Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1619/06.1PBMTS.P2
Nº Convencional: JTRP00043964
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: CASO JULGADO PENAL
LIMITES DO CASO JULGADO
PARTE CIVIL
Nº do Documento: RP201005191619/06.1PBMTS.P2
Data do Acordão: 05/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 639 FLS. 62.
Área Temática: .
Sumário: I- Não tendo o MºPº nem o arguido recorrido quanto à parte da decisão que condenou o arguido atribuindo-lhe culpa exclusiva na produção do acidente, a sentença transitou em julgado quanto à matéria penal.
II- Transitada em julgado a sentença quanto à matéria penal, o recurso das partes civis só é admissível na medida em que não contenda com a matéria de facto que suporta a responsabilidade criminal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso penal
no processo nº 1619/06.1PBMTS.P2


Nos autos de processo comum (tribunal singular), nº1619/06.1PBMTS.P2 do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos foi em 4/11/2009 proferida sentença que decidiu:
«condenar o arguido B……………, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo art. 148º, nº 1, do CP, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, substituída, nos termos do art. 44º C.Penal, por igual tempo de multa (180 dias), à taxa diária de € 4,00, num total de € 720,00.
Da mesma forma, julgando parcialmente procedente, por provado, o pedido cível formulado nos autos, condeno ainda a demandada C………….. a pagar à ofendida/demandante, D…………….:
- a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia de 12,000 €, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da presente decisão e até efectivo e integral pagamento;
- a título de indemnização por danos patrimoniais, desde já, a quantia de € 60,90, acrescido de juros de mora desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento; e
- o montante que se vier a apurar relativo ao lucro perdido relativo à perda da capacidade de ganho - IPP e bem assim às perdas salariais de que não haja sido ressarcida relativas aos 5 dias em que esteve internada desde o dia do acidente e período de tempo entre o termo da licença de maternidade ocorrido a 25.02.2007 e o início da prestação de trabalho após termo da baixa médica, a liquidar ulteriormente.»
Inconformada com esta decisão dela veio interpor recurso a demandada civil C…………., S.A., extraindo-se das conclusões do seu recurso em síntese os seguintes argumentos:
O local do embate situa-se na área do entroncamento entre as Ruas Óscar da Silva e da Bataria, e mais próximo do seu início, atento o sentido de marcha do veículo DT;
Comportando a Rua da Bataria dois sentidos de marcha, pelo local do embate e posicionamento dos veículos após o acidente, impõem-se concluir que o veículo RX não entrou na Rua Óscar da Silva, onde a demandante pretendia mudar de direcção para a esquerda, do lado destinado ao seu sentido de circulação, mas a invadir o lado oposto, em violação do disposto no art.º 44º do Código da Estrada;
Por outro lado, pretendendo a demandante penetrar e proceder à travessia da Rua Óscar da Silva em relação à qual se interpunha o sinal de Stop existente na Rua da Bataria, não lhe bastava, tão só, parar o seu veículo no sinal de Stop;
Na verdade, teria ainda que percorrer onze metros desde o local onde se encontrava o sinal de Stop até à intersecção com a Rua Óscar da Silva, só aqui dispondo de visibilidade suficiente para sul, idêntica à que possuía o condutor do DT;
Deveria a demandante, ainda em obediência ao sinal de Stop imobilizar o seu veículo na intersecção das vias em questão, o que não resultou provado, só lhe sendo permitido reiniciar a sua marcha depois de se certificar que o poderia fazer em segurança e sem se interpor na linha de circulação do DT a transitar na via prioritária, a Rua Óscar da Silva;
Uma vez que o arguido, ao chegar ao entroncamento, avistou o RX a iniciar a sua marcha vindo da Rua da Bataria, é forçoso concluir que, da mesma forma, a demandante podia e devia avistar o DT a chegar ao entroncamento quando iniciou a sua marcha vinda da Rua da Bataria, sendo idêntica a distância em que era possível a qualquer dos condutores avistar o outro veículo;
A demandante iniciou a sua marcha vinda da Rua da Bataria, e invadiu a faixa de rodagem da Rua Óscar da Silva quando para si já era visível o DT a chegar ao entroncamento;
