Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1/08.0EAMDL.P1
Nº Convencional: JTRP00043322
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: ASAE
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP200910211/08.0EAMDL.P1
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 596 - FLS. 51.
Área Temática: .
Sumário: I. O legislador não define o que deve entender-se por forças de segurança para os efeitos do artigo 164º, alínea u), da CRP – reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República. Mas, partindo da tensão dialéctica entre os direitos à liberdade e segurança, consagrados no artigo 27º, n.º 1, da mesma CRP, “ o conceito constitucional de «forças de segurança» não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos” - ac. do TC nº 304/2008, de 30 de Maio.
II. Quer no diploma que criou a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) – art. 2º do DL nº 237/2005, de 30 de Novembro - quer nos termos do art. 15º da Lei Orgânica do Ministério da Economia e da Inovação - DL nº 208/2006 de 27 de Outubro -, quer com os ajustamentos introduzidos pelo Decreto-lei nº 274/2007 de 30 de Julho, a ASAE tem sido e continua a ser um serviço da administração directa do Estado, dotado de autonomia administrativa mas na dependência hierárquica do ministro que tutela a área da economia, sendo a entidade nacional especializada e responsável pela segurança alimentar e da fiscalização económica, nomeadamente pela avaliação e comunicação dos riscos na cadeia alimentar e a autoridade coordenadora do controlo oficial dos géneros alimentícios.
III. Pelo que, quer pela sua natureza jurídica quer pelas atribuições concretas enumeradas no artigo 5º, do Decreto-lei nº 274/2007, de 30 de Julho a ASAE não é um organismo que deva integrar-se no conceito de força de segurança para os efeitos do disposto no artigo 164º, alínea u), da CRP.
IV. Nos termos do artigo 15º, do Decreto-lei nº 274/2007, de 30 de Julho, a ASAE passou a deter poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
V. Enquanto órgão de polícia criminal pode não só levar a cabo as tarefas ou actos ordenados pela autoridade judiciária como as que o Código de Processo Penal permita ou exija.
VI. Quer a atribuição da natureza de órgão de polícia criminal por acto legislativo emanado do Governo, quer o exercício ou prática dos actos ao abrigo do CPP, como aconteceu no presente caso, não estão feridos de inconstitucionalidade.
VII. Merece a comunidade em geral e a saúde em particular, uma especial protecção bem como o direito à informação sobre o modo de agir dos operadores comerciais na forma e na diligência da conservação dos produtos alimentares comercializados. Pelo que se justifica a publicidade de sentença pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios sobretudo se o arguido já anteriormente sofreu condenação por crime de igual natureza.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 1.08.0EAMDL.P1.
Processo nº 1.08.0EAMDL.
Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
1. Nos autos de processo sumário nº 1.08.0EAMDL, do Tribunal Judicial de Vinhais, foi o arguido
B……………, casado, empresário, nascido em 11/01/1969, filho de C……………. e de D……………, natural de Moçambique e residente na Rua ……, n.º …, …º andar, Torre de Moncorvo,
Julgado e condenado:
- Pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo art.º 24, n.º 1, al. c) e n.º 2 alínea c) do DL n.º 28/84 de 20 de Janeiro, nas penas de:
- 2 (dois) meses de prisão, substituída por 60 dias de multa; e
- 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 25,00.
Em cúmulo material, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 25,00, o que perfaz um total de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros)
- pela prática de uma contra-ordenação p. e p. no art.º 58.°, n.ºs 1, al. a) e 2 do DL n.º 28/84 de 20 de Janeiro, na coima de € 400,00 (quatrocentos euros).
Foi ainda:
- Decretada a publicidade da decisão condenatória.
- Decretada a perda a favor do Estado dos bens apreendidos.
2.
Não se conformando com a decisão, dela recorre o arguido, formulando as seguintes conclusões:
2.1. O aqui arguido suscitou um incidente de inconstitucionalidade do D.L. 237/2005 de 30 de Dezembro e do artigo 15 do D.L. 274/2007 de 30 de Junho.

2.2. Este último diploma, através do seu artigo 15, vem conceder à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica “poderes de autoridade” e de “órgão de polícia criminal”, ou seja, tal como outros órgãos de autoridade, a GNR, PSP e PJ (criados por lei).

2.3. Nos termos da alínea u), do artigo 164 da C.R.P onde refere que “regime das forças de segurança”, legitima extrair o entendimento segundo o qual, quer o regime geral, quer os regimes especiais correspondentes a cada força de segurança, devem integrar a reserva absoluta da competência parlamentar.

2.4. A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica como força policial e de segurança, e estando esta investida de poderes funcionais para a pratica de certos actos de policia, de prevenção e detecção criminal os quais se projectam sobre direitos fundamentais, não pode deixar de ser reclamada a sua regulação em forma de lei – reserva absoluta da competência legislativa da Assembleia da Republica .

2.5. A acrescer e a reforçar a interpretação invocada, longe esta de ser peregrina, o artigo 272 da CRP, inserida no título respeitante à Administração Publica, tem como titulo e tema “a polícia”, dispondo no seu nº 2. que “as medidas de policia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para alem do estritamente necessário.” Relevando o legislador constitucional uma acentuada preocupação na possibilidade da actividade policial na prossecução dos seus fins – previstos no nº 1. do artigo 272 da CRP – poder interferir de forma especialmente intensa com direitos e liberdades fundamentais do cidadão.

2.6. O legislador constitucional entendeu expressar a necessidade das medidas da polícia terem uma previsão na lei – imposição constitucional da tipicidade e de reserva legislativa. Aliás vide “Acórdão do Tribunal Constitucional nº 304/2008 publicado na 1ª serie do D.R, nº 116 de 18 de Junho de 2008.

