para tanto e em síntese que, a entidade que a condenou no pagamento da coima não tem competência para proferir esta decisão, em virtude do estabelecido na Lei do Jogo.
Acrescentou ainda a recorrente que se limitou a imprimir 1000 bilhetes de acordo com a encomenda efectuada pela Comissão de Festas de …………, não tendo explorado qualquer modalidade de jogo. Por outro lado, também a referida Comissão de Festas não agiu com intuitos lucrativos e a recorrente não tendo tido qualquer outra intervenção nesse processo, que não seja a impressão dos ditos bilhetes, não agiu em co-autoria com a Comissão de Festas indicada.
Termina considerando exagerada a coima fixada atento o valor da encomenda realizada pela recorrente e que orçou em € 59,59.
Foi julgada desnecessária a realização de Audiência de Julgamento.
O Min. Púb. e o recorrente não se opuseram a que a decisão fosse proferida através de simples despacho.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo não padece de qualquer vício que o invalide no seu todo.
Inexistem quaisquer nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Uma vez que o recorrente não impugnou a matéria factual exposta no auto de contra-ordenação em apreço, resta apreciar a validade da sua pretensão quanto às questões jurídicas suscitadas.
Quanto à questão da incompetência da entidade administrativa que emitiu a decisão condenatória em apreço e perante as normas jurídicas aqui aplicáveis, e salvo melhor opinião, entende-se que assiste razão à recorrente.
Vejamos.
O Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa estriba a sua competência no art. 3º nº 1 al. j) do Anexo II dos Estatutos da referida Misericórdia, aprovados pelo Dec.-Lei nº 322/91 de 26/08. Ora, esta norma legal estatui que compete ao Departamento de Jogos em causa “Apreciar os processos de contra-ordenação que vierem a ser instaurados e respeitantes a explorações ilícitas de lotarias, de apostas mútuas ou outros jogos e actividades similares, com vista à aplicação de penalidades previstas na lei”.
Da interpretação deste preceito legal parece ser claro que o Departamento de Jogos tem uma natureza consultiva na apreciação dos processos de contra-ordenação que se prendam com a actividade a que este órgão se dedica, ou seja, com a exploração de jogos.
Este diploma legal é absolutamente omisso na atribuição ao referido Departamento de Jogos de qualquer função administrativa no sentido de lhe incumbir tarefas de penalizar, aplicando coimas, quanto a quaisquer condutas ilícitas.
Nem de outro modo se compreenderia. As Misericórdias não têm qualquer vínculo público, ou estatal, sendo entidades privadas de solidariedade social e apesar de ao Departamento de Jogos ser atribuída uma competência para a apreciação destes processos, esta atribuição não pode, a nosso ver, exceder mais do que a elaboração de um parecer, que as entidades administrativas competentes poderão solicitar para fundamentar cabalmente as suas decisões condenatórias ou não…
Por outro lado, o art. 164º do DL 10/95, de 19/01, que veio alterar o DL nº 422/89, de 02/12 é claro, dizendo na sua epigrafe “Competência”, sendo que a atribui expressamente ao membro do Governo responsável pela administração interna, ou caso este a delegue aos Governadores Civis, cabendo às autoridades policiais competentes a instrução dos respectivos processos de contra-ordenação e designado a Inspecção Geral de Jogos como o serviço técnico consultivo e pericial dos governadores civis.
É, assim, manifesto que o legislador ao prever as punições para a prática ilícita de jogos, descritas nos preceitos correspondentes aos arts. 159º a 163º do indicado diploma legal, não contemplou o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de quaisquer competências nesta matéria, tendo até em certa medida revogado tacitamente o vertido no art. 3º, nº 1 al. j) do Anexo II dos Estatutos daquela Misericórdia, já que afastou esta entidade da elaboração de pareceres nesta matéria, atribuindo em exclusivo à Inspecção-Geral de Jogos.