Tendo a colisão ocorrido sensivelmente no eixo da via, a parte do RX embatida pela frente do DT, concretamente a porta do lado esquerdo, permite concluir que, pelo menos metade do RX se encontrava a ocupar a meia faixa direita da faixa de rodagem da Rua Óscar da Silva, atento o sentido sul-norte, é inquestionável que o RX cortou a linha de marcha do DT;
Com o seu procedimento, a demandante violou o dever que lhe era imposto de ceder a prioridade que competia ao DT, em consequência do que este, a circular na respectiva hemi-faixa direita da Rua Óscar da Silva, colidiu com a frente no lado esquerdo, metade da frente, do RX;
Resultou ainda provado que o DT circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 50 km/h, velocidade excessiva e transgressional, não só porque a via se situa no interior de uma localidade, mas ainda porque a mesma formava no local um entroncamento, o que impunha ao arguido o dever de reduzir especialmente a velocidade;
Sendo censurável o comportamento de ambos os condutores, o arguido e a demandante, nomeadamente a violação da observância pela demandante do sinal de Stop que lhe impunha parar e ceder a passagem a todos os veículos que transitavam na via prioritária, fazendo o enquadramento jurídico da factualidade apurada, é indiscutível que o juízo de censura a fazer à demandante terá que ser superior ao do arguido, afigurando-se como justa e equitativa uma divisão de culpa de 75% para a demandante e 25% para o arguido;
Com base na factualidade apurada o Tribunal "a quo" fixou em € 12.000,00 a indemnização a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante/ ofendida, que é excessiva;
No exame médico-legal, efectuado com recurso a Tabela Nacional de incapacidades em Direito Civil aprovada pelo D.L. n.º 352/07 de 13.10, foi arbitrada em 2 pontos a desvalorização sofrida pela demandante, e fixável em grau 4, numa escala ascendente de 1 a 7, o "quantum doloris" por ela sofrido;
No momento da prolação da douta decisão recorrida já se encontrava em vigor a Portaria n.º 377/2008 de 26 de Maio que fixa critérios e valores orientadores para a indemnização do dano corporal;
De acordo com a referida Portaria, e considerando a idade da demandante à data do acidente, 33 anos, e tendo em conta o coeficiente de desvalorização de 2 pontos que lhe foi fixado, é de € 749,00 a € 925,00 a compensação a atribuir pelo dano biológico;
Prevê, ainda, aquela Portaria, uma compensação por danos morais complementares, de € 20,00 a € 30,00 por dia de internamento, bem como uma compensação até € 800,00 pelo "quantum doloris" de grau 4;
Tendo a demandante sofrido um internamento hospitalar de 5 dias, terá direito a uma compensação de € 100,00 a € 150,00, e tendo-lhe sido fixado o grau 4 no quantum doloris, a compensação prevista, a este título, é de € 800,00;
Assim, e de acordo com a citada Portaria, situa-se entre € 1.649,00 e € 1.875,00 a compensação devida a título de danos patrimoniais, pelo dano biológico e danos morais complementares;
Para além daqueles danos contemplados no exame médico-legal, resultaram para a demandante, de acordo com a factualidade provada, outros danos morais que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito, e que não estão contidos nos critérios e valores orientadores consignados na Portaria n.º 377/2008 para indemnização dos danos morais;
Para a fixação dos montantes compensatórios a título de danos não patrimoniais a lei manda atender a juízos de equidade – artigos 494.º e 496.º do Cód. Civil – o que implica ter-se em conta critérios de proporção, adequação às circunstâncias, objectividade e razoabilidade, que são critérios comuns a todos os juízos de equidade;
Ora, tendo em conta a equidade e a Jurisprudência envolvente, os danos morais sofridos pela demandante devem ser compensados, no seu conjunto, em montante não superior a € 5.000,00, o qual deve ser reduzido em 75% correspondente à proporção da culpa da própria demandante na produção do acidente;
A douta decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 29.º e 44º do Cód. da Estrada, art. 3.º n.º 2 e art. 21.º B 2 do Regulamento do Cód. da Estrada, e artigos 483.º, 487.º, 494.º e 570.º, todos do Código Civil.
