Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7310/02.0TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00043061
Relator: MELO LIMA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200910217310/02.0TDPRT.P1
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO - LIVRO 596 - FLS. 30.
Área Temática: .
Sumário: A despenalização do crime de abuso de confiança fiscal operada pelas alterações ao artigo 105º do RGIT, introduzidas pela Lei 64-A/2008, de 31/12, não abrange o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 7310/02.0TDPRT.P1
Relator: MeloLima

Acordam em Conferência na 1ªSecção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório

1. Condenado nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) que, sob o nº 7310/02.0 correm termos pelo ….º Juízo (….ªSecção) dos Juízos Criminais do Porto, como autor material de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, pº e pº pelas disposições conjugadas dos artigos 9º/2, 27º-B e 24º/1 do DL 20-A/90 de 15/1, na redacção que a este diploma foi aportada pelos Dl 394/93 de 4/11 e 140/95 de 14/6 ([1]) o arguido B……………, com fundamento de que os factos por que tinha sido condenado haviam sido, entretanto, descriminalizados, requereu fossem declarados cessados todos os efeitos da decisão condenatória, com os subsequentes arquivamento dos autos e cancelamento do registo da pena.

2. Sobre esta pretensão incidiu decisão judicial de indeferimento, sob a justificação de que a despenalização prevista no nº1 do artigo 105º do RGIT não é aplicável aos crimes de abuso de confiança à Segurança Social.

3. Inconformado, recorre o arguido, rematando a motivação do seu recurso com as seguintes conclusões:

3.1 A remissão efectuada pelo nº1 do artigo 107º para os nº 1 e 5 do RGIT não pode ser interpretada literalmente, no sentido de que a remissão seria tão-somente para as penas, sob pena de insanável contradição.
3.2 Da interpretação histórica e sistemática das mencionadas disposições legais resulta que a remissão feita pelo nº1 do artigo 105º do RGIT teve não só por objecto as penas como os pressupostos quantitativos da sua aplicação.
3.3 A intenção deliberada do legislador foi a de atribuir a mesma censurabilidade penal ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social e ao crime de Abuso de confiança Fiscal, fazendo-a depender dos mesmos montantes não entregues à Segurança Social e à Administração Tributária, respectivamente.
3.4 Do ponto de vista de uma interpretação objectivista da lei, configuraria uma incongruência intra-sistemática (violadora do princípio da unidade e coerência do sistema jurídico) a qualificação de ambos os tipos de crime com base na não entrega de prestações do mesmo montante (superior a €50.000,00) e a punição dos tipos base com fundamento na omissão de entrega de prestações de montantes substancialmente diferentes (superior a €7.500,00 e a €0,00, respectivamente).
3.5 É, por isso, inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação previstos no artigo 18º /2 e 3 da CRP, a norma que se retira da interpretação conjugada dos artigos 105º e 107º do RGIT segundo a qual o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é punível com a pena prevista no nº1 do artigo 105 quando o montante das contribuições não entregue à Segurança Social seja igual ou inferior a €7.500,00.
3.6 O entendimento de que os factos devem continuar a ser punidos criminalmente porque não são sancionáveis como contra-ordenação viola o princípio da necessidade que se concretiza no princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade do direito penal.
3.7 Face a tudo quanto antecede, a conduta pela qual o arguido foi condenado deve ser julgada descriminalizada e a execução da pena cessada.
3.8 Ao entender de modo diferente, o douto despacho recorrido fez errada interpretação e aplicação das normas consagradas nos artigos 18º/2 e3 da CRP, 105º e 107º do RGIT e 2º/2 do Código Penal.
3.9 Em consequência deve o douto despacho recorrido ser revogado, declarando-se cessados todos os efeitos da decisão condenatória do Arguido e determinando-se o arquivamento dos autos.
4. Respondeu o Exmo. Procurador Adjunto, dizendo, em síntese, que a limitação dos €7.500,00 não é aplicável ao crime de abuso de confiança à Segurança Social, com os seguintes fundamentos:
4.1 O Artigo 107º do RGIT não sofreu qualquer alteração e contém, no seu nº1, a completa descrição do tipo legal de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, sem necessidade de recurso ao artigo 105º do RGIT;
4.2 A remissão efectuada pelo nº2 do artigo 107º do RGIT para o artigo 105º, cinge-se às penas aplicáveis e não à conduta;
4.3 Os regimes do abuso de confiança fiscal e o de abuso de confiança relativamente à Segurança Social não são equiparáveis, diferindo, desde logo, quer quanto aos bens jurídicos protegidos, quer quanto ao regime punitivo;
4.4 A procura da mens legis não poderá partir da conclusão da verificação de lapso na elaboração da legislação antes tendo de se partir da ideia de que as alterações introduzidas tiveram um propósito, sendo este o de autonomizar o regime punitivo das infracções contra a Segurança Social relativamente às demais infracções tributárias.
4.5 A entender-se pela aplicabilidade do novo limite previsto no nº1 do artigo 105º para os casos de abuso de confiança contra a Segurança Social, verificar-se-ia uma despenalização em toda a linha dos comportamentos, pois inexiste qualquer previsão para o não pagamento dos montantes devidos à Segurança Social (as contra-ordenações previstas no artigo 114º do RGIT não são aplicáveis senão a dívidas fiscais.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer onde sustenta que o recurso não merece provimento, com o argumento de que:
«a nova redacção conferida ao artigo 105º nº1 do RGIT pelo artigo 113º da Lei 64-A/2008 de 31.12.2009, introduziu uma (mais uma) condição de punibilidade, vindo, dada a remissão feita in fine no artigo 107º nº1 do RGIT (abuso de confiança contra a segurança social) para o Artigo 105º do RGIT. A hermenêutica do preceito, à luz desde logo do argumento literal, permite… dar uma resposta negativa. Com efeito, claramente a remissão plasmada na parte final do artigo 107º nº1 do RGIT para o artigo 105º do mesmo diploma legal, restringe-se única e exclusivamente à aplicabilidade das molduras penais previstas no artigo 105º nº 1 e 5 do RGIT e ao preceituado nos seus nº 4 e 7. De resto, tal é concordante, com o facto de as condutas de abuso de confiança (fiscal) ora despenalizadas, terem passado a constituir ilícito contra-ordenacional, o que não se passou no domínio do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ficando as mesmas se fosse possível ter como boa a interpretação propugnada pelo recorrente, reduzidas à total impunidade, o que, em tempos de redobrados esforços no sentido da sustentabilidade do sistema, não se afigura, de todo, que possa ter sido opção do legisldor.»

