Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0850725
Nº Convencional: JTRP00041203
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200804070850725
Data do Acordão: 04/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 334 - FLS 185.
Área Temática: .
Sumário: I - A denúncia extemporânea do contrato de arrendamento para habitação exercida pelo arrendatário, não pode ser justificada pelo exercício do direito de resolução do mesmo por ausência de referência à respectiva e exigível licença de utilização, propondo-se o arrendatário exercer tal direito por simples via exceptiva na contestação da acção (sem o competente pedido formulado em reconvenção).
II - Mesmo sem esta menção o contrato de arrendamento não enferma de invalidade
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, no Tribunal da Relação do Porto

1 – B………. instaurou, em 15.03.07, no Tribunal Cível da comarca do Porto (com distribuição ao .º Juízo/.ª secção), acção sumária contra C………. e D………., pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe:
/
--- A quantia de € 4.592,36, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;
--- Todas as quantias, ainda não apuradas, que venham a ser devidas por facturas referentes ao consumo de água e electricidade, entre outras, efectuadas, no arrendado, entre 01.10.06 e 31.01.07; e
--- Todas as quantias que venham a ser reclamadas à A., em consequência de o 1º R. ter atirado colchões e lixo para o quintal dos vizinhos.
Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência, e no que, ora, interessa, que o 1º R. denunciou o contrato de arrendamento habitacional celebrado, na qualidade de arrendatário, com a A.-senhoria, sem observância do período de duração mínima do mesmo, bem como da data em que a denúncia foi eficaz, nos termos legais e exarados no próprio contrato, em consequência do que está obrigado a pagar-lhe o montante global de € 3.700,00, correspondente às rendas vencidas de Fevereiro a Julho de 2007 – de € 600,00 mensais –, aditadas de € 100,00 da renda vencida em Dezembro de 2006 e que o R. não pagou à A.
Na respectiva contestação, pugnou o R.pela improcedência da acção e sua inerente absolvição do pedido, “por ter resolvido o contrato dos autos, no exercício de um direito que lhe assistia”, devendo, ainda, ser notificada a Câmara Municipal ………., para efeito de aplicação à A. da coima prevista no nº5 do art. 5º do DL nº 160/06, de 08.08.
Posição esta que fundamentou – também no que, ora, interessa – no facto de o contrato de arrendamento omitir a referência à existência da correspondente licença de utilização, não se encontrando, documentalmente, provado, por outro lado, que a construção do edifício que integra o arrendado tivesse sido levada a cabo em data anterior a 07.08.1951.
Após audiência preliminar em que a A., no exercício do contraditório, arredou as consequências implícitas na contestação do R., por inverificação do circunstancialismo que as suporta, foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente e irreclamada enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.).
Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 03.10.07) douta sentença que – no que, ora, interessa –, julgando procedente a acção, condenou o R. a pagar à A. a peticionada quantia de € 3.700,00, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Inconformado, apelou o mencionado R., visando a revogação da sentença, conforme alegações culminadas com a formulação destas conclusões:
/
A. Dos contratos de arrendamento para habitação celebrados na vigência do DL 160/2006, de 8.8. [entrado em vigor em 9.8.] deve constar a existência de licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente, ou quando a construção do prédio for anterior a Agosto de 1951, deve-lhes ser anexo documento autêntico que demonstre a data da construção; a inobservância destas disposições confere ao inquilino o direito de resolver o contrato.
B. O exercício deste direito - sendo que nos autos não consta qualquer outra causa de cessação do contrato - impede o exercício, pelo senhorio, do direito de receber as rendas respeitantes ao período do contrato não cumprido.
C. A acção intentada pelo senhorio visando o recebimento destas rendas é o momento processual adequado para que o inquilino, por excepção, faça valer aquela resolução.
D. Decidindo como o fez, a Meritíssima Juíza “a quo” violou os artigos 2º e 5° do DL 160/2006, de 8.8..
E. Deve, pois, ser proferido acórdão que, revogando a decisão recorrida, absolva os RR. do pedido, na parte impugnada.
Contra-alegando, defende a apelada a manutenção do julgado.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
*
2 – Na sentença apelada e no que, ora, interessa, tiveram-se por provados os seguintes factos (os quais, por inimpugnados e na ausência de fundamento legal para a respectiva alteração, temos por definitivamente fixados):
/
1. A A. é legítima co-proprietária do prédio urbano sito na ………., ns.º … e …, freguesia de ………., concelho do Porto, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 1074/20000329 e inscrito na matriz sob o artigo urbano 6840 ( A);
2. No dia 1 de Outubro de 2006, foi celebrado, entre a A., na qualidade de SENHORIA, e o 1º R., na qualidade de ARRENDATÁRIO, por escrito, um contrato de arrendamento, em que a A. deu de arrendamento e o 1º R. tomou de arrendamento, o r/c do prédio identificado em A), com entrada pelo n.º 192, incluindo o quintal, com exclusão do pátio situado por baixo das escadas de acesso ao quintal (B);
3. A. e R. convencionaram o prazo de 5 (cinco) anos para a duração do arrendamento, com início a partir do dia 6 de Outubro de 2006, destinando-se exclusivamente à habitação do 1º R. (C);
4. Foi acordado fixar a renda mensal em € 600,00 (seiscentos euros), a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito, à A., por depósito em conta da Caixa Geral de Depósitos, cujo NIB é ………………… (D);
8. No dia 31 de Janeiro de 2007, o 1º R. comunicou à A. que cessava o contrato de arrendamento, desocupou o arrendado e restituiu as chaves do mesmo (H);
9. O 1º R. não pagou a totalidade da renda vencida em Dezembro de 2006, faltando liquidar € 100,00 (cem euros) (I);
11. O prédio arrendado não tem licença de utilização (K);
12. O prédio em causa está inscrito na matriz urbana sob o artº 6840, na freguesia de ………. e proveio do artigo 1346 da freguesia de ………. cuja inscrição é anterior a 1951.