Por outro lado;
2.7. O D.L. 274/2007 de 30 de Junho, o governo atribui, através do seu artigo 15, à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica “poderes de autoridade” e de “órgão de polícia criminal”.

2.8. Os actos praticados in casu, de detenção e constituição de arguido são actos de polícia que implicam a diminuição dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos. Direitos fundamentais estes que se encontram consagrados nos artigos 24 e seguintes da C.R.P., e, constituindo estes uma pedra basilar de um estado de direito democrático.

2.9. Consagrou por isso o nosso legislador constituinte no artigo 165 da C.R.P., que “é da exclusiva competência da Assembleia da Republica legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao governo;

(…)
b) Direitos liberdades e garantias;
(…)

2.10. A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica é estatutariamente um órgão de Polícia Criminal definido por decreto-lei governamental e não por via parlamentar como lhe era exigível.

2.11. A atribuição do estatuto de Polícia, dos seus poderes e competências é uma reserva da competência da Assembleia da República que não foi respeitada.

2.12. De onde se extrai e se invoca para todos os efeitos legais a inconstitucionalidade do D.L. 237/2005 de 30 de Dezembro e do D.L. 274/2007 de 30 de Junho (nomeadamente no seu artigo 15.) por legislar em matérias abrangidas por reserva de acto legislativo, relativa e absoluta da Assembleia da Republica, nos termos da alínea u), nº 1. do artigo 164 da CRP e do artigo 165, nº 1., alínea b) da C.R.P. e do nº 2 do artigo 272 do diploma fundamental.

2.13. Ora, os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. (vide artigo 207 da C.R.P.). o que implicaria uma abstenção pelo Tribunal a quo da aplicação da D.L. que atribui competências á ASAE para proceder como autoridade de policia criminal, dando como inexistentes, ilegais e nulos os actos praticados no uso desta inconstitucionais competências.

2.14. Pelo que violou o tribunal a quo o vertido no artigo 207 da C.R.P., aplicando o D.L. 237/2005 de 30 de Dezembro e do D.L. 274/2007 de 30 de Junho (nomeadamente no seu artigo 15.) e permitindo inclusive que tal “autoridade de polícia” restrinja os direitos liberdades e garantias do arguido estabelecidas no artigo a C.R.P..

2.15. Na determinação da medida da pena o juiz e auxiliado pelo artigo 72, nº 2 do C.P., atenderá a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do agente ou contra ele. No mesmo artigo, de forma exemplificativa enumera alguns dos factores mais importantes que podem ser tomados em consideração.

2.16. Alguns dos factores, que por lapso do Tribunal a quo não considerou, tem dignidade judicial para a sua consideração para a determinação da medida da pena;
- a quantidade apreendida com relevo jurídico-penal p. p. pelos artigos 24, nº 1. alínea c) do D.L. 28/84, de 20 de Janeiro é de 12,335 Kg. O local onde os produtos se encontravam à venda era uma arca tipo “Iglo” onde se encontravam mais de quinhentos quilos de mercadoria congelada, ou seja, 2% da totalidade dos produtos à venda.
- A instalação prévia pelo arguido do sistema de HACCP.
- A intensidade actual da frequência das deslocações à loja pelo arguido (depois deste incidente), os contactos diários com a encarregada da loja, ou seja, um comportamento mais assíduo e diligente, após a ocorrência do ilícito, relevam quer uma fraca intensidade da negligência quer a preparação do agente para a manutenção de uma conduta lícita.
- A instauração de um processo disciplinar a fim de averiguar a falha nos procedimentos e evitar situações como a presente.
- A forma colaboradora, espontânea e esclarecida com que o arguido confessou os factos, não os negando, mas esclarecendo a falha.

2.17. Sem prejuízo da dupla valoração (artigo 72, nº 3 do C.P.), são os factores invocados, relevantes para a determinação da medida da pena, diminuindo ao agente quer a culpa, quer a ilicitude (baixa), quer a necessidade da pena.

2.18. Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese se admite, julga-se adequada ao agente uma pena de um mês de pena de prisão e uma pena de multa não superior a 40 dias. Obviamente, e atendendo a que a execução de prisão se torna desproporcional, inadequada e desnecessária face às necessidades de prevenção, pois não está em causa a realização de futuros crimes, substituindo a pena de prisão nos termos do artigo 43 nº 1. do C.P. por pena de multa, julgando-se adequada uma pena de 20 dias.

2.19. Pelo que deveria o Tribunal a quo ter considerado tais factores para a determinação da medida da pena nos termos do artigo 72 e 73 do C.P., facto que não tiveram dignidade na matéria de facto provada e não provada, mas que se julgam relevantes e provados atenta a prova testemunhal, cujas passagens se invoca.

2.20. Violando assim o Tribunal a quo na sua deficiente e lacunosa apreciação (com o devido respeito) da matéria de prova carreada para os autos, nomeadamente por consequência o artigo 72 e 73 do C.P.

2.21. Também não se pode concordar o arguido relativamente à condenação acessória da publicidade da decisão condenatória. Atento os factores referidos, o grau de ilicitude, a culpa diminuta, e essencialmente a desnecessidade de prevenção geral, pois a reafirmação da norma, a sua validade e eficácia estão asseguradas.

2.22. Atenta a publicidade do ilícito quer nos jornais locais, quer entre a população, a acrescer que se trata de uma vila com pouco mais de dois mil habitantes e foi do conhecimento público tal infracção.

2.23. Não existindo necessidade acrescida da tutela dos bens jurídicos e da preservação da expectativas comunitárias. Julga-se assim desproporcionada, inadequada e até supérflua, com o respeito devido, a publicidade da decisão condenatória.

