Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0636133
Nº Convencional: JTRP00039808
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: LETRA
AVAL
RELAÇÕES IMEDIATAS
Nº do Documento: RP200611290636133
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - No confronto de quem no título detém a qualidade de seu beneficiário com o avalista do subscritor – portanto sem que tenha havido transmissão cambiária da livrança – não deixará de estar em causa uma relação estabelecida entre sujeitos intervenientes imediatos, sem a intermediação de outros, o que determina para o avalista a assunção duma obrigação que, sendo independente da do avalizado, tem como primeiro credor o interveniente cambiário que se lhe opõe.
II - Por isso, também não será de afastar a possibilidade do avalista, relativamente ao interveniente imediato, beneficiário duma livrança, poder opor, para além dos vícios de forma, as excepções pessoais decorrentes, por exemplo, da violação do pacto de preenchimento em que tenha intervindo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1. RELATÓRIO.

B………. e mulher C……….,
bem assim
D………. e mulher E………., todos já melhor identificados nos autos,

vieram deduzir oposição à execução que lhes foi movida, bem como à sociedade “F………., Ld.ª”, pela

“G……….”, com sede na ………., n.º .., Maia,

execução essa em que esta última pretende a cobrança coerciva do montante de 21.680,93 euros, acrescido de juros de mora vencidos no valor de 253,93 euros e dos vincendos até integral liquidação daquele primeiro quantitativo, e ainda da quantia de 108,40 euros, a título de imposto de selo, tendo oferecido como título executivo uma livrança subscrita por aquela sociedade “F………., Ldª” e avalizada à subscritora pelos oponentes.

Estes últimos, sustentando a oposição, vieram aduzir, entre o mais e no que aqui importa referir, que a data constante do aludido título (27.12.2004), como sendo aquela em que o subscreveram, não correspondia à realidade, posto que naquela altura já não eram sócios da sociedade subscritora, por terem cedido as quotas que nela detinham em 5.12.2003;
acrescentaram que, tendo a exequente em 3.2.05 procedido à reclamação no processo que decretou a falência da identificada sociedade “F………., Ldª” de um crédito sobre esta última, constante de uma livrança no montante de 2.023,98 euros, como sendo o único que sobre a mesma detinha, sem que tivesse junto aos autos o dito título ou sua cópia, mas só podendo corresponder ao que veio ser dado à execução, impedida estava aquela (exequente) de accionar também e separadamente os oponentes para cobrança do aludido título (art. 519, n.º 1 do CC);
argumentaram ainda que o título dado à execução (livrança), tendo sido por si subscrito em branco, assim havia sido entregue à exequente para garantia de pagamento duma outra garantia bancária prestada por aquela (exequente) a favor duma cliente (“H………., Ld.ª”) da dita sociedade “F………., Ldª” até ao montante de 2.023,98 euros, pelo que a aposição do mencionado valor de 21.680,93 euros naquele título era abusivo;
tendo, por último, negado a exigibilidade de juros de mora, no seguimento da interpretação a conceder ao preceituado no n.º 2, do art. 46 do CPC.

Contestou a exequente para impugnar grande parte da alegação inicial, tendo ainda adiantado que a livrança dada à execução tinha sido emitida, com subscrição pelos oponentes, na sequência da concessão de crédito a favor da sociedade “F………., Lda”, consubstanciada no respectivo escrito constante de fls. 39 a 39v., em que aqueles (oponentes) intervieram também na qualidade de garantes, aí se incluindo a subscrição duma livrança em branco – a dada à execução – como avalistas, nessa medida garantindo o cumprimento do correspondente empréstimo pelo montante de 25.000 euros, donde o aludido título nada ter a ver com a invocada garantia bancária por si prestada à aludida sociedade “H………., Ld.ª”, o que não podiam ignorar, assim também se justificando a sua condenação como litigantes de má fé, com pagamento duma indemnização a seu favor em montante não inferior a 2.500 euros.

Apresentaram ainda os oponentes articulado para responderem ao pedido de condenação como litigantes de má fé, defendendo não se verificarem os respectivos pressupostos, assim devendo sucumbir tal pretensão.

Findos os articulados, veio a ser proferida decisão a conhecer desde logo do mérito da oposição, julgando-se a mesma improcedente, devendo a lide executivo prosseguir os seus termos para garantir o pagamento do aí reclamado, mais se entendendo não haver lugar a condenação dos oponentes como litigantes de má fé, por não se verificarem os inerentes pressupostos.

Inconformados com o decidido, interpuseram aqueles recurso de apelação, concluindo as suas alegações com a revogação do sentenciado, devendo julgar-se a causa no sentido do por si propugnado inicialmente, no essencial suscitando as problemáticas colocadas no seu articulado e acima enunciadas, com a solução aí defendida.

A exequente contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância mantém a sua validade.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

Ainda que na decisão impugnada não tenha sido enunciada a matéria factual na base da qual se sustentou o decidido, o que se impunha em obediência ao disposto no art. 659, n.º 2, do CPC, compete nesta sede superar tal vício, ponderando a documentação junta aos autos e a posição assumida pelas partes nos seus articulados.