Ao recurso responderam em primeira instância a demandante civil e o M. Público, ambos pugnando pela manutenção da decisão recorrida que consideram legalmente fundamentada e ajustada aos factos dados como provados.
O presente recurso foi admitido por despacho constante de fls. 617.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido de concordância com as respostas do M. Público em primeira instância e da demandante, acrescentando que os factos provados apontam para a conclusão de que a causa exclusiva do acidente dos autos foi a velocidade a que circulava o arguido quando ocorreu a colisão.
Pelo exposto manifestou-se no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do C.P.P., sem que tivesse havido resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir!

2.Fundamentação
A – Circunstâncias com interesse para a decisão.

Passamos de seguida a transcrever os factos provados e respectiva motivação, constantes da sentença recorrida:
« Factos provados
No dia 6.09.2006, pelas 20h, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-DT, pela Rua Óscar da Silva, em Leça da Palmeira, nesta comarca, no sentido sul-norte.
Seguia a uma velocidade não concretamente apurada mas superior a 50 Km/H.
Ao chegar ao entroncamento daquela artéria com a Rua da Bataria e, ao avistar o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-RX, conduzido por D………….. que iniciava a sua marcha vinda da Rua da Bataria, depois de ter parado no sinal de Stop ali existente, o arguido accionou o travão, deixando no solo um rasto de travagem de 22,40 m – com o esclarecimento que se trata do rasto de travagem visível nas fotografias de fls. 272/273/274/275 (e anteriormente correspondentes fotografias juntas a fls. 26).
Consequentemente, o arguido veio a embater com a frente do veículo que conduzia no lado esquerdo, metade da frente do veículo ..-..-RX.
Do embate resultaram para além de cefaleias e náuseas, hematoma frontal, sonolência, pupilas fotorreactivas, sendo a esquerda ligeiramente maior que a direita, perda de definição de substância branca/cinzenta, apresentando má definição dos sulcos corticais cerebrais e das valas silícias, sugestivas de edema difuso.
O arguido actuou livre, voluntária e conscientemente.
O arguido devia e poderia ter tido outro comportamento que obstasse ou contribuísse para obstar ao descrito embate e suas consequências.
Circulava desatento e a uma velocidade desadequada às condições da via e intensidade do trânsito que se fazia sentir.
À data dos factos a ofendida/demandante estava grávida de 35 semanas.
Em consequência do embate sentiu intensas dores na região occipital e região sagrada e bem assim sentiu intensos movimentos fetais
Para além de ter experimentado náuseas, cefaleias, hematoma frontal.
Foi realizado TC craneoencefálico com protecção abdominal e diagnosticada perda de definição de substância branca/cinzenta e má definição de sulcos corticais sugestivas de edema difuso.
Tais lesões determinaram o internamento da requerente durante o período de 5 dias no departamento de obstetrícia, para vigilância materno fetal e TCE minor.
O feto sofreu diversas insuficiências cardíacas o que catalizou a ansiedade da requerente com a possibilidade da perda do bebé.
Foi diagnosticada à ofendida/demandante gravidez de risco, o que motivou, até ao parto, ocorrido em 25.09.2006 que permanecesse imobilizada na sua habitação por 19 dias.
Bem como, por conseguinte, a total incapacidade para o trabalho.