2.24. Existe assim por parte do tribunal a quo uma clara violação da proporcionalidade e da consequente proibição do excesso, jurídico-constitucionalmente imposto (artigo 18, nº 2 da C.R.P.)

Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui Douto suprimento de V.(s) Exas, deverá a inconstitucionalidade invocada ser procedente com as demais consequências no caso concreto, ou, caso assim não se entenda, deverá ser o arguido dispensado de pena ou a mesma ser atenuada especialmente (com a revogação da pena acessória de publicidade), por se verificarem in casu, factos que relevam para efeitos da sua determinação.
3.
Respondeu o Ministério Público, sintetizando assim as suas conclusões:
3.1. A inconstitucionalidade invocada pelo recorrente é infundada e as nulidades suscitadas são extemporâneas, conforme o supra exposto.
3.2. O tribunal da 1ª instância fez o exame crítico de todas provas produzidas e examinadas em audiência, as quais sustentaram a sua decisão;
3.3. A pena aplicada ao arguido (bem como a sanção acessória de publicidade) não violou o disposto no artigo 72.º e 73.º do C.P. nem o artigo 18.º n.º 2 da CRP, uma vez que a mesma foi justa, adequada e proporcional, em face da prova produzida, da culpa do arguido, da necessidade de prevenção e da sua situação económica - cfr. art. 70.º,71.º n.º 1, 43.º n.º 1 e 47.º n.º 2 todos do C.P.
Destarte, bem decidiu a Meritíssima Juíza “a quo” nos moldes em que o fez, devendo a decisão recorrida ser mantida nos seus precisos termos, e consequentemente ser negado provimento ao recurso.
4.
Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concluindo pela improcedência do recurso.
5.
Foram os autos a vistos e realizou-se a conferência.
II
Questões a apreciar:
1. A inconstitucionalidade do D.L. nº 237/2005 de 30 de Dezembro e do artigo 15º do D.L. nº 274/2007 de 30 de Junho.
2. A atenuação especial da pena e a medida concreta desta.
3. A publicidade da sentença.
III
São os seguintes os factos dados como provados e não provados na sentença:
1. No dia 9 de Janeiro de 2008, pelas 15.00h, no estabelecimento comercial denominado E………….., de “F……………., supermercados Lda.”, sito na Av. ……….. em Vinhais, dois agentes da ASAE levaram a cabo uma acção de fiscalização.
2. No interior do referido estabelecimento, na parte destinada ao público e para venda, dentro do balcão frigorífico os agentes da ASAE detectaram:
a) 4,755 Kg de pescado (Quelha, Pesada, Salão e Carapau) que, depois de ser objecto de peritagem, se concluiu que os mesmos apresentavam-se dissecados, com queimaduras decorrentes do frio e com oxidação.
b) 7,48 Kg de pescado e carne (Quelha, Pescada, Pescada do Nilo, Espadarte, Congro, Salmão, Sapateira cozida, Atum e Codornizes) que, depois de serem objecto de peritagem, se concluiu que os mesmos apresentavam cristalização interna, resultante de deficiente cadeia de frio.
c) 38,955 Kg de pescado e de carne (Pescada, Salmão, Carapau, orelha, chispe e entrecosto de porco) que estavam em exposição sem qualquer rótulo.
3. Pelas 14.00h do dia 10 de Janeiro de 2008, foi realizada a perícia aos produtos identificados em 2., pelo Médico Veterinário do Município de Vinhais, tendo estado presente e acompanhado a perícia, G…………., técnica indicada pelo arguido.
4. Os produtos apreendidos foram colocados numa arca frigorífica, tendo a mesma sido lacrada com os selos n.º 8141, n.º 8143, n.º 8144 e n.º 8145.
5. Os produtos apreendidos não estão aptos a criar perigo para a saúde pública.
6. Antes do referido em 1. e 2., o arguido não se apercebeu do estado dos produtos aí mencionados, não tendo detectado os sinais e a falta de rótulo também aí referidos.