*
3 – Perante o teor das conclusões formuladas pelo apelante e tendo em consideração o preceituado nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº1, ambos do CPC, na pregressa e,aqui, aplicável redacção, a questão a apreciar e decidir, no âmbito da presente apelação, resume-se a saber se aquele pode contrariar as consequências jurídicas da extemporânea denúncia por si exercida do contrato de arrendamento habitacional em que detinha a qualidade de arrendatário, contrapondo-lhe o exercício do direito de resolução do mesmo contrato, por ausência de referência, no mesmo, à respectiva e exigível licença de utilização, propondo-se o arrendatário exercer tal direito, por simples via exceptiva, na contestação da acção.
Apreciemos, pois, tal questão, cujas novidade e configuração lhe conferem assinalável complexidade.
/
4 – I – Nos termos do disposto no art. 2º, al. d) do DL nº 160/06, de 08.08 – que aprovou os elementos do contrato de arrendamento e os requisitos a que obedece a sua celebração – “Do contrato de arrendamento urbano, quando deva ser celebrado por escrito, deve” (além do mais) “constar…a existência da licença de utilização, o seu número, a data e a entidade emitente, ou a referência a não ser aquela exigível, nos termos do art. 5º”.
Por seu turno, nos termos do art. 1069º do CC, introduzido pelo art. 3º da Lei nº 6/2006, de 27.02, que aprovou o NRAU – Novo Regime do Arrendamento Urbano – “O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito desde que tenha duração superior a seis meses”.
Retenha-se, ainda, que: De acordo com o preceituado no art. 4º do citado DL nº 160/06, “A falta de algum ou alguns dos elementos referidos nos arts. 2º e 3º não determina a invalidade ou a ineficácia do contrato, quando possam ser supridas nos termos gerais e desde que os motivos determinantes da forma se mostrem satisfeitos”. Acrescentando-se, no imediato art. 5º, que: “Só podem ser objecto de arrendamento urbano os edifícios ou suas fracções cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestada pela licença de utilização (1)”… “O disposto no nº anterior não se aplica quando a construção do edifício seja anterior à entrada em vigor do Regulamento Geral das Edificações Urbanas” (RGEU) “, aprovado pelo DL nº 38 382, de 07.08.51, caso em que deve ser anexado ao contrato documento autêntico que demonstre a data de construção (2)”…”A inobservância do disposto nos nº/s 1 a 4 por causa imputável ao senhorio determina a sujeição do mesmo a coima não inferior a um ano de renda, observados os limites legais estabelecidos pelo DL nº 433/82, de 27.10, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável (5)…”Na situação prevista no nº5, o arrendatário pode resolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais (7)”… “O arrendamento para fim diverso do licenciado é nulo, sem prejuízo, sendo esse o caso, da aplicação da sanção prevista no nº5 e do direito do arrendatário à indemnização (8)”.
Tem de, igualmente, prestar-se atenção ao preceituado no art. 1098º, nº/s 1 e 2, do CC, introduzido pelo art. 3º da mencionada Lei nº 6/2006, de 27.02, onde se prescreve que: “O arrendatário pode impedir a renovação automática mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a 120 dias do termo do contrato (1) Após seis meses de duração efectiva do contrato, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a 120 dias do termo pretendido do contrato, produzindo essa denúncia efeitos no final de um mês do calendário gregoriano (2)” Faça-se, aliás e aqui, um àparte para observar que este transcrito regime foi, quase “ipsis verbis”, recebido e adoptado pelos sujeitos contratuais, na al. b) da cláusula 4ª.
Finalmente, deve atentar-se nos arts. 1094º e 1095º, ambos do CC, introduzidos pelo sobredito art. da Lei nº 6/2006, dizendo-se naquele que “O contrato de arrendamento urbano para habitação pode celebrar-se com prazo certo ou por duração indeterminada (1)” e prescrevendo-se neste que “O prazo deve constar de cláusula inserida no contrato (1)” e que “O prazo referido no nº anterior não pode, contudo, ser inferior a 5 nem superior a 30 anos, considerando-se automaticamente ampliado ou reduzido aos referidos limites mínimo e máximo quando, respectivamente, fique aquém do primeiro ou ultrapasse o segundo (2)”.