A ofendida/demandante tem uma parte variável da retribuição que tem por referência as vendas por si promovidas (com o esclarecimento que a ofendida antes do acidente chegava a ganhar cerca de € 1.400,00 de comissões).
Como estava grávida a ofendida não pôde tomar qualquer medicação para as dores até ao parto e meses seguintes, uma vez que amamentou o bebé, o que catalisou de forma severa as suas dores e os incómodos.
Tanto mais que até á data do acidente a gravidez tinha decorrido sem qualquer complicação, de forma tranquila.
Depois, entre a data do acidente e o parto, a ofendida sentiu imensas dificuldades em dormir ou descansar, tamanhas eram as dores e desconforto relacionado com as dores ao nível da coluna cervical.
Depois do parto, a requerente viu-se impedida, nos primeiros 3 meses, de assumir plenamente a maternidade, isto porque continuou com fortes dores nas zonas lombar e cervical, acompanhadas do adormecimento dos membros inferiores.
O que a impedia de amamentar de forma conveniente e cómoda o bebé, de pegá-lo ao colo durante longos períodos de tempo e de efectuar todas as outras rotinas relativas ao recém-nascido, o que originou que fosse o marido a suportar todas as situações, levando-a mesmo a pedir ajuda a familiares e amigos.
A ofendida/demandante permaneceu ainda incapacitada para o trabalho após o términos da licença de maternidade (25.01.2007), até ao último dia do mês de Fevereiro de 2007.
Continua com fortes dores a nível lombar com irradiações para o membro inferior direito (adormecimento da perna) que lhe perturbam o sono, a impedem de estar muito tempo sentada e que a incomodam na condução.
Exercendo funções comerciais, necessita conduzir diariamente centenas de quilómetros, o que agrava substancialmente a sua situação (com o esclarecimento que por força do acidente foi reestruturada a zona de venda que era atribuída à ofendida e que passou a ser inferior e partilhada com mais uma vendedora).
Até à data do acidente a ofendida era uma pessoa saudável sem qualquer problema ao nível da coluna cervical.
Durante o período de recobro, entre 18.10.2006 e 22.11.2006, a requerente teve necessidade de se submeter a sessões de fisioterapia, bem como estar presente em consultas médicas.
A ofendida utilizava na altura do acidente umas meias ortopédicas no valor de € 60,90 que ficaram inutilizadas.
Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 5070/8149081, havia sido transferida para a demandada cível/C…………….. SA a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-DT.
A faixa de rodagem da Rua Óscar da Silva que permite a circulação de veículos nos dois sentidos de trânsito, tem a largura de cerca de 6,85 m.
O DT circulava nas circunstâncias de tempo e lugar referidos pela respectiva hemi-faixa direita de rodagem atento o seu sentido de marcha.
A demandante conduzia o XR por conta, no interesse e direcção efectiva da sua proprietária – E…………. Lda.
Para a qual exercia a sua actividade profissional por contrato de trabalho subordinado, mediante pagamento da respectiva retribuição.
A F…………., seguradora do veículo conduzido pela demandante, o RX, enviou ao arguido uma carta em que concluiu pela perda total do veículo conduzido pelo arguido, atribuindo a título de valor venal € 2.000,00 – tudo conforme se alcança da cópia junta a fls. 156, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Provou-se ainda que
A ofendida/Demandante auferia os salários de referência e efectuou os descontos respectivos na Segurança Social entre Setembro de 2006 e Fevereiro de 2007 que se encontram melhor discriminados na informação de fls. 178 e 179 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
A ofendida recebeu ainda o subsídio de maternidade no valor de € 3.189’28 mediante cheque sacado sobre o Banco Millenium BCP, emitido a 20.10.2006.
Por força do acidente e em consequência das lesões sofridas a ofendida/demandante sofreu uma incapacidade temporária geral total de 5 dias (de 6.09.2006 a 10.09.2006); uma incapacidade temporária profissional total de 175 dias (de 6.09.2006 a 27.02.2007) e uma incapacidade temporária geral parcial de 170 dias (de 11.09.2006 a 27.02.2007).