OUTROS FACTOS COM RELEVO PARA A DECISÃO DA CAUSA.
7. Na data referida em 1., o arguido era sócio e gerente da sociedade “F……………, supermercados, Lda.”, N.I.P.C. 507214080, como ainda o é actualmente, sendo também naquela data pertença daquela sociedade o estabelecimento referido em 1.
8. No exercício das suas funções de gerente, por volta da data referida em 1., o arguido deslocava-se, em regra, de 15 em 15 dias ao estabelecimento Minipreço referido em 1., aí dando instruções e orientações a funcionários, em particular à funcionária encarregada de loja, relativas aos diversos aspectos referentes ao funcionamento daquele estabelecimento, bem como supervisionava o respectivo trabalho.
9. Na data referida em 1. e no estabelecimento aí referido, haviam já sido implementadas regras do HACCP, que deviam ser levadas a cabo pelos funcionários e que incluíam, entre outras medidas preventivas, o registo, pelo menos três vezes ao dia, da temperatura a que se encontram os balcões frigoríficos, o controlo das diversas mercadorias, desde logo, quando recepcionadas, mas também posteriormente quando expostas para venda, em particular quanto aos produtos alimentares congelados ou refrigerados, recebendo os funcionários daquele estabelecimento formação nesse âmbito
10. Contudo, nem sempre os funcionários do estabelecimento comercial referido em 1, por volta da data aí referida, cumpriam de forma integral as diversas normas impostas pelo HACCP, ocorrendo, por vezes, incumprimento das mesmas, designadamente no que concerne à recepção das mercadorias e ao controlo dos géneros alimentícios congelados e refrigerados expostos para venda.
11. Por vezes, cuja frequência em concreto não se logrou apurar e, entre outras, durante a noite, ocorriam cortes no fornecimento de energia eléctrica ao estabelecimento referido em 1., com a consequente falta de fornecimento de energia ao balcão frigorífico referido em 2.
12. O arguido não desconhecia o vertido em 10. e 11.
13. Por decisão proferida no processo n.º …./02.5EABGC, transitada em julgado no dia 30 de Janeiro de 2003, o arguido foi condenado pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo art.º 24, n.º 1, al. c) do DL n.º 28/84 de 20 de Janeiro, na pena de dois meses de prisão, substituída por 80 dias de multa e 40 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, num total de € 600,00; declarada extinta pelo pagamento em 7 de Janeiro de 2005.
14. O arguido é tido por ser sério.
15. É membro da Associação Comercial e Industrial de Moncorvo (ACIM) há cerca de 5 anos.
16. É casado, tendo duas filhas de 9 e 12 anos.
17. A mulher é professora primária, auferindo cerca de € 1.300,00 por mês.
18. Vive em casa arrendada, pela qual paga cerca de € 350,00 por mês.
19. O agregado familiar é ainda composto pela Mãe do arguido, que aufere de reforma cerca de € 400,00 por mês, por uma sobrinha de 15 anos e mais dois sobrinhos.
20. Tem como carro particular um veículo marca Mercedes, modelo S, versão 320 CDI com cerca de 6 meses, com o valor base de € 106.446,00.
21. É sócio quanto a duas lojas E…………. - …… e …… - e dono de uma outra, a de Torre de Moncorvo.
22. Cada uma das lojas factura, anualmente e em média, € 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil euros).
23. As três lojas têm, no conjunto, pelo menos 24 funcionários.
24. As três lojas têm afectas, em conjunto, pelo menos, 5 veículos comerciais.
25. O arguido é sócio de uma para-farmácia onde teve de investir, pelo menos, € 90.000,00 (noventa mil euros).
26. O arguido é sócio de uma clínica dentária onde teve de investir, pelo menos, € 215.000,00 (duzentos e quinze mil euros).
27. O arguido recorre a crédito para fazer os seus investimentos.
*
Factos não provados.
Com relevo para a decisão da causa resultaram não provados os seguintes factos:
a)- O arguido agiu de forma deliberada e consciente, sabendo que parte dos produtos referidos em 2. não reunia as condições exigíveis para serem consumidos e que outros não respeitavam os requisitos de congelação e rotulagem exigidos por lei e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

IV
Cumpre decidir:
1ª Questão: A inconstitucionalidade.
1. Conforme resulta do processo, nos presentes autos foi já proferida, em 1.2.2008, uma primeira decisão – v. fls. 56 a 78 -, que condenou o arguido pela prática, em autoria material, de um crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios, na forma dolosa, na pena única de 335 dias de multa à razão diária de 25,00 euros e na coima de 800,00 euros.
1.2. Desta condenação foi interposto recurso pelo arguido – v. fls. 99 a 109.
Entre outras questões, suscitou o recorrente a questão da nulidade da acusação com base em irregularidades desta – falta de narração de certos factos -, pretendendo que a mesmo fosse rejeitada ou mandada corrigir pelo tribunal.
1.3. Desta questão conheceu o acórdão deste Tribunal da Relação proferido em 14.7.2008 – v. fls. 155 a 173 -, tendo concluído pela improcedência da pretensão do arguido.
Mais decidiu o reenvio do processo para indagação e resolução de questões de facto tendentes a apurar a responsabilidade do arguido se a título de dolo ou se de negligência.
1.4. Decisão cumprida pelo Tribunal a quo que veio agora a condenar o recorrente apenas a título de negligência.
1.5. Entretanto, pelo arguido foi suscitada a questão da inconstitucionalidade do D.L. 237/2005 de 30 de Dezembro e do artigo 15 do D.L. 274/2007 de 30 de Junho, com os fundamentos já reproduzidos nas suas conclusões supra transcritas.
1.6. Questão já apreciada em 1ª instância, onde se concluiu pela não inconstitucionalidade.
1.7. Mas da qual o arguido recorre também para este Tribunal da Relação.

2. Tendo por base a motivação e conclusões de recurso do recorrente, este invoca a inconstitucionalidade de actuação da ASAE, sob duas perspectivas:

2.1. O D.L. nº 274/2007 de 30 de Junho, ao conceder à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, através do seu artigo 15, “poderes de autoridade”, tal como outros órgãos de autoridade, a GNR, PSP e PJ (criados por lei), viola os termos da alínea u), do artigo 164 da C.R.P onde refere “regime das forças de segurança”, pois que legitima extrair o entendimento segundo o qual, quer o regime geral, quer os regimes especiais correspondentes a cada força de segurança, devem integrar a reserva absoluta da competência parlamentar.
2.2. O D.L. nº 274/2007 de 30 de Junho, ao considerar a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, através do seu artigo 15, Órgão de Polícia Criminal, viola o disposto no artigo 165º da C.R.P., que estipula que “é da exclusiva competência da Assembleia da Republica legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao governo;
(…)
b) Direitos liberdades e garantias.