Em conformidade, e tudo visto, entende-se que o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é incompetente em razão da matéria, para conhecer destas questões e para emitir qualquer decisão condenatória pela prática de ilícito contra-ordenacional, ao abrigo do preceituado também nos arts. 33º e 34º, nº 1 do DL. 433/82, de 27/10.
Assim, e sendo omisso o regime geral das contra-ordenações quanto às consequências da incompetência em razão de matéria da entidade que emitiu a decisão condenatória, terá de se aplicar o disposto no art. 119º, al. e) do CPP, ex vi do art. 41º, nº1 do DL. 433/82, ou seja, considerar que estamos perante uma nulidade insanável que determina a nulidade de todo o processado anteriormente – cfr. art. 122º, nº 1 do CPP, aproveitando-se apenas o relatório de fl. 8 e respectiva documentação (até fls. 12).
Pelo exposto, julgo o presente recurso procedente por provado e, em consequência, julgar-se o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa incompetente em razão da matéria e em consequência determina-se a nulidade de todo o processo posterior ao relatório de fls. 8 e respectiva documentação, até fls. 12, inclusive.»
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recurso se cinge à seguinte questão:
- competência do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para apreciar a prática da contra-ordenação p. e p. pelos arts. 161º e 163º, nº 2 do DL. nº 422/89, de 02/12, com a redacção do DL. nº 10/95, de 19/01, e aplicar a respectiva coima (exploração de modalidade afim de jogo de fortuna ou azar, por entidade com fim lucrativo, sem autorização do Governo Civil).
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A arguida imprimiu 1000 bilhetes, para uma rifa efectuada pela Comissão de Festas de ……………. Especificando mais, a sua actividade restringiu-se, à produção tipográfica dos bilhetes destinados a servir de “rifas”, num sorteio para a angariação de fundos por aquela comissão de festas, em que o 1º prémio era um “cabaz de Páscoa”, o 2º prémio “um cabrito” e o 3º “um presunto”.
Foi esta a actividade considerada infracção contra-ordenacional e punida com a coima de € 3.740,98.
Na decisão do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é considerado que a produção tipográfica das “rifas” representava uma participação na execução daquele sorteio, o que tornava a arguida co-autora.
Foi considerado que “o jogo a dinheiro é proibido” e que a exploração de lotarias é um exclusivo da SCML.
Evidencia-se, pois, desde logo, um erro de substância: a actividade da arguida não se integra no âmbito da previsão contra-ordenacional em causa.
O procedimento sancionado é a exploração de modalidade afim de jogo de fortuna ou azar – no caso, uma rifa – por entidade com fim lucrativo, sem autorização do Governo Civil.
O vocábulo “explorar” tem aqui o sentido de “organizar e tirar proveito de”.
Proceder-se à produção tipográfica dos bilhetes da rifa, não é explorar, tirar proveito da rifa. Logo, a arguida não incorreu na prática da contra-ordenação em causa.
Tão pouco teria incorrido na prática dessa contra-ordenação a comissão de festas, entidade sem fins lucrativos.
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Porém, a decisão recorrida centrou-se numa questão formal que precede essa análise de substância: a falta de competência material da entidade que emitiu a decisão condenatória, o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Esta entidade sustenta a sua competência no disposto no art. 33º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, conjugado com os arts. 1º, nº 1 e 3º, al. j) do Anexo II dos Estatutos da SCML, aprovados pelo Dec.-Lei nº 322/91, de 26/08.
No referido art. 33º, do RGCOC estabelece-se a regra da competência das autoridades administrativas para processamento das contra-ordenações e aplicação das coimas e sanções acessórias.
A competência em razão da matéria para o processo contra-ordenacional pertence às autoridades administrativas que forem indicadas na Lei que prevê e sanciona as contra-ordenações – art. 34º, nº1 do RGCOC.
No art. 1º, nº 1 do Regulamento do Departamento de Jogos da SCML, contido no referido Anexo II, estabelece-se que aquele departamento «tem por objecto gerir a exploração de lotarias, apostas mútuas e quaisquer outros jogos que, a qualquer título, sejam cometidos à Misericórdia de Lisboa e, bem assim, controlar e fiscalizar o integral cumprimento das disposições legais que os regulamentam».
No art. 3º, al. j) estabelece-se que, no exercício das suas atribuições, lhe compete «apreciar os processos de contra-ordenação que vierem a ser instaurados e respeitantes a explorações ilícitas de lotarias, de apostas mútuas ou outros jogos e actividades similares, com vista à aplicação de penalidades previstas na Lei.»
Esta tutela contra-ordenacional circunscreve-se, pois, à exploração ilícita dos jogos cuja organização e exploração está, pelo Estado, concedida, em regime de exclusividade, à SCML.
São eles:
As lotarias, a Nacional (cujo direito de exploração, em regime de monopólio, lhe foi conferido pela Portaria de 27/05, de 1834 e Decreto de 05/10, de 1838), a Popular e a Instantânea;
As apostas mútuas, Totobola, Totoloto, “Joker” e Euromilhões (com excepção das apostas mútuas hípicas, criadas pelo DL 268/92, de 28/11).
A atribuição dessa tutela contra-ordenacional justifica-se, exactamente, pela necessidade de protecção desse direito exclusivo da SCML.
Fora deste âmbito de exploração exclusiva pela SCML estão as rifas.
Rifa é o sorteio de um ou vários objectos, geralmente através de bilhetes numerados (modalidade de sorteio popular, de tradições bem antigas).
Às rifas aplica-se o regime estabelecido no DL nº 422/89, de 02/12, com a redacção aditada pelo DL nº 10/95, de 19/01.
É considerada uma “modalidade afim do jogo de fortuna ou azar”, pelo nº 2 do art. 159º daquele DL.
A sua exploração fica dependente de autorização do Governador Civil do respectivo Distrito, tal como decorre do art. 160º, nº 1, conjugado com o Despacho nº 8941/2005, do Ministério da Administração Interna, publicado na II Série do DR nº 79, de 22/04/2005.
A exploração de rifa, sem a referida autorização, por entidade com fim lucrativo, é proibida – art. 161º, nº 1 do DL 10/95, de 19/01, constituindo contra-ordenação sancionada, nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 163º daquele DL, consoante se trate de pessoa singular ou de pessoa colectiva.
Assim, decorre da conjugação no disposto no art. 34º, nº 1, do RGCOC com o art. 164º do DL 10/95, de 19/01, e o Despacho nº 8941/2005, do Ministério da Administração Interna, publicado na II Série do DR nº 79, de 22/04/2005, que a competência para a apreciação do processo contra-ordenacional e aplicação da respectiva coima pertence ao Governo Civil do Distrito onde a mesma for praticada.
Mostra-se, assim, correcto o Despacho recorrido, ao considerar incompetente em razão da matéria o Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e, em consequência, ter considerado verificada a nulidade do art. 119º, al. e) do CPP, aplicável por força do art. 41º, nº 1 do RGCOC.
Em rigor, nem de uma questão de incompetência se tratará, mas sim de uma questão de falta de Jurisdição; aquela entidade não tem poder para aplicar a Lei e desencadear os mecanismos jurídicos de sanção, em matéria de exploração ilícita de rifas.
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Mostra-se, aliás, conveniente assinalar o paradoxo histórico decorrente de um agente da Misericórdia de Lisboa, instituição de carácter pio e religioso criada na Idade Média (em 15/08/1498, por Fr. Miguel de Contreiras) e destinada a obras de misericórdia (em tempos onde a ideia de assistência social pelo Estado, era desconhecida), se propor sancionar uma iniciativa destinada a angariar fundos para uma festa, seguramente, de cariz religioso.
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Nos termos relatados, decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Sem custas, por não serem devidas.

Porto, 07 de Fevereiro de 2007
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho
António Luís T. Cravo Roxo