As sequelas acima descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, implicando esforços suplementares; tendo a demandante ficado a padecer de uma incapacidade permanente geral fixável em 2 pontos segundo a tabela Nacional de incapacidades, num coeficiente de 1 a 3 pontos.
Por força do seguro celebrado pela entidade patronal da ofendida/demandante com a F………….. e tendo sido considerado o embate/acidente acima descrito como acidente de trabalho, a referida Companhia de Seguros providenciou pelo pagamento de salários nos períodos compreendidos entre 11.09.2006 e 27.10.2006; 28.10.2006 e 22.11.2006; 23.11.206 e 27.12.2006; 28.12.2006 e 31.12.2006; 1.01.2007 e 29.01.2007 e 30.01.2007 e 8.02.2007, num valor total de € 3.504’29, àquela trabalhadora por conta/vendedora da E………….. Lda e melhor discriminados a fls. 296, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
A E…………… declarou para efeitos de IRS, no ano de 2006, um rendimento ilíquido da ofendida de € 34.556,94 e no ano de 2007, um rendimento ilíquido de € 37.644,23.
O arguido apercebeu-se do veículo conduzido pela ofendida/demandante quando o RX já se encontrava, pelo menos, com a frente virada para sul na Rua Óscar da Silva atento o sentido de marcha que pretendia tomar.
Depois de parar junto do sinal Stop na Rua da Bataria a ofendida/demandante circulou na perpendicular ao eixo da via da Rua Óscar da Silva e só depois desviou/virou o RX para o sentido sul que pretendia tomar.
Quando a ofendida/demandante se apercebe do veículo conduzido pelo arguido que surge a fazer barulho da travagem, descontrolado e em direcção a si, ainda se tentou desviar o mais que pode para a sua direita, já na Rua Óscar da Silva.
Ao ser embatido pelo veículo conduzido pelo arguido o RX ficou em cima do passeio da Rua Óscar da Silva na posição constante da fotografia junta a fls. 26.
Por seu turno, o veículo conduzido pelo arguido ficou imobilizado na mesma Rua Óscar da Silva, na posição constante das fotografias juntas a fls. 26 e ainda a fls. 282 dos autos, com a frente/canto esquerdo a 4,90 m do passeio do lado esquerdo da Rua Óscar da Silva atento o sentido sul-norte e com a frente/canto direito a 4,65 m da esquina direita da Rua da Bataria atento o sentido Este-Oeste.
Mais se apurou que o arguido
Ficou perturbado e nervoso com o acidente e acabou por se ausentar do local dado que também os populares que aí se juntaram se manifestavam contra si.
É solteiro.
Exerce a profissão de mecânico de automóveis, encontrando-se há cerca de 2 meses sem trabalho.
Tem vindo a auferir mensalmente por via de um seguro em razão de doença/incapacidade em que encontra cerca de 900,00€/mês.
Tem como habilitações literárias a 4ª classe.
Tem cinco filhos já maiores; e um filho menor a seu cargo.
Vive com a companheira que é auxiliar de acção educativa em casa arrendada, pagando a renda mensal de cerca de € 20’00.
Não tem outros processos-crime pendentes.
Sofreu uma condenação anterior na pena de 4 anos de prisão, cuja execução foi suspensa por 3 anos com condição do pagamento da indemnização fixada ao ofendido, prática, a 6.08.1996, de um crime de burla qualificada p. e p. pelo artigos 217º e 218º, nº1 C.Penal, datando o acórdão de 13.05.2004, no âmbito do procº 2445/96.0TAGDM do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Gondomar.
No novo julgamento apurou-se que:
Parando no sinal STOP existente, o veículo que circula na Rua da Bateria e pára no sinal STOP tem uma visibilidade de 7 (sete) metros para os veículos que circulam na Rua Óscar da Silva no sentido Sul-Norte.