3. Temos, assim, como primeira questão, apurar se a ASAE é ou deve ser considerada uma verdadeira força de segurança, no sentido de se lhe dever aplicar ou não a competência de reserva absoluta do artigo 164º, alínea u), da CRP.
Não definindo o legislador o que são efectivamente forças de segurança para os efeitos da alínea u), supra indicada, todos os contributos para perceber esta problemática são bem-vindos, desde que sérios e de reconhecida autoridade.
Assim, sobre esta matéria, embora de um modo indirecto e a propósito da apreciação de uma fiscalização preventiva de inconstitucionalidade (da estrutura organizativa da Polícia Judiciária), pronunciou-se o Tribunal Constitucional no ac. nº 304/2008, de 30 de Maio, proferido no processo nº 428/08, publicado em DR 1ª Série, nº 116, de 18 de Junho de 2008 – aliás referenciado quer pelo recorrente quer pelo tribunal recorrido -:
“Antes de se iniciar a apreciação destes fundamentos importa ter presente que o regime das forças de segurança mereceu uma especial atenção do legislador constitucional [artigos 163.º, alínea i), 270.º, 164.º, alínea u), e 272.º, da CRP] devido, por um lado, ao papel fundamental que elas desempenham na garantia de funcionamento da vida em sociedade num Estado de direito e, por outro lado, à possibilidade de afectação dos direitos e liberdades dos cidadãos que pode resultar da sua actividade. Se aquele interesse reclama operacionalidade e eficácia das forças de segurança, o segundo exige que a lei conforme a sua actividade de modo a que não se possam verificar restrições desproporcionadas àqueles direitos e liberdades. Foi a procura da garantia da obtenção de um ponto de equilíbrio entre estes dois interesses, mesmo que cintilante e precário, por força da pressão de temores sociais com sentidos opostos, que motivou o legislador constitucional a consagrar especiais exigências neste domínio, sobretudo ao nível da definição dos órgãos competentes e da forma dos actos normativos necessários à regulamentação de tal matéria.
O legislador constitucional não ignorou que na tensão dialéctica entre os direitos à liberdade e segurança, consagrados no artigo 27.º, n.º 1, da CRP, a actividade das forças de segurança interna do Estado desempenha um papel fundamental que justifica especiais preocupações relativamente
a outros sectores da Administração Pública.
Sendo esta actividade de elevada importância e risco que está na mira das referidas directrizes constitucionais, o conceito constitucional de «forças de segurança» não pode deixar de ser perspectivado numa visão ampla que abranja todos os corpos organizados que tenham por missão, principal ou secundária, garantir a segurança interna, o que inclui obrigatoriamente a prevenção de crimes que ponham em causa o direito à segurança dos cidadãos (artigo 27.º, n.º 1, da CRP)” – sublinhado nosso.
E mais adiante:
“Transpondo para a situação em apreço os dados que se podem porventura retirar de uma possível parametrização da jurisprudência constitucional sobre o que deva ser entendido por ‘regime’, ‘regime e âmbito’ e ‘regime geral’, dir -se -á que, quanto à matéria ínsita na alínea u) daquele artigo, inequivocamente nela se contêm as regras definidoras daquilo que é comum e geral às forças de segurança, as grandes linhas da regulação, a definição dos serviços, organizações ou forças que devem compor as forças de segurança, finalidades e os princípios básicos fundamentais relativos, verbi gratia, à definição do seu sistema global, complexo de poderes, funções, competências e atribuições de cada serviço, força ou organização, inter -relacionação, projecção funcional interna e externa e, ainda, os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos”.
Concluindo-se a fls. 3498, do referido DR, no mesmo acórdão:
“O «regime das forças de segurança» referido na alínea u) do artigo 164.º da CRP deve, pois, ser entendido apenas na acepção de regime geral das forças de segurança, o qual contemplará os fins e os princípios que devem nortear as forças de segurança, a previsão dos corpos que as devem compor, o modo de inter-relacionação entre eles, as grandes linhas de regulação destes corpos e os princípios básicos relativos à interferência das forças de segurança com os direitos fundamentais dos cidadãos”.

3.1. Por sua vez, escreve Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Tomo III, p. 656 e seguintes .

A Constituição começa por individualizar a polícia no quadro da Administração Pública, enquanto aquela actividade administrativa que, de acordo com a experiência e devido às suas funções, mais e maiores riscos apresenta para os direitos de liberdade dos cidadãos. Ainda no âmbito da mesma actividade é mencionada a polícia especialmente destinada a defender os bens jurídicos mais importantes da sociedade do Estado e, por isso, legitimada a mobilizar e utilizar os meios mais agressivos, incluindo a própria força física contra os cidadãos – a polícia de segurança. (…).
Deste modo, a actividade administrativa de polícia ou polícia administrativa em geral – geral no sentido de que se abstrai de qualquer finalidade específica – inclui a polícia de segurança, mas não se esgota nela. (…).
Por outro lado, atenta a necessidade de mobilização de meios coercitivos para combater tais perigos, a Constituição procura rodear o respectivo enquadramento institucional de diversas cautelas: reserva de lei quanto à definição do seu regime, referência expressa à pluralidade de forças de segurança e unidade de organização de cada uma delas por todo o território nacional”.
E a fls. 661 e 664, mesma obra:
“…a delimitação positiva do conceito material de polícia administrativa constitucionalmente relevante exclui a prevenção dos riscos colectivos inerentes a acidentes graves de origem tecnológica ou a situações de catástrofe natural e que é objecto da protecção civil, sem prejuízo da possibilidade de polícias, em sentido orgânico, poderem exercer tal actividade.
De fora fica também a polícia judiciária, igualmente entendida como actividade, uma vez que a mesma, em regra, se inicia depois do delito em ordem a viabilizar a punição do responsável. É certo que a actuação das autoridades pode frequentemente relevar quer de uma actividade de prevenção – revestindo por isso natureza policial -, quer de uma actividade dirigida à descoberta da autoria de um crime – revestindo por isso natureza de investigação criminal. (…) No entanto, a actividade específica correspondente à citada polícia judiciária traduz-se na investigação de delitos e é toda ela orientada em função da acção penal, nomeadamente da reunião de meios probatórios que permitam decidir sobre a dedução de uma acusação e a sua posterior sustentação em Tribunal. É uma actividade auxiliar da realização da justiça e, por isso mesmo, dirigida por autoridades judiciárias.”

