Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
244/11.0TBVPA.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DE JESUS PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACIDENTE EM AUTO-ESTRADA CONCESSIONADA
EMBATE DE UM VEÍCULO COM ANIMAL DE RAÇA CANINA
Nº do Documento: RP20121016244/11.0TBVPA.P1
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O tribunal comum é incompetente em razão da matéria para julgar um acidente de viação (embate contra um animal de raça canina) ocorrido numa auto-estrada concessionada (o qual compete à jurisdição administrativa e fiscal).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pc.244/11.0TBVPA.P1
(Apelação)
Relatora Maria de Jesus Pereira
Adjuntos: Des. Henrique Araújo
Des. Rui Moreira

Acordam no Tribunal no Tribunal da Relação do Porto

1-Relatório.
B… propôs, no Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra C…, S.A e D…, S.A., alegando, e em síntese, que:
- no dia 16 de Novembro de 2008, pelas 22h15, sofreu um acidente de viação, consubstanciado no facto do veículo que conduzia ter embatido contra um animal de raça canina, quando circulava na Auto-Estrada .., Km 35, no sentido …/…, o qual surgiu inopinadamente na via.
- o veículo sofreu danos materiais, o que o desvalorizou, sendo certo que esteve impedido de o usar durante o período de cinco dias;
- a primeira ré é concessionária da referida Auto-Estrada .., respondendo pelos prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, de acordo com as Bases, VIII, XXXVII e LXXIII do contrato de concessão, anexo ao DL 323-G/2000, de 19 de Dezembro;
- a referida ré, de acordo com o contrato de concessão, tem o encargo de manter a Auto-Estrada em bom estado de funcionamento, conservação e segurança, assegurando a vigilância das condições de circulação, nomeadamente a sua fiscalização e prevenção de acidentes, tudo obrigações que a referida ré omitiu, no presente caso, permitindo que o referido animal se encontrasse na via de circulação;
- a responsabilidade civil da segunda ré decorre do facto de ser a entidade que presta os serviços de operação e manutenção dos diversos lanços da Auto-Estrada, concessionada à primeira ré, tendo sido naquela que esta delegou as funções de inspecção e conservação da referida Auto-Estrada, tendo omitido os referidos deveres de vigilância ;
Conclui pedindo a condenação das rés, solidariamente ou individualmente, no pagamento ao autor de € 10.372,62 a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais.

Regularmente citadas, as rés contestaram impugnando a factualidade alegada pelo autor.