A largura da Rua da Bateria é de 8,60 metros (medida feita no local de paragem do STOP).
Do STOP da Rua da Bateria até a intersecção com a Rua Óscar da Silva o veículo tem de percorrer 11 (onze) metros.
O piso em asfalto nas duas ruas, em razoável estado de conservação, ambas com dois sentidos de marcha.
Desde o início da curva, na Rua Óscar da Silva, até à intersecção com a Rua da Bateria, atento o sentido de marcha do arguido, há duas passadeiras devidamente sinalizadas com sinalização vertical e no pavimento. A distância desde o ecoponto até à intersecção das duas ruas tem uma distância de cerca de 70 (setenta) metros.
O embate ocorreu sensivelmente no eixo da via, mas já dentro da faixa de rodagem da esquerda, atento o sentido de marcha do arguido, sendo que a parte lateral esquerda do veículo conduzido pelo arguido se encontrava na hemifaixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de marcha, e a outra na hemifaixa de rodagem da direita.
Quando se sucedeu o embate, o veículo conduzido pela demandante encontrava-se parcialmente na faixa lateral da direita, atento o sentido de marcha Norte-Sul, sendo que apenas a parte traseira da sua carrinha se encontrava na faixa de rodagem da esquerda, atento o referido sentido.
Factos não provados
Não se provou que:
A ofendida/demandante experimentou forte sonolência, amnésia para o acidente e acontecimentos recentes.
A ofendida teve dezenas de sessões de fisioterapia e de consultas, não se tendo logrado apurar qual o número exacto ou aproximado de horas ou consultas em concreto.
O arguido circulava a uma velocidade superior a 90 Km/H.
Quando se aproximava do entroncamento com a Rua da Bataria e dele distante cerca de 25 metros foi o arguido surpreendido pelo aparecimento do XR proveniente da Rua da Bataria, a invadir a meia faixa direita da Rua Óscar da Silva, com o que cortou a linha de marcha do DT.
A demandante podia e devia ter avistado o DT a circular pela Rua Óscar da Silva, bem como da proximidade a que este se encontrava do entroncamento referido.
Porém prosseguiu a sua marcha, intentando proceder à travessia da Rua Óscar da Silva.
O XR não parou na Rua da Bataria, no zona de confluência com a Rua Óscar da Silva como lhe era imposto pelo sinal de Stop.
Não concedeu prioridade ao DT como lhe era imposto e que podia e devia avistar face ao aparecimento súbito e inesperado do XR nas condições supra descritas o condutor do DT de imediato accionou a fundo os travões do seu veículo, não conseguindo porém evitar o embate.
O arguido circulava com atenção e cuidados devidos ao trânsito, inclusivamente porque cerca de 40 m antes tem uma passadeira para peões onde costuma ter sempre todo o cuidado.
O arguido circulava no máximo a 60 Km/H.
Quem circula pela Rua da Bataria para entrar na Rua Óscar da Silva tem uma visão para esta rua de cerca de 50 m de comprimento, contrariamente à visão de quem circula no sentido e condições em que seguia o arguido que apenas tem uma visão de 25 m de comprimento em relação ao trânsito proveniente e à Rua da Bataria.
Foi o arguido quem socorreu ou quem primeiro tentou socorrer a outra condutora/ofendida.
(O demais descrito em cada um das peças processuais tomadas em consideração reveste carácter conclusivo e/ou jurídico, ressalvada ainda a materialidade fáctica prejudicada por contrariar frontalmente os factos já considerados provados/não provados ou a mera impugnação por negação desse mesmo acervo fáctico já elencado previamente)
Motivação
No que concerne aos factos apurados em novo julgamento, o Tribunal teve em conta a inspecção ao local, bem como as fotografias juntas aos autos, o croqui elaborado pelo agente da PSP, com os esclarecimentos que prestou em audiência de julgamento, admitindo que a passadeira estava colocada em local errado (era mais à frente sendo que o veículo conduzido pela demandante não ficou parado em cima da mesma) e que a casa também estava colocada em local errado, pois que a mesma se situava mais à frente, designadamente diante do local onde o veículo conduzido pela demandante ficou imobilizado após o acidente.
