Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0716948
Nº Convencional: JTRP00040889
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
DESOBEDIÊNCIA
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200712190716948
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 509 - FLS 42.
Área Temática: .
Sumário: A conduta que, nos termos do nº 2 do art. 387º do Código de Processo Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 48/2007, constituía crime de desobediência foi descriminalizada com a entrada em vigor deste último diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.- RELATÓRIO.

1.- No PA n.º …..05.3TPPRT-A do ..º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Porto, em que são:

Recorrente: Ministério Público.

Recorrido/Arguido: B……….

por sentença de 2006/Abr./19, a fls. 7-10, o arguido foi condenado, pela prática, em 2005/Out./07 e 10, de, respectivamente, um crime de condução de veículo sem habilitação legal do art. 3.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 2/98, de 03/Jan., com referência ao art. 121.º, do Código da Estrada, na pena de 150 dias de multa, com o valor diário de 2 € e de um crime de desobediência do art. 348.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 dias de multa com o valor diário de 2 €, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 180 dias, com o mesmo valor diário.
Por despacho proferido em 2007/Set./18, a fls. 13, foi reformulado o referido cúmulo jurídico, face à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29/Ago., mantendo-se apenas a condenação pelo referido crime de condução sem habilitação legal.
2.- O Ministério Público interpôs recurso desta última decisão em 2007/Out./11, a fls. 16-22, por imposição do Despacho n.º 55/2007, de 10/Out., do Sr. Procurador-Geral Distrital do Porto, pugnando pela revogação do mencionado despacho, concluindo que:
1.º) O anterior art. 387.º, n.º 2 do C. P. Penal previa como crime de desobediência a falta do arguido, que notificado, para comparecer ante o Ministério Público, o não fizesse;
2.º) O actual art. 385.º, n.º 3, al. a) não prevê a cominação de qualquer crime de desobediência para essa mesma situação, mas apenas a advertência de que o julgamento se efectuará mesmo que o arguido não compareça, sendo nesse caso representado pelo seu defensor;
3.º) Em todo o caso, nas hipóteses anteriores à vigência do novo código, o crime do art. 348.º do Código Penal mantém-se, não se tendo operado qualquer descriminalização;
4.º) A decisão recorrida viola, por errada interpretação e aplicação, o disposto no art. 387.º, n.º 2, do C. P. Penal, na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29/Ago., 348.º, do C. Penal e 385.º, n.º 3, al. a) do C. P. Penal, na redacção actual e vigente;
3.- O despacho recorrido foi sustentado e nesta instância o ilustre PGA apôs o seu visto, tendo-se colhido os vistos legais, nada obstando a que se conheça do mérito deste recurso.
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II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1.- CIRCUNSTANCIAS A CONSIDERAR
1.- O arguido, após ter sido interceptado pela PSP, por conduzir um veículo automóvel sem estar legalmente habilitado a fazê-lo, foi notificado em 2005/Out./07, pelas 3H25, para comparecer nos serviços do Ministério Público, indicados na sentença em causa, com a advertência de que, não o fazendo, incorreria num crime de desobediência.
2.- Não obstante, o arguido, não compareceu nos referidos serviços, nem justificou a sua falta.
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2.- DO DIREITO.
A única questão sujeita a apreciação consiste em saber se, com a entrada em vigor em 2007/Set./15, da Reforma do Código Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 29/Ago. [art. 7.º], a conduta do arguido, ao não comparecer nos serviços do Ministério Público e que motivaram a sua condenação pelo crime de desobediência, foi ou não descriminalizada.
E isto porque, para efeitos de impossibilidade de audiência imediata no âmbito do processo sumário, anteriormente se preceituava no art. 387.º, n.º 2 do Código Processo Penal que “Se a detenção ocorrer fora do horário de funcionamento normal da secretaria judicial, a entidade policial que tiver procedido à detenção sujeita o arguido a termo de identidade e residência, liberta-o e notifica-o para comparecer perante o Ministério Público no 1.º dia útil seguinte, à hora que lhe for designada, sob pena de, faltando, incorrer num crime de desobediência. …” – sendo nosso o negrito.
Este segmento normativo foi introduzido pela Reforme de 1998, através da Lei n.º 59/98, de 25/Ago., com o propósito genérico de rentabilizar as soluções processuais típicas da pequena e da média criminalidade – neste sentido Maia Gonçalves, no seu “Código Processo Penal – Anotado” (1999), p. 689.