6. Notificado nos termos do Artigo 417º/2, o Recorrente respondeu:

6.1 A interpretação literal do nº1 do artigo 107º segundo a qual este remete apenas para as molduras penais previstas nos nº 1 e 5 do artigo 105º do RGIT acarretaria uma contradição nos próprios termos.Com efeito,
6.2 As sanções penais previstas no nº1 e no nº5 daquele artigo 105º não são coincidentes, pelo que se o nº1 do artigo 107º remetesse apenas para elas a sua estatuição seria ilógica e incompreensível. Ao invés,
6.3 Afigura-se evidente que aquela remissão é para as molduras penais mas no sentido de que se aplicará ora uma ora outra em face dos montantes não entregues e do seu enquadramento na previsão do nº1 ou na do nº5 do artigo 105º do RGIT. Portanto,
6.4 A remissão é também para os elementos objectivos do tipo, designadamente os pressupostos quantitativos de punibilidade e de agravação da pena.
Quanto ao argumento de que a despenalização daquela conduta a deixaria sem sanção, nomeadamente de natureza contra-ordenacional:
6.5 Quando da entrada em vigor da nova redacção dada ao nº4 do artigo 105º do RGIT pela Lei 53-A/2006 de 29/12, o próprio legislador deixou sem sanção o pagamento de contribuições devidas à Segurança Social feito ao abrigo do disposto na alínea b) desse número, ao mesmo tempo que consagrava a punibilidade do pagamento de prestações tributárias devidas à Administração Tributária, também feito ao abrigo daquele preceito legal, com o valor da coima aplicável.
6.6 O que permite concluir que para o legislador é mais grave o abuso d confiança fiscal do que o abuso contra a Segurança Social.
6.7 De acordo com os princípios da subsidiariedade e da intervenção mínima do Direito Penal, o facto de uma conduta não se encontrar punida como contra-ordenação não pode servir de argumento para que seja punida como crime.
6.8 Porque sempre existiu uma equiparação entre as molduras penais e os pressupostos quantitativos da punição do abuso de confiança fiscal e do abuso de confiança contra a Segurança Social – dizer, resulta da interpretação lógica e sistemática do art.107º/1 do RGIT que este sempre remeteu também para os pressupostos quantitativos e não apenas para a moldura penal consagrados no nº1 do art. 105º/1 - importará concluir, também agora, que na mens legislatoris não esteve o propósito de mudar tal equiparação de modo que será de considerar que, no seu pensamento, a punição da não entrega de contribuições à Segurança Social de montantes iguais ou inferiores a €7.500,00 não merece censura penal.

7. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação de direito

1. O objecto do presente recurso reconduz-se às duas seguintes questões (de direito):

i. Foi intenção deliberada do legislador atribuir a mesma censurabilidade penal ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social e ao crime de abuso de confiança fiscal, fazendo-a depender dos mesmos montantes não entregues à Segurança Social e à Administração Tributária, respectivamente?
ii. É inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, a norma que se retira da interpretação conjugada dos artigos 105º e 107º do RGIT segundo a qual o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é punível com a pena prevista no nº1 do artigo 105º do RGIT quando o montante das contribuições não entregue à Segurança Social seja igual ou inferior a €7.500,00?

2. Condenado, por sentença de 24.11.2006, em pena de multa, pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, o ora Recorrente requereu, ao abrigo do artigo 2º/2 do C. Penal, fossem declarados cessados todos os efeitos daquela decisão condenatória, com o subsequente arquivamento dos autos e o eventual cancelamento do registo da pena, assim fundamentado:
i. A nova redacção dada ao artigo 105º/1 do RGIT pelo artigo 113º da Lei 64-A/08 de 31/12 – estabelecendo o limite de €7.500,00 para o crime de abuso de confiança fiscal – é igualmente aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, por força dos nºs 1 e 2 do artigo 107º do mesmo RGIT;
ii. As prestações devidas e não entregues à Segurança Social por que o Recorrente foi condenado, são de valor inferior a €7.500,00; deste modo,
iii. Os factos pelos quais foi condenado mostram-se descriminalizados.

3. Sobre esta pretensão, incidiu a seguinte decisão judicial, posta em crise no presente recurso:
“Com a entrada em vigor da Lei nº64-A/2008 – Orçamento do Estado para 2009 -, no passado dia 1 do passado mês de Janeiro, foram introduzidas, mais uma vez, alterações ao Regime Geral das Infracções Tributárias, designadamente à redacção do artigo 105º.
Dispõe, agora, o nº1 do citado artigo que “Quem não entregar à Administração Tributária total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7.500,00, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”
Foi também revogado o nº6 do artigo 105º.
Podemos então concluir que se encontram descriminalizadas as condutas previstas no nº1 cuja prestação – cfr. Nº 7 do citado preceito legal – seja inferior a tal montante.
Todavia, no caso em apreço estamos perante a imputação e condenação de um crime de abuso de confiança à Segurança Social cujo tipo legal está definido no nº1 do artigo 107º do RGIT.
Seria caso de pensar que estariam também descriminalizadas tais condutas. No entanto, após uma análise cuidada da remissão prevista no nº1 do citado artigo concluímos que tal não sucedeu.
Com efeito, a remissão a que alude o artigo 107º nº1 é apenas referente à pena prevista nos nºs 1 e 5 do artigo 105º do RGIT sendo que o tipo legal de crime – elementos objectivos e subjectivo do tipo – é autonomamente previsto no nº1 do artigo 107º
Por outro lado, o nº2 do artigo 107 apenas faz remissão para o disposto nos nºs 4, 6 e 7.
Não tendo sido expressamente alterada a redacção do nº1 do artigo 107º o tipo legal mantém-se com a redacção original do RGIT.
Não obstante poder ocorrer que tal omissão se deveu a lapso do legislador, o que é certo e que não cumpre ao julgador alterar a redacção legal quando a interpretação não tiver um mínimo de correspondência na letra da lei.
Todavia entendemos que a omissão da previsão em relação ao tipo legal de crime previsto no artigo 107º do RGIT foi intencional.
Com efeito, tais tipos legais de crime não só protegem bens jurídicos diferentes como têm previsões especiais e diferentes.
Caso assim não se entendesse, não faria sentido a previsão legal do crime constar de dois artigos diferentes, podendo um único preceito legal prever a situação de abuso fiscal e de abuso à segurança social. Ora, tais tipos legais foram, desde sempre, diferenciados.
Por outro lado, não prevê o RGIT a imputação a título de contra-ordenação para o crime de abuso de confiança à Segurança Social à semelhança do que acontece com o artigo 114º do referido diploma legal. Ou seja, caso se considerasse aplicável, aqui, a descriminalização, a omissão da entrega das quantias devidas até €7.500,00 ficaria sem qualquer tutela, seja penal seja como ilícito contra-ordenacional.
Entendemos assim, concordando com a promoção que antecede e na esteira do entendimento perfilhado no Ac. do TRP de 25.03.2009, que a despenalização prevista no nº1 do artigo 105º do RGIT não é aplicável aos crimes de abuso de confiança à Segurança Social.
Por tudo o exposto indefere-se o requerido…”