Quanto ao local do embate e não obstante a prova testemunhal produzida e as declarações do arguido serem relevantes para a resposta dada, o Tribunal teve essencialmente em conta o croqui e as fotografias juntas aos autos que nos indicam o fim dos rastos de travagem do veículo do arguido, sendo esse o local que o Tribunal considera como sendo o do local do embate.»

B- Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso em análise e na medida em que o recurso se encontra circunscrito à matéria de direito, porquanto, a recorrente não impugna validamente a matéria de facto assente, nem se vislumbram vícios do 410 nº 2 do CPP, as questões a decidir são as de saber se os factos dados como provados permitem concluir pela repartição de culpas pretendida pela recorrente de 25% para o arguido e de 75% para a ofendida/demandante civil e a determinação do "quantum da indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela demandante civil"

1ª Questão
Dinâmica do acidente e repartição de culpas

Compulsados os autos constatamos que a recorrente é parte civil.
O art. 401 do CPP indica quem tem legitimidade para recorrer e interesse em agir, dispondo na al. c): «As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;»
Tem, pois, o demandante civil consagrado, legalmente, o direito de recorrer sobre a matéria respeitante à indemnização civil.
Porém, não tendo o M. Público nem o arguido recorrido quanto à parte da decisão que condenou o arguido atribuindo-lhe culpa exclusiva na produção do acidente, e sendo sabido que a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa, - art. 40 nº2 do C.Penal -, isto significa, que a sentença transitou quanto à matéria penal, pelo que, o recurso interposto pela demandada civil só é admissível na medida em que não contenda com a matéria de facto que suporta a responsabilidade criminal.
Assim, e porque a legitimidade do recorrente, não assistente, se limita à específica questão cível suscitada no processo, o recurso por este deduzido não pode, em qualquer circunstância afectar o caso julgado formado quanto à responsabilidade penal. Daqui resulta que as partes civis carecem de legitimidade para recorrerem dos aspectos penais da sentença, ainda que para efeitos meramente civis, limitando-se o objecto do recurso interposto por estas a ser admissível quanto à questão do prejuízo reparável.
Neste sentido decidiram os Acórdãos do STJ de 10 de Dezembro de 2008 e de 20 de Outubro de 1993, in Col. Jur. T.III, pág. 251, e T.III, pág. 218, respectivamente, e ainda o Acórdão da Rel. do Porto de 3 de Maio de 1995, in Col. Jur. T.III pág. 248 e da Rel. de Coimbra de 25 de Maio de 1994, in Col. Jur. T III, pág. 52.
Esta posição é também defendida no Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas dos Magistrados do M. Público do Distrito Judicial do Porto, nota nº8 ao art. 401.
Ora, como resulta das conclusões elaboradas pela recorrente, a sua versão da dinâmica do acidente colide com a culpa atribuída ao arguido por decisão penal transitada, para além de estar, também, em total contradição com a matéria de facto que foi dada como não provada pelo tribunal recorrido.
Assim, impõe-se, nesta parte, a rejeição do presente recurso por falta de legitimidade do recorrente, dado que a admissão do mesmo em primeira instância não vincula este tribunal superior. – art. 414 nº3 do CPP.

Fixação da indemnização por danos não patrimoniais
Aceita a recorrente que a ofendida sofreu danos não patrimoniais que pela sua gravidade merecem a tutela do direito mas considera que o montante arbitrado pelo tribunal recorrido é excessivo e não deveria exceder 5.000,00 €.