3.2 Se olharmos agora para a criação da ASAE através do DL nº 237/2005, de 30 de Novembro, logo o seu preâmbulo nos dá uma ideia da sua natureza.
Por sua vez, o artigo 2º define a sua natureza jurídica e missão, do seguinte modo:
1. A ASAE é um serviço da administração directa do Estado, dotado de autonomia administrativa, na dependência hierárquica do ministro que tutela a área da economia.
2. A ASAE é a autoridade administrativa nacional especializada no âmbito da segurança alimentar e da fiscalização económica.

De onde resulta que, quer perante esta natureza jurídica quer das atribuições concretas enumeradas no artigo 5º, a ASAE não é um organismo que deva integrar-se no conceito de força de segurança para os efeitos do disposto no artigo 164º, alínea u), da CRP.

3.3. Com a publicação do DL nº 208/2006 de 27 de Outubro – Lei Orgânica do Ministério da Economia e da Inovação -, é dedicado o artigo 15º desta lei à ASAE, onde, mais uma vez, se reafirma a sua natureza e missão:

1 - A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, abreviadamente designada por ASAE, tem por missão a avaliação e comunicação dos riscos na cadeia alimentar, bem como a fiscalização e prevenção do cumprimento da legislação reguladora do exercício das actividades económicas nos sectores alimentar e não alimentar, exercendo funções de autoridade nacional de coordenação do controlo oficial dos géneros alimentícios e organismo nacional de ligação com outros Estados membros.
2 - A ASAE prossegue as seguintes atribuições:
a) Emitir pareceres científicos e técnicos, recomendações e avisos, nomeadamente em matérias relacionadas com a nutrição humana, saúde e bem-estar animal, fitossanidade e organismos geneticamente modificados;
b) Caracterizar e avaliar os riscos que tenham impacto, directo ou indirecto, na segurança alimentar, colaborando, na área das suas atribuições com a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos;
c) Fiscalizar a oferta de produtos e serviços nos termos legalmente previstos, bem como o cumprimento das obrigações legais dos agentes económicos, procedendo à investigação e instrução de processos de contra-ordenação cuja competência lhe esteja legalmente atribuída;
d) Fiscalizar todos os locais onde se proceda a qualquer actividade industrial, turística, comercial, agrícola, piscatória ou de prestação de serviços;
e) Apoiar as autoridades policiais na prevenção e punição de práticas ilícitas, em matéria de jogos de fortuna e azar, em articulação com os serviços de inspecção de jogos do Instituto do Turismo de Portugal, I. P.
3 - A ASAE é dirigida por um inspector-geral, coadjuvado por três sub-inspectores-gerais, um dos quais exerce as funções de director científico para a área dos riscos da cadeia alimentar, cargos de direcção superior de primeiro e segundo graus, respectivamente.
3.4. Finalmente, com o Decreto-lei nº 274/2007, de 30 de Julho, foram feitos “alguns ajustamentos ”.
Mas, analisando o teor dos artigos 1º a 3º, verificamos que a ASAE continua a ser um serviço central da administração directa do Estado, dotado de autonomia administrativa e continua a ser a entidade nacional responsável pela avaliação e comunicação dos riscos na cadeia alimentar e autoridade coordenadora do controlo oficial dos géneros alimentícios.
Poder-se-á dizer que em matéria económica, nomeadamente de jogo ilícito, passou da situação de “ apoiar as autoridades policiais na prevenção e punição de práticas ilícitas, em matéria de jogos de fortuna e azar, em articulação com os serviços de inspecção de jogos do Instituto do Turismo de Portugal, I. P. para a situação de “desenvolver acções de natureza preventiva e repressiva em matéria de jogo ilícito, promovidas em articulação com o Serviço de Inspecção de Jogos do Turismo de Portugal, I. P. – alínea aa), do artigo 3º, do Decreto-lei nº 274/2007, de 30 de Julho.
O que ainda de relevante se acrescentou, foi o teor do artigo 15º, do seguinte teor:
“1. A ASAE detém poderes de autoridade e é órgão de polícia criminal.
2. São autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos no Código de Processo Penal:
a) O inspector-geral;
b) Os subinspectores-gerais…”.
Ou seja, a ASAE foi expressamente qualificada/classificada de órgão de polícia criminal, atribuindo a alguns dos seus dirigentes competências de autoridade de polícia criminal.
3.5. Merece, assim, quer o devido destaque quer a nossa concordância, o decidido em 1ª instância, ao afirmar-se:
“Estando-se aqui no âmbito de um processo criminal, não poderá deixar de se entender que a actividade da ASAE, especificamente levada a cabo nestes autos, pois que só essa aqui releva, se resume exactamente à actividade própria de um órgão de polícia criminal e que, no essencial, se limitou ao levantamento do auto de notícia por factos ocorridos e susceptíveis de integrar, entre outros, uma infracção criminal, à detenção e constituição como arguido de B…………….. e à apreensão dos produtos em causa.
Com efeito, atento o que supra ficou dito e, desde logo, por a actuação da ASAE, neste âmbito, se enquadrar, em nosso entender e salvo melhor opinião, naquela terceira actividade a que o Professor Jorge Miranda faz corresponder à actividade essencialmente levada a cabo pela polícia judiciária e que é toda ela orientada em função da acção penal, ter-se-á de concluir não ser o artigo 15º do Decreto-Lei 274/2007 de 30 de Julho organicamente inconstitucional por violação do disposto na alínea u) do artigo 164º da Constituição da Republica Portuguesa, por esta matéria em concreto não integrar a reserva absoluta de acto legislativo da Assembleia da República, pois que a ASAE actuando aqui como órgão de polícia criminal, desde logo, nos termos e para os efeitos do Código de Processo Penal, direccionada para a acção penal e não já no âmbito de uma actividade essencialmente ou primeiramente preventiva, não se enquadra naquele conceito de forças de segurança, mas antes num conceito distinto daquele, enquanto órgão de polícia criminal, voltada para a investigação criminal e à acção penal”.