4. Respondeu, no Tribunal recorrido, o Exmo. Procurador Adjunto, defendendo que a limitação dos €7.500,00 não é aplicável ao crime de abuso de confiança à Segurança Social fundamentado na posição unanimemente assumida nas Procuradorias Distritais de Lisboa e Porto e no DIAP de Coimbra, sintetizável nos pontos deixados descritos em I- 4.

5. Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto confirmou a posição assumida pelo MºPº na instância recorrida, esclarecendo como se deixa tarnscrito:
“A hermenêutica do preceito, à luz desde logo do argumento literal, permite… dar uma resposta negativa. Com efeito claramente a remissão plasmada na parte final do artigo 107º nº1 do RGIT para o artigo 105º do mesmo diploma legal, restringe-se única e exclusivamente à aplicabilidade das molduras penais previstas no artigo 105º nº1 e 5 do RGIT e ao preceituado nos seus nº 4 e 7. De resto, tal é concordante com o facto de as condutas de abuso de confiança (fiscal) ora despenalizadas, terem passado a constituir ilícito contra-ordenacional, o que não se passou no domínio do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ficando as mesmas, se fosse possível ter como boa a interpretação propugnada pelo Recorrente, reduzidas à total impunidade, o que em tempos de redobrados esforços no sentido da sustentabilidade do sistema, não se afigura, de todo, que possa ter sido opção do legislador”

6. O Recorrente estrutura fundamentalmente a sua pretensão de ver judicialmente reconhecido que o limite dos €7.500,00 a que alude o nº1 do artigo 105º do RGIT [Aprovado pela Lei 15/2001 de 5/6, na Red. Introduzida pelo Artigo 113º da Lei 64-A/2008 de 31/12] é aplicável ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social previsto no artigo 107º do mesmo RGIT, nos seguintes argumentos, sob duas linhas dominantes de pensamento, assim por referência à mens legislatoris, assim no apelo a uma interpretação objectivista da lei:
● A remissão efectuada pelo nº1 do artigo 107º para os nº 1 e 5 do RGIT não pode ser interpretada literalmente no sentido de que a remissão seria tão somente para as penas: se assim fosse existiria uma contradição insanável na estatuição do nº1 do artigo 107º uma vez que as penas previstas nos nº1 e 5 do artigo 105º são distintas. Ao invés,
● A remissão é para as penas aplicáveis face aos montantes referidos nos nº 1 e 5 do artigo 105º, servindo estes montantes para delimitar as condições de aplicação das respectivas penas, de sorte que foi intenção deliberada do legislador manter a equiparação de regimes punitivos em função dos montantes não entregues, atribuindo igual censurabilidade penal ao crime de abuso de confiança contra a segurança social e ao crime de abuso de confiança fiscal.
● Do ponto de vista de uma interpretação objectivista da lei, configuraria uma incongruência intra-sistemática (violadora do princípio da unidade e coerência do sistema jurídico) a qualificação de ambos os tipos de crime com base na não entrega de prestações do mesmo montante (superior a €50.000,00) e a punição dos tipos base na omissão de entrega de prestações de montantes substancialmente diferentes (superior a €7.500,00 e a €0,00, respectivamente)