Antes do mais cumpre salientar que a Portaria 377/2008 de 26 de Maio, surgida na sequência do art. 39 nº5 do DL 291/2007 de 21 de Agosto, pretendeu humanizar o comportamento das seguradoras do ramo automóvel e estabelecer critérios uniformes para avaliação do dano corporal a atender nas propostas de resolução extrajudicial de litígios emergentes de acidentes de viação.
Resulta do art. 1º da citada portaria que:
«1 — Pela presente portaria fixam -se os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, nos termos do disposto no capítulo III do título II do Decreto -Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
2 — As disposições constantes da presente portaria não afastam o direito à indemnização de outros danos, nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos.»
Verifica-se, pois, que os critérios orientadores da Portaria 377/08 têm um âmbito de aplicação específico e não vinculam os tribunais, embora possam por estes ser tidos em conta, a título meramente indicativo.
A determinação do quantum da indemnização por danos não patrimoniais é uma operação de cálculo complexa na medida em que estamos perante um tipo de prejuízo que é insusceptível de reparação integral por atingir bens que não fazem parte do património do lesado, como são a saúde física ou psíquica, a vida ou a liberdade.
Nesta matéria regem os artigos 496 e 494 do C.Civil, este último por remissão expressa do nº3 do citado art. 496, que também nos remete para critérios de equidade, no sentido de que deve ser procurada a solução justa e adequada ao caso concreto, devendo atender-se à situação económica do agente e do lesado
Pretende-se que no cálculo da indemnização por danos não patrimoniais seja ponderada a sensibilidade e as características próprias do agente e do lesado, sob o princípio norteador do respeito pela dignidade da pessoa humana.
No caso concreto dado que o arguido havia transferido a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-DT para a recorrente, não há que ter especiais limitações resultantes da situação económica do lesante, devendo o valor arbitrado procurar ressarcir o lesado e compensá-lo de todo o incómodo sofrido emergente do evento danoso.
Ora, à data do acidente a ofendida estava grávida de 35 semanas; sentiu intensas dores na região occipital e sagrada e intensos movimentos fetais, mas não pode tomar qualquer medicação até ao parto e durante os meses que lhe seguiram, por ter amamentado o filho.
O feto sofreu de insuficiências cardíacas, o que provocou grande ansiedade à ofendida, com receio de perda do bebé.
Foi-lhe diagnosticada gravidez de risco que determinou a sua imobilização na habitação, quando até ao acidente a gravidez tinha decorrido de forma tranquila e normal.
As fortes dores na zona lombar e cervical, impediram a requerente de exercer autonomamente as tarefas relacionadas com os cuidados a prestar ao filho recém-nascido, sendo necessário o recurso a ajudas do marido, amigos e familiares.
À data do julgamento ainda sentia fortes dores a nível lombar com irradiações para o membro inferior direito, o que lhe perturbava o sono e incomodava na condução, quando até este evento a ofendida nunca teve qualquer problema na coluna cervical.
Ora, tais anos são efectivamente graves atenta a impossibilidade de tomar qualquer medicação para o alívio das dores sofridas, e a forte ansiedade provocada pelo receio do que poderia suceder ao feto, além da incapacidade e consequente diminuição psicológica, por não se encontrar fisicamente apta para prestar os cuidados necessários ao filho recém-nascido.
Assim, tudo ponderado, consideramos que é adequado a indemnizar a ofendida pelos danos não patrimoniais sofridos, o montante fixado pelo tribunal recorrido de 12.000,00 €, (doze mil euros), improcedendo este argumento de recurso.

3. Decisão

Tudo visto e ponderado, acordam os juízes, neste Tribunal da Relação, em rejeitar o recurso na parte respeitante à dinâmica do acidente por falta de legitimidade da recorrente dado que contende com o caso julgado penal, entretanto formado, e negar provimento ao recurso na parte relativa ao montante da indemnização por danos não patrimoniais, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas, pelo decaimento do recurso, a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 Ucs.

Porto, 19/05/2010
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro
Eduarda Maria de Pinto e Lobo