/
II – Aproximando as transcritas disposições legais da relevante factualidade provada e supra elencada, desde logo se impõe acentuar que o questionado contrato de arrendamento não enferma de invalidade: não só os elementos factuais assentes não consentem uma tal conclusão, como também, e sobretudo, porque o direito de resolução do contrato, conferido ao arrendatário pelo nº7 do art. 5º do DL nº 160/06, de 08.08, não poderia ser reconhecido num contrato que padecesse de tal vício originário. Outra não sendo, aliás, a posição, a propósito, sustentada pelo Prof. Menezes Leitão[1] e pelo Cons. Pinto Furtado[2]. Afigurando-se-nos lícito extrapolar da lição ministrada por este último que as razões de interesse e ordem pública subjacentes à cominação da nulidade contratual são muito mais indeclináveis nos casos em que um prédio ou sua fracção são afectados a finalidade diversa da habitacional, estando licenciados apenas para esta, que na situação de simples falta, por causa imputável ao senhorio, de licença de utilização de prédio destinado a habitação e, contratualmente, afecto a este mesmo fim.
/
III – Mas, não enfermando da mencionada nulidade o questionado contrato de arrendamento, será que, na situação que emergiu provada nos autos, ao R.-apelante assistia o direito de, na contestação da acção (24.05.07), proceder à resolução daquele, à sombra do preceituado no art. 5º, nº7 do referido DL nº 160/06?
Com respeito pela opinião contrária, convicta e afoitamente, responderemos pela negativa, na senda do sustentado na douta sentença apelada.
Desde logo, porque, como nesta última se observou e resulta do cotejo das correspondentes prescrições legais com a factualidade provada, não se mostra preenchida a respectiva previsão legal quer quanto a indiscutível inobservância do, objectivamente, estatuído em tais comandos legais, quer, sobretudo, quanto a imputação de tal hipotizada inobservância a causa radicada e dimanada da senhoria.
Depois, porque, na lição do saudoso e insigne Mestre Antunes Varela[3], por denúncia se deve entender “a declaração feita por um dos contraentes, em regra com certa antecedência sobre o termo do período negocial em curso (…), de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou fixado por tempo indeterminado”[4]. Sendo que aquela “extingue a relação obrigacional complexa derivada do contrato cuja renovação ou continuação ela impede… Denunciado o arrendamento, cessam, a partir do momento em que a declaração opera os seus efeitos, as obrigações, tanto do locador como do locatário”…
Assim, estando em causa uma declaração receptícia, como, “una voce”, é entendido, o autor de tal declaração negocial – o arrendatário, no caso em apreço – ficou perante a mesma vinculado, logo que a mesma chegou ao poder da senhoria-destinatária ou dela foi conhecida (art. 224º, nº1, do CC). Ou seja, no caso dos autos, a declaração de denúncia do contrato, muito embora reportada, legal e contratualmente, a 30.07.07, tornou-se eficaz e inarredável para o arrendatário seu autor, no sobredito momento, o qual ocorreu muito antes desta última data e mesmo de 24.05.07 (data da apresentação da contestação), como a própria instauração da presente acção e respectivos termos, à saciedade, revelam.
Finalmente, porque, muito embora o exercício do direito de resolução contratual possa possa ser levado a cabo por via judicial ou extrajudicial (art. 436º, nº1, do CC), não pode prescindir-se das vias judiciais quando a contraparte não aceita a resolução ou contesta os seus efeitos (Neste sentido, designadamente, os Profs. Antunes Varela – “Ob. citada”, pags. 276/277 – e Vaz Serra, em anotação ao Ac. do STJ, de 03.05.68 – “R.L.J., Ano 102º”, pags. 167 e segs.).
De tudo decorrendo, pois, que, para além de quanto ficou considerado, os efeitos da questionada resolução contratual só poderiam ser tomados em consideração caso aquela, apesar de invocada em via meramente exceptiva, na contestação, tivesse, igualmente, sido objecto de correspondente pedido reconvencional direccionado à respectiva declaração judicial.
Improcedendo, assim, integralmente, as conclusões formuladas pelo apelante.
*
5 – Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, em consequência e na parte impugnada, a douta sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
/

Porto 07.04.08
José Augusto Fernandes do Vale
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira

_______________________
[1] In “Arrendamento Urbano”, 3ª Ed., pags. 24
[2] In “Manual de Arrendamento Urbano”, 4ª Ed. Actualizada – Maio 2007 – Vol. I, pags. 401.
[3] In “Das Obrigações em Geral”, 7ª ed., Vol. II, pags. 281
[4] Hoje, abrangendo, também, a hipótese contemplada na 1ª parte do nº2 do art. 1098º do CC, na sobredita redacção, o que merece a frontal oposição e crítica do Cons. Pinto Furtado (in “Obra citada”, Vol. II, pags. 907/909).