7. Como decidir?
Não é a primeira vez que este Tribunal de Recurso é chamado a conhecer da questão suscitada em termos de saber se a despenalização do crime de abuso de confiança fiscal operada pelas alterações ao artigo 105º do RGIT introduzidas pela Lei 64-A/2008 de 31/12 abrange também o abuso de confiança contra a Segurança Social.

São, pari passu, conhecidas as soluções divergentes oferecidas. ([2])

7.1 Atalhando, sem prejuízo da consideração pela argumentação expendida na Motivação do Recurso, adere-se por inteiro à tese que tem por certo que o limite mencionado no artigo 105º/1 do RGIT não é aplicável no que se refere às dívidas para com a Segurança Social.
Em abono, as seguintes ideias-fundamento, aliás já desenvolvidas quer em sede de contra-alegações neste Recurso quer em outras decisões proferidas neste Tribunal da Relação e publicitadas no sítio www.dgsi.pt:

● Do artigo 107º/1 do RGIT constam os elementos objectivos do tipo-do-ilícito abuso de confiança contra a segurança social, tal como no artigo 105º/1 do mesmo diploma legal constam enunciados os elementos objectivos do tipo-do-ilícito abuso de confiança fiscal.

● Em causa, visto a respectiva inserção sistemática, dois tipos legais autónomos/distintos: inseridos um e outro na Parte III - Das Infracções Tributárias em Especial e no Título I Crimes Tributários, integra-se o abuso de confiança fiscal no Capítulo III - Crimes Fiscais enquanto que o abuso de confiança contra a Segurança Social se integra no Capítulo IV – Crimes Contra a Segurança Social.

● Tipos legais autónomos que, sob diferente teleologia, pretendem tutelar bens jurídicos diferentes: o abuso de confiança contra a Segurança Social a tutelar o erário da Segurança Social, numa lógica de afectação das receitas provenientes das contribuições dos trabalhadores, a fins específicos de benefício e de necessidade de garantia do respectivo equilíbrio financeiro; no abuso de confiança fiscal, numa lógica de disposição sobre a receita que o Estado se propõe cobrar para satisfação de necessidades diferenciadas, está em causa o regular e efectivo funcionamento do sistema fiscal e de politica social estabelecidos pelo Estado.