Actualmente a constatação da impossibilidade de audiência imediata, por parte do órgão de polícia criminal, encontra-se regulamentada no art. 385.º, n.º 3, nos seguintes termos:
“No caso de libertação nos termos dos números anteriores, o órgão de polícia criminal sujeita o arguido a termo de identidade e residência e notifica-o para comparecer perante o Ministério Público, no dia e hora que forem designados, para ser submetido:
a) A audiência de julgamento em processo sumário, com a advertência de que esta se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor; ou
b) A primeiro interrogatório judicial e eventual aplicação de medida de coacção” – sendo mais uma vez nosso o negrito.
Isto significa, pura e simplesmente, que na actual estruturação do processo sumário desapareceu a cominação do crime de desobediência para a falta de comparência do arguido nos serviços do Ministério Público, que se encontrava notificado para o fazê-lo.
Em sua substituição passou a existir a cominação de que faltando o arguido, nas mesmas condições, proceder-se-á ao seu julgamento mesmo na sua ausência, passando, para o efeito, o mesmo a estar representado pelo seu defensor.
A par desta alteração, foi igualmente eliminada a previsão anteriormente contida no art. 387.º, n.º 4, de que “Se o arguido não comparecer, é lavrado auto de noticia, o qual será entregue ao Ministério Público e servirá de acusação pelo crime de desobediência, que será julgado conjuntamente com os outros crimes, se o processo mantiver a forma sumária”.
Houve assim um acentuado “abrandamento” das consequências, no âmbito do processo sumário, relativamente à conduta faltosa e injustificada do arguido perante os serviços do Ministério Público, quando tinha sido notificado para aí comparecer por parte do órgão de polícia criminal.
Por sua vez, o crime de desobediência da previsão do art. 348.º, n.º 1 do Código Penal pune como tal “Quem faltar à obediência a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, .. se: uma disposição legal cominar, no caso a punição da desobediência simples” al. a), ou então “Na ausência de uma disposição legal, a autoridade ou funcionário fizerem a correspondente cominação” [al. b)].
Mediante este ilícito pretende tutelar-se a autonomia intencional do Estado, que corresponde ao interesse em que as ordens dos seus agentes ou os mandados legítimos emanados por autoridade estadual sejam obedecidos – veja-se o “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. III (2001), p. 350.
Trata-se, porém, de um crime com tamanha amplitude que deve ser tendencialmente restringido às situações expressamente previstas em normativo legal, não podendo estar dependente do livre arbítrio de qualquer autoridade ou funcionário, sob pena de tratar-se de uma norma penal em branco de cariz inconstitucional, por ser violadora do princípio da legalidade, contido no art. 29.º, n.º 1 da C. Rep. – “Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior”.
Também a natureza fragmentária do direito penal impõe essa restrição, na medida em que, segundo o art. 18.º, n.º 2 da C. Rep., “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Daí que se conceba o segmento normativo do art. 387.º, n.º 2 do Código Processo Penal introduzido pela reforma de 1998, como concretizador de uma das condutas de desobediência integradoras no art. 348.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
Trata-se, por isso, de uma norma processual penal de cariz material que, no dizer do Ac. desta Relação de 2007/Out./31[1], proficuamente fundamentado e divulgado em www.dgsi.pt, a que se adere, “condicionava a efectiva responsabilidade penal”, pelo que “por ter desaparecido a referida cominação, deixa de subsistir razão para a censurabilidade da conduta em causa”, deixando tal conduta de ser punida.
Nesta conformidade, teremos forçosamente de concluir que, como se sumariou neste aresto, “A conduta que, nos termos do nº 2 do art. 387º do Código de Processo Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 48/2007, constituía crime de desobediência foi descriminalizada com a entrada em vigor deste último diploma”.
Como tal e ao abrigo do disposto no art. 2.º, n.º 2 do Código Penal, deverá aplicar-se a lei nova que é mais favorável ao arguido, o que fez o despacho recorrido, o qual e por isso mesmo, não merece qualquer censura.
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III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente o presente recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.

Não é devida tributação.

Notifique.

Porto, 19 de Dezembro de 2007
Joaquim Arménio Correia Gomes
Manuel Jorge França Moreira

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[1] Recurso 3692/07-1, relatado pela Des. Maria do Carmo Dias.