Assim, o que demais relevante interessa reter e é aceite pelas partes resume-se ao seguinte:

- A exequente é portadora da livrança cuja cópia consta de fls. 92 a 92v. destes autos, subscrita pela sociedade “F………., Ld.ª” e avalizada pelos oponentes, nela constando como data de emissão 27.12.04 e data de vencimento 9.5.05, título esse entregue àquela apenas com as respectivas assinaturas e com os demais espaços em branco;

- A aludida sociedade subscritora da mencionada livrança celebrou com a exequente o contrato de concessão de crédito representado pelo documento junto de fls. 39 a 39 v., com o clausulado dele constante, no mesmo tendo também intervindo os oponentes;

- Os oponentes, através de escritura celebrada em 5.12.03, cederam as quotas que detinham naquela sociedade “F.........., Ld.ª”;

- Tal sociedade foi declarada em estado de falência por sentença proferida em 12.1.05 pelo Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia.

Elencada a materialidade tida como assente entre as partes, importa circunscrever o objecto do recurso de apelação interposto pelo oponentes, o qual se poderá resumir às questões acima assinaladas que, no entender daqueles, deviam conduzir desde já à procedência da oposição, a saber:
. extinção do direito da exequente de accionar os oponentes pela subscrição da mencionada livrança;
. inexigibilidade de juros moratórios;
. preenchimento abusivo do aludido título.

No âmbito da primeira problemática, defendem os impugnantes que, tendo a mencionada livrança sido por si subscrita na qualidade de avalistas para garantia de pagamento de uma outra garantia bancária prestada pela exequente a favor de uma cliente (H………., Ld.ª) da sociedade “F………., Ldª” de que eram sócios, tinha o respectivo montante dessa garantia – 2.023,98 euros – sido objecto de reclamação no processo onde foi decretada a falência daquela última sociedade, pelo que, estando em causa uma obrigação solidária e exigida a respectiva prestação de um dos devedores solidários, impedida estava a exequente de proceder judicialmente contra os demais co-obrigados, nos termos do art. 519, n.º 1, do CC.

A questão assim suscitada teve resposta por parte do tribunal “a quo” no sentido de ser possível o accionamento dos oponentes nos termos em que foram deduzidos, apesar da eventual reclamação feita no aludido processo de falência, precisamente por estar a coberto da excepção contemplada na parte final do n.º 1, do art. 519 do CC.

Cremos ser esta a solução correcta para o caso de que nos ocupamos, posto estarmos diante duma situação que cabe dentro da citada previsão legal, no pressuposto de que o montante reclamado não obteve pagamento no dito processo de falência e demonstrada que vem a insolvência da identificada sociedade devedora – v. a propósito Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 8.ª ed., pág. 608, bem assim, no âmbito do processo de falência, Maria Rosário Epifânio, in “Os Efeitos Substantivos da Falência”, pág. 205.

Entendem ainda os recorrentes não serem devidos juros de mora peticionados na lide executiva, por a tal se opor o n.º 2, do art. 46, do CPC.

Não é de todo compreensível a argumentação assim aduzida para não se atender aos juros moratórios à taxa legal, fazendo o cotejo do que dispõem os arts. 48 da LULL e art. 4, do DL n.º 262/83, de 16.7, de onde resulta à evidência que tais juros são devidos perante a mora no pagamento da quantia constante no respectivo título, o que aliás nem é contrariado pelo que vem estipulado no n.º 2, do citado art. 46 do CPC – v. no sentido exposto e quanto aos juros moratórios para as letras e livranças, o Ac. uniformizador do STJ, n.º 4/92, de 13.7.92, in DR, I.ª Série de 12.12.92.

Atento os termos em que os apelantes colocam a problemática dos juros moratórios, não vemos motivos para nessa parte censurar o decidido, pois que, em face dos citados preceitos legais, não será controverso serem devidos juros moratórios à taxa legal pelo não pagamento da livrança na data do seu vencimento.

Impõe-se, por último, analisar aquela outra problemática atinente ao preenchimento abusivo da livrança dada à execução, preenchimento esse que no caso seria desde já de verificar, importando a extinção da lide executiva quanto aos recorrentes.
Analisemos.

Esta questão foi solucionada pelo tribunal “a quo” no sentido de que envolvia matéria de excepção pessoal apenas susceptível de ser levantada pela sociedade subscritora da aludida livrança – a identificada “F………., Ldª” – sendo que a qualidade (de avalistas) em que os oponentes haviam subscrito aquele título era impeditiva de suscitar tal excepção, por relativamente a si a mencionada livrança se encontrar no domínio das relações mediatas.
Cremos que este raciocínio assente na argumentação de que a livrança dada à execução se situa no domínio das relações meditas relativamente aos oponentes, enquanto avalistas, não pode proceder.

Como é sabido, o avalista fica numa situação de devedor cambiário perante aqueles subscritores em face dos quais o avalizado é responsável e na mesma medida em que este o seja (arts. 30 e 32 da LULL), assegurando, por via acessória, o cumprimento duma obrigação principal, em função do que ocupará, entre os subscritores cambiários, uma posição paralela idêntica à do subscritor avalizado.