● A remissão feita no artigo 107º para o artigo 105º/ 1 e 5 circunscreve-se à parte respeitante à sanção aplicável e não à descrição da conduta que preenche o tipo de ilícito.
Ressalve-se, neste particular, que aquele a quem compete o exercício da iuris dictio não pode deixar de ter presente, em última instância, que subjacentes à normação jurídica hão-de estar seguramente observados, os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança (elementos constitutivos do Estado de Direito) na ideia da exigência da “precisão ou determinabilidade dos actos normativos” e/ou da conformação material e formal destes em “termos linguisticamente claros, compreensíveis e não contraditórios» ([3])
Nesta ordem de ideias – dizer, ainda, no pressuposto razoável da fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência do acto normativo sob referência – não se vê fundamento para que o intérprete e/ou aplicador do direito deva estender o pensamento do legislador a partir de uma sua suposta falha quando não chegou a dizer o que efectivamente queria dizer.
Neste conspecto, entende-se, se fosse pretensão do Legislador aplicar a alteração ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, em obediência aos sobreditos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança tê-lo-ia determinado expressamente.
Não o fez. Porquê, fazê-lo, agora, em sua substituição (ou sobreposição), o aplicador do direito? ([4])
● Acolhendo, finalmente, o argumento aduzido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto Parecer, dir-se-á que a remissão plasmada na parte final do artigo 107º nº1 do RGIT para o artigo 105º do mesmo diploma legal, no sentido de que se restringe única e exclusivamente à aplicabilidade das molduras penais previstas no artigo 105º nº1 e 5 do RGIT e ao preceituado nos seus nº 4 e 7, “é concordante com o facto de as condutas de abuso de confiança (fiscal) ora despenalizadas, terem passado a constituir ilícito contra-ordenacional, o que não se passou no domínio do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, ficando as mesmas, se fosse possível ter como boa a interpretação propugnada pelo Recorrente, reduzidas à total impunidade”
Na verdade, o regime contra-ordenacional relativo ao sistema de segurança social que se encontra em legislação especial, subtraído à disciplina do RGIT, não contempla a falta de entrega de contribuições à Segurança Social como contra-ordenação, de sorte que enquanto a não entrega de prestações tributárias não superiores a €7.500,00 constitui contra-ordenação prevista no artigo 114º/1 do RGIT, anão entrega à Segurança Social de prestações inferiores àquela deixaria de ser punida por não estar expressamente contemplada na legislação que regula o regime contra-ordenacional da Segurança Social.
A fazer lembrar a figura da “Proibição por defeito”ou do “defeito de protecção”. ([5])
Porquê?
Pela sua inteira justeza, transcreve-se do Ac. deste Tribunal da Relação de 07.10.2009 (Processo 2416/06.0TAMAI.P1// Relator: Luís Teixeira):
“Não tendo o legislador expressamente referenciado ou dado sinais expressos nesse sentido de aplicação do limite de €7.500,00 ao tipo do artigo 107º/1, não pode o aplicador do direito, numa interpretação sistémica e conjuntural da alteração em causa - .. – deixar de levar em conta que são prestações devidas a entidades diferentes, de natureza diferente, que prosseguem fins igualmente diferentes e que, precisamente pelo fim prosseguido pela Segurança Social, não é sequer de presumir que o legislador pretendeu ou previu a aplicação deste limite à segurança social, numa altura em que se discute, se questiona e se pretende essencialmente assegurar e defender a sustentabilidade da segurança social, objectivo que ganhou foros de princípio fundamental do Estado Previdência e como garante de satisfação do pagamento das prestações sociais e reformas dos seus beneficiários”.
7.2 Eis-nos chegados à segunda questão: será inconstitucional, como pretende o Recorrente, por violação dos princípios da proporcionalidade e da adequação, a norma que se retira da interpretação conjugada dos artigos 105º e 107º do RGIT segundo a qual o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é punível com a pena prevista no nº1 do artigo 105º do RGIT quando o montante das contribuições não entregue à Segurança Social seja igual ou inferior a €7.500,00?

Com fundamento constitucional, decorrente do princípio do Estado de direito democrático ou, de todo o modo, conexionado com os direitos fundamentais, é de todos bem conhecido o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo que constitui, na realidade, um princípio de controlo a respeito da medida tomada pela autoridade pública – pelo poder legislativo, v.g. - no sentido de saber da sua conformidade aos subprincípios da “necessidade”, da “adequação”, da “proporcionalidade”, dizer também saber da adequação do meio à prossecução do escopo por ela visado.

De modo prático,
● Pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação medida > fim.
Pergunta-se: a medida adoptada é apropriada, adequa-se à prossecução do fim ou fins a ela subjacentes?
A exigência de conformidade pressupõe, então, a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adopção.

● Pelo princípio da proporcionalidade em sentido restrito ou princípio da “justa medida” cuida-se saber e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. Ou dizer, saber se, no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são “desmedidas” (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.

● Finalmente, o princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão. ([6])

Na subsunção destes princípios normativos ao caso concreto vê o Recorrente como violadora dos princípios da proporcionalidade e da adequação uma interpretação conjugada dos artigos 105º e 107º do RGIT segundo a qual o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social fosse punível com a pena prevista no nº1 do artigo 105º do RGIT quando o montante das contribuições não entregue à Segurança Social seja igual ou inferior a €7.500,00.

Com o devido respeito não se vê fundamento válido na argumentação deduzida