4. É agora o momento de tratar a ASAE enquanto órgão de polícia criminal e alguns dos seus membros como autoridade de polícia criminal.
Sem olvidar que já os artigos 1º n.º 3 e 28º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei nº 14/93 de 18 de Janeiro estabeleciam que “ A IGAE é autoridade e órgão de polícia criminal” e que “compete, genericamente, ao pessoal da carreira de inspecção superior e da carreira de inspecção exercer funções de autoridade de polícia criminal, no âmbito das infracções antieconómicas e contra a saúde pública”, sendo certo que a ASAE veio acolher todas as competências da IGAE, a verdade é que no DL nº 237/2005, essa qualidade não ficou expressa, o que só sucedeu com o DL nº 274/2007.
4.1. Ora, perante esta “nova” ou expressa realidade jurídica da ASAE como órgão de polícia criminal, criada por decreto lei (da competência do Governo), cumpre averiguar, pois, se a mesma colide com a violação do disposto no artigo 165º, alínea b), da CRP.
A noção de órgão de polícia criminal é dada pelo artigo 1º, alínea c), do CPP, ao dizer que se considera “órgão de polícia criminal” todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código”.
E também não é despicienda a menção do artigo 15º, nº 2, do DL nº 274/2007, ao dizer que são autoridades de polícia criminal, nos termos e para os efeitos no Código de Processo Penal…
De onde é legítimo concluir que esta designação do DL 274/2007 da ASAE como órgão de polícia criminal, tem como efeito atribuir-lhe as competências do artigo 1º, alínea c), do CPP.
Deste modo, é possível analisar a questão da eventual inconstitucionalidade da ASAE – enquanto no exercício ou desempenho da actividade que originou os presentes autos -, sob duas perspectivas:
4.1.1. Inconstitucionalidade na medida em que, enquanto órgão de polícia criminal não pode exercer as funções que exerceu.
4.1. 2. Inconstitucionalidade na medida em que lhe foi atribuída a natureza de órgão de polícia criminal, por acto legislativo - Decreto-lei – emanado de órgão – Governo -, sem competência constitucional para o efeito.
5. Quanto ao primeiro aspecto, julgamos não haver dúvidas que o órgão de polícia criminal pode não só levar a cabo as tarefas ou actos ordenados pela autoridade judiciária como as que o Código de Processo Penal permita ou exija.
E, de entre estas, estão necessariamente as que se prendem com as praticadas nos presentes autos. É o que resulta necessariamente da conjugação do disposto nos artigos 248º, 250º, 251º, 255º, 256º, 257º e 381º, todos do CPP.
5.1. Uma explicação se impõe, na medida em que quer o artigo 255º - detenção em flagrante delito -, quer o artigo 381º - quando tem lugar o julgamento em processo sumário -, a lei menciona entidade policial.
Parece-nos, sem prejuízo de outros entendimentos, que a expressão ou designação usada abrange uma noção ampla de polícia, aqui cabendo as polícias que possam ser consideradas como “forças de segurança “ – PSP, GNR - ,mas também as polícias consideradas como órgão de polícia criminal, que, para além daquelas , temos, no presente caso, a ASAE.
É que, se assim não fosse, não se compreenderia, por um lado, que um membro da ASAE discriminado no nº 2, do artigo 15º, do DL 274/2007, na sua qualidade de autoridade de polícia criminal, pudesse ordenar a detenção de um cidadão fora de flagrante delito, ao abrigo do artigo 257º, do CPP, mas essa mesma autoridade ou outra, do órgão ASAE, não pudesse deter o mesmo cidadão, na situação de flagrante delito do artigo 255º, do CPP.
Por sua vez, o legislador do CPP não foi rigoroso em tal diferenciação, pois se no citado artigo 381º, refere a detenção por entidade policial, já no artigo 385º, do mesmo diploma, no caso de libertação do arguido por impossibilidade de apresentação imediata ou ao juiz no prazo de 48 horas, o mesmo é libertado pelo órgão de polícia criminal que o sujeita a termo de identidade e residência e o notifica para comparecer perante o Ministério Público.
Finalmente, diga-se que na Lei nº 21/2000, de 10 de Agosto – Lei de Organização da Investigação Criminal - tratada no ponto seguinte -, artigo 3º, nºs 5 e 6, é referenciada a competência específica da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública, enquanto órgãos de polícia criminal, a prevenção e a investigação dos crimes…
6. Quanto ao segundo aspecto, afigura-se relevante trazer aqui à colação a Lei nº 21/2000, de 10 de Agosto – Lei de Organização da Investigação Criminal.
Esta Lei, depois de definir,
- No artigo 1º, que a investigação criminal compreende o conjunto de diligências que, nos termos da lei processual penal visam averiguar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade descobrir e recolher as provas, no âmbito do processo;
- No artigo 2º, as funções ou atribuições dos órgãos de polícia criminal,
- Define no artigo 3, o seguinte:
1 - São órgãos de polícia criminal de competência genérica:
a) A Polícia Judiciária;
b) A Guarda Nacional Republicana;
c) A Polícia de Segurança Pública.
2 - São órgãos de polícia criminal de competência específica, todos aqueles a quem a lei confira esse estatuto.
Ou seja, esta lei da Assembleia da República, qualifica de órgãos de polícia criminal, três entidades de competência genérica, a quem atribui igualmente funções ou competências.
E remete para a lei a criação ou qualificação de órgãos de polícia criminal de competência específica.
Ora, lei, em sentido amplo, é o acto legislativo quer da Assembleia – Lei -, quer do Governo – Decreto-Lei -, tendo ambos igual valor, desde que emanados com a respectiva competência – v. artigo 112º, da CRP.
De onde é legitimo concluir que a criação de um órgão de polícia criminal de competência específica, está na esfera de competência do órgão de soberania governo, através de um acto legislativo – decreto-lei, por dimanação da própria Lei da Assembleia da república.
6.1. Esta Lei nº 21/2000, foi entretanto substituída pela Lei nº 49/2008, de 27 de Agosto, que no seu artigo 3º, nº 1, continua a identificar como órgãos de polícia criminal de competência genérica, a Polícia Judiciária, a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública.
Mas não deixa de ser relevante a nova redacção do seu nº 2, ao dizer que:
“Possuem competência específica todos os restantes órgãos de polícia criminal”.
Conhecendo este legislador a actual existência de outros órgãos de polícia criminal para além da Polícia Judiciária, da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública, como é precisamente o caso da ASAE, temos para nós como boa a interpretação de que este mesmo legislador aceitou como acto consumado a natureza de órgão de polícia criminal de competência específica. E pode-se ainda dizer que este mesmo legislador entendeu como normal e dentro dos limites de competência conferidos por lei, a criação da ASAE como órgão de polícia criminal, nos termos da então em vigor, Lei nº 21/2000..
7. São estes, no essencial, os fundamentos por que pugnamos em não considerar a actuação da ASAE, nos presentes autos, como ferida de inconstitucionalidade nos termos peticionados pelo recorrente, pois que a mesma agiu enquanto órgão de polícia criminal, criado por acto legislativo emanado de órgão de soberania competente para o efeito e, como órgão de polícia criminal, pode, na situação concreta, praticar todos os actos que praticou: deter o infractor, elaborar auto de notícia e apresentá-lo em Tribunal para julgamento em processo sumário ou notificá-lo para o efeito, conforme as regras processuais aplicáveis.