Ora, no confronto de quem no título detém a qualidade de seu beneficiário com o avalista do subscritor – portanto sem que tenha havido transmissão cambiária da livrança – não deixará de estar em causa uma relação estabelecida entre sujeitos intervenientes imediatos, sem a intermediação de outros, o que determina para o avalista a assunção duma obrigação que, sendo independente da do avalizado, tem como primeiro credor o interveniente cambiário que se lhe opõe – v., neste sentido, os Acs. do STJ de 3.7.00, in CJ/STJ/00, Tomo 2, pág. 139; de 16.10.03 (Rel. Araújo de Barros) e 21.4.05 (Rel. Salvador da Costa), estes na base de dados do MJ.

Por isso, também não será de afastar a possibilidade do avalista, relativamente ao interveniente imediato, beneficiário duma livrança, poder opor, para além dos vícios de forma (art. 32 da LULL), as excepções pessoais decorrentes, por exemplo, da violação do pacto de preenchimento em que tenha intervindo – v., a propósito, Vaz Serra, in RLJ, ano 113, págs. 185 a 187.

Não poderá, assim, acolher-se o raciocínio adiantado na decisão recorrida de que, na situação dos autos, estava vedado aos oponentes, enquanto avalistas da mencionada livrança, invocar a violação de um pacto de preenchimento em que teriam tido directa intervenção, dessa forma não lhes podendo aproveitar um tal tipo de defesa para eventualmente obstarem ao prosseguimento da lide executiva contra si também instaurada.

Mas se temos como adquirida essa possibilidade, já será questionável, com os elementos recolhidos nos autos, tomar posição definitiva quanto à verificação da invocada excepção de preenchimento abusivo, como parecem defender os recorrentes.

Neste âmbito, haverá a ponderar dois tipos de argumentos adiantados pelos impugnantes, um deles tendo a ver com a data de emissão aposta na dita livrança e o outro relacionando-se com a garantia visada pela subscrição da dita livrança pelos oponentes, enquanto avalistas.

Naquela primeira vertente, aduzem os recorrentes que jamais poderiam ter subscrito o aludido título na data referente à sua emissão (27.12.04), posto nessa altura já não serem sócios da sociedade subscritora do mesmo, face à cedência das suas quotas em 5.12.03.
Naquela segunda vertente, aduzem que a livrança dada à execução, tendo sido por si subscrita em branco como avalistas, se destinou a garantir o pagamento de uma outra garantia bancária até ao montante de 2.023,98 euros prestada pela exequente a uma cliente (H………. Ld.ª) da sociedade subscritora desse mesmo título.

Já a exequente, na contestação apresentada, adiantou que a livrança em causa se destinou a garantir o cumprimento de concessão de crédito a que alude o documento junto de fls. 39 a 39v., sendo beneficiária (desse empréstimo) a dita sociedade “F………., Ldª”, pelo montante global de 25.000 euros, nele tendo intervindo os próprios oponentes como garantes do seu integral cumprimento e com subscrição da dita livrança, a qual foi preenchida em obediência ao clausulado previsto para esse preenchimento.

Atento o alegado pelas partes no aspecto em referência, defrontamo-nos perante teses distintas quanto à finalidade que esteve na base da subscrição pelos recorrentes do mencionado título – de um lado, argumentam estes últimos que o aval por si prestado na dita livrança se destinava a garantir o cumprimento da falada garantia prestada pela exequente até ao montante de 2.023,98 euros, do outro temos a tese da exequente que alude àquele outro empréstimo representado pelo contrato de empréstimo representado pelo documento de fls. 39 a 39v., no âmbito do qual os recorrentes avalizaram aquele mesmo título.

Diante do confronto destas teses distintas, as quais se relacionam também com diferentes pactos de preenchimento relacionados com o aval prestado na livrança dada à execução, necessário será concluir pela impossibilidade duma tomada de posição definitiva quanto a esta problemática, no pressuposto de que ao alcance dos oponentes estava demonstrar tal matéria relativa à celebração de determinado pacto de preenchimento em que os mesmos intervieram.

Por isso, impõe-se determinar a ampliação da matéria de facto no aspecto em questão, indagando-se a realidade invocada pelos oponentes no seu articulado inicial, atinente ao falado contrato de preenchimento que esteve na base da subscrição da livrança dada à execução – art. 712, n.º 4 do CPC.

Não pode, assim, acolher-se a tese que fez vencimento na sentença impugnada, ao conhecer, sem a produção das provas que oferecidas forem pelas partes, do mérito da oposição deduzida e no sentido daquela constante, devendo o processo prosseguir os seus termos, para a final se tomar conhecimento da pretensão por aqueles formulada.

3. CONCLUSÃO.

Pelo exposto, decide-se ordenar o prosseguimento dos ulteriores termos do processo para os fins indicados, com elaboração da competente base instrutória, assim ficando sem efeito o sentenciado no aspecto focado.
Custas do presente recurso a cargo da parte vencida a final.

Porto, 29 de Novembro de 2006
Mário Manuel Baptista Fernandes
Fernando Baptista Oliveira
José Manuel Carvalho Ferraz