Findos os articulados, o Juiz a quo ordenou a notificação das partes para se pronunciarem sobre a incompetência em razão da matéria daquele tribunal para conhecer do presente litígio.
O autor pronunciou-se no sentido de que aquele tribunal é o competente em razão da matéria.
No despacho saneador, o juiz a quo conheceu oficiosamente da excepção dilatória da incompetência absoluta declarando “o Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação da presente acção e, consequentemente, absolveu da instâncias as rés”.
Inconformado o autor interpôs recurso de apelação ora em apreciação cujas conclusões são as seguintes:
1.º - O Tribunal a quo fez errado julgamento da matéria de direito, delineando um enquadramento jurídico incorrecto acerca da competência material dos Tribunais Judiciais para dirimirem questões relacionadas com a responsabilidade civil decorrente de acidentes ocasionados em Auto-estradas concessionadas.
2.º - Entende o recorrente que a competência material do Tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal qual é apresentada na petição inicial, i. e., pela forma como surgem definidos a causa de pedir e o pedido.
3.º - E nem se diga, tal como preconiza a sentença recorrida, que com a entrada em vigor do novo E.T.A.F. (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), se operou uma profunda alteração das competências materiais dos Tribunais Administrativos, perdendo actualidade e relevância a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.
4.º - Com efeito, tais afirmações carecem de qualquer sustentação legal e doutrinária, isto porque, mesmo perante a aplicação do novo ETAF tem-se entendido que, na prática, os conceitos de gestão pública e gestão privada continuam a constituir a base de delimitação da jurisdição administrativa, maxime em matéria de responsabilidade extracontratual do Estado. Ora,
5.º - Na situação sub judice, o pedido formulado pelo recorrente consiste na condenação das recorridas - uma concessionária e uma entidade criada em regime de exclusividade para prestar serviços de operação e manutenção dos diversos lanços de Auto-estrada concessionada à 1.ª recorrida – no pagamento de uma indemnização, com fundamento na responsabilidade civil extracontratual emergente da omissão dos deveres de vigilância, manutenção e conservação da Auto-estrada .., no sentido …/…, por parte daquelas.
6.º - O litígio não emerge, pois, do contrato celebrado entre as recorridas e o Estado Português, nem de qualquer relação jurídica administrativa.
7.º - Antes pelo contrário, estamos perante uma controvérsia entre entidades privadas – o recorrente e duas sociedades anónimas, constituídas de acordo com preceitos eminentemente privatísticos e completamente despojadas de qualquer manifestação de jus imperii.
8.º - Apesar de a 1.ª recorrida constituir uma concessionária, nem por isso parece ser possível enquadrar a presente acção em qualquer das alíneas do artigo 4º, nº 1 do E.T.A.F.,
9.º - Nada existindo na lei que lhe torne, outrossim, directamente aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado, patente no “D-L” n.º 67/2007 de 31 de Dezembro.
10.º - Em perfeita harmonia com esta mesma linha de raciocínio, acha-se o conteúdo das respectivas Bases da Concessão da C… (aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 323-G/2000 de 19 de Dezembro), que salienta a natureza privada da concessionária perante terceiros (conf. Bases VIII, o nº 2 da Base XXXVII, o nº 1 da base LIV, LXXIII e LXXIV).
11.º - As recorridas, no desenrolar dos acontecimentos sobre os quais o recorrente funda a invocada responsabilidade civil extracontratual, não agiram ao abrigo de quaisquer prerrogativas de direito público, mas antes como meros sujeitos de direito privado.
12.º - Pelo que a apreciação da acção proposta não envolve a solução de um litígio emergente de relação jurídica administrativa, antes correspondendo ao conhecimento de uma questão de direito privado, da competência dos tribunais judiciais.
13.º - Conclui, assim, o recorrente, nos termos do artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e dos artigos 1.º, n.º 1 e 4.º do E.T.A.F., não serem os Tribunais Administrativos e Fiscais materialmente competentes para decidir os pedidos que formulou nos presentes autos.
14.º - Inexiste qualquer disposição legal que submeta as recorridas ao regime jurídico específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público - crê-se, salvo o devido respeito por opinião diversa, não estar em causa qualquer tipo de relação jurídica administrativa, devendo ser aplicável ao caso em apreço o critério residual previsto no artigo 66.º do Código de Processo Civil e no artigo 18.°, nº 1 da L.O.F.T.J., que atribui competência aos Tribunais Judiciais para solucionar questões em tudo similares à vinda de enunciar.
15.º - Por todo o exposto, entende o recorrente que o Tribunal a quo, decidindo como decidiu, violou frontalmente o artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa que determina que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, uma vez que a relação jurídica em apreço se afigura como manifestamente privada. Por sua vez,
16.º - Encontram-se, outrossim, beliscadas as normas nos artigos 66.º do Código de Processo Civil e no artigo 18.°, nº 1 da L.O.F.T.J.., bem como o disposto na alínea i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, bem como o nº 5 do artigo 1º da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, uma vez que a 1ª recorrida não se enquadra dentro da categoria dos “sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” - alínea i) do nº 1 do artigo 4º do ETAF – nem tampouco configura um exemplo de pessoa colectiva de direito privado que actue “no exercício de prerrogativas de poder público ou que seja regulada por disposições ou princípios de direito administrativo” - nº 5 do artigo 1º da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro.
Nestes termos, E noutros que V. Exas. suprirão, concedendo a apelação, revogando a sentença recorrida e declarando-se o Tribunal Judicial de Vila Pouca de Aguiar materialmente competente para apreciar a questão em apreço, far-se-á JUSTIÇA.

Não consta dos autos que as rés tenham apresentado contra-alegações.

2-Objecto do recurso.
Sabendo-se que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – arts. 660, 664, 684 e 685-A,nº1, todos do CPC – a questão colocada a esta Relação é a de saber se o Tribunal recorrido é incompetente em razão da matéria para o julgamento do presente litígio.

3-Os factos a considerar são os constantes do relatório desta decisão.

4-Fundamentação de Direito.
A jurisdição encontra-se fraccionada em função da matéria do litígio, ou seja, a par dos tribunais comuns funcionam, entre outros, os tribunais administrativos – cfr .Prof. Anselmo de Castro in Direito Processual Civil Declaratório - Almedina 1982- pág. 34.
As causas que não sejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência do Tribunal comum atento o preceituado nos artigos 66 e 26, respectivamente, do CPC e da LOFTJ na redacção dada pela Lei nº 52/2008, de 28 -08 aplicável aos autos, sendo que a competência se fixa no momento em que a acção é proposta – art. 24,nº1, da LOFTJ.
Nos termos do artigo 212, nº3, da CRP “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”
O artigo 4,nº1, alínea i), do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro alterada pelas Leis nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro e 107-D, de 31 de Dezembro) estabelece que:
“Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto(…):
al.i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Enunciados estes princípios vejamos então qual dos Tribunais é o competente para dirimir o presente conflito se o Tribunal Comum ou o Tribunal Administrativo.
Entendeu o Tribunal recorrido, que, a Lei 67/2007, de 31-12, ao aplicar o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado à primeira ré deu suporte substantivo à aplicação do artigo 4,nº1, alínea i), do ETAF, cuja decisão nos parece acertada, mas vejamos.
Dispõe o artigo 1,nº5, da referida lei que:
“As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” (a referida Lei entrou em vigor no dia 30.01-2008 cfr. art. 6)
O Tribunal dos Conflitos no Acórdão de 15-10-2009 diz que, nos termos do referido normativo, “são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo (..) e que é neste factor indicativo da actividade administrativa que a acção da ré deve ser integrada “ in sítio DGSI-
No caso dos autos, conforme decorre do relatório desta decisão, o autor sofreu um acidente de viação, consubstanciado no facto do veículo do autor ter embatido contra um animal de raça canina quando circulava na Auto-Estrada .., no sentido …/… de que a primeira ré é concessionária.
Importa, por isso, atentar no contrato de concessão celebrado entre a primeira ré e o Estado Português.
O artigo 6 preceitua que: “A concessão é de obra pública e é estabelecida em regime de exclusivo relativamente à Auto-Estrada que integra o seu regime”. Tal como, aliás, decorre da Base III do D-L nº 323-G/2000, de 19 de Dezembro.
E, nos termos do artigo 7.1, “a concessionária deve desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade disponíveis em cada momento (..)”
Assim, a “actividade a desenvolver” pela primeira ré “, no âmbito da concessão em causa, desenvolve-se num quadro de índole pública. A entidade privada concessionária da auto-estrada, é notoriamente chamada a colaborar com a Administração de gestão pública através de um contrato administrativo, pelo que as acções e omissões da ré concessionária se devem integrar e ser reguladas por disposições e princípios de direito administrativo” – cfr Ac. do Tribunal dos Conflitos de 15-10-2009 e tb. Acórdãos desta Relação de 23.03-2009 e de 3-11-2011 e, ainda, da R.L de 12-02-2012 in sítio DGSI-
Daqui resulta, pois, que a ré, entidade privada concessionada, tem a sua actividade regulada por disposições e princípios de direito administrativo e, como tal, compete aos tribunal da Jurisdição administrativa e fiscal a apreciação do litígio em causa, o qual tem por objecto apurar a responsabilidade da concessionária na conservação e manutenção dos sistemas de sinalização e de segurança no troço da A-E .. onde ocorreu o acidente descrito nos autos, sendo que o facto da acção ter sido também intentada contra a segunda ré – entidade privada – a quem incumbia a fiscalização da referida via não afasta a competência dos Tribunais Administrativos por ser contitular da mesma relação jurídica controvertida, nos termos do artigo 10, nº7 do CPTA.
Impõe-se, assim, a confirmação da decisão recorrida e, por conseguinte, o recurso é improcedente.

Decisão
Nestes termos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam:
1º) Julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
2º) Condenar o apelante nas custas – art. 446,nº1, do CPC-

Porto, 16-10-2012
Maria de Jesus Pereira
Henrique Luís de Brito Araújo
Rui Manuel Correia Moreira