2ª Questão: A atenuação especial da pena e a medida concreta desta
1. Suscita o recorrente a possibilidade e o dever de atenuação especial da pena, nos termos previstos nos artigos 72º e 73º, do Código Penal.
Os pressupostos de uma atenuação especial são os mencionados no nº 1, do citado artigo 72º, ao dizer:

“O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena “.

Sobre esta matéria diz Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, fls. 306:
“A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto resultante da actuação da (s) circunstância (s) atenuante (s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue -, quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar: para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios “.

2. Ora, atento os limites da moldura penal do crime por que o recorrente foi condenado, a mesma permitiu perfeitamente ao julgador aplicar uma pena relativamente leve, sem qualquer necessidade de recurso a uma atenuação extraordinária. Convém anotar que o recorrente foi punido apenas a título de negligência cuja moldura penal é bastante diferente da conduta dolosa.
Por sua vez, o circunstancialismo fáctico referenciado pelo recorrente, não deixou de ser ponderado pelo tribunal, quer na vertente da quantidade dos produtos, no não perigo concreto para a integridade física de outrem e a integração social e profissional do recorrente.
Pelo que a medida concreta da pena se mostra perfeitamente ajustada à pequena gravidade dos factos que, apesar disso, não justifica uma isenção de pena, como reclama o recorrente, pois apesar de tudo, a prevenção geral exige a aplicação da sanção.

3ª Questão: a publicidade da sentença
Por último, manifesta-se o recorrente contra a ordem de publicação da sentença ordenada pelo tribunal a quo.

Esta foi justificada nos seguintes termos:
“Nos termos do art.° 24º.°, n.° 4 do DL n.° 28/84 de 20 de Janeiro a sentença será publicada, sendo esta uma pena acessória — cfr. art.° 8.°, al. a) do referido diploma.
Relembrando as necessidades de prevenção geral que estão inerentes a este tipo de ilícito e para que a reacção contra-fáctica perante a violação da norma incriminadora seja ainda mais profícua, o Tribunal entende que esta pena acessória é necessária, proporcional e adequada ao caso em concreto, determinando, pois, a sua aplicação, o que se decreta em conformidade”.

Tendo a decisão de publicação a nossa concordância, apenas acrescentaremos o seguinte:
Dada a natureza do crime em causa, merece a comunidade em geral e a sua saúde em particular, uma especial protecção e também o direito à informação sobre o modo de agir dos operadores comerciais na forma e na diligência da conservação dos produtos comercializados.
Compete aos cidadãos, já com a devida informação, livremente optar ou fazer as suas escolhas na aquisição dos produtos pretendidos e na confiança que têm ou esperam do lado do fornecedor. Grave seria sonegar a informação. A publicidade da sentença significa ainda uma forma de prevenção imposta ao recorrente, como forma de melhorar a sua diligência e preocupação em manter os produtos alimentícios em bom estado de conservação.
Finalmente, esta preocupação justifica-se ainda porque, como resulta dos factos provados e do processo, o recorrente já sofreu anteriormente, uma condenação por crime contra a genuidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, que transitou em julgado em Janeiro de 2003.

Decisão
Por todo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas a cargo do arguido/recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UCs..

Porto, 21.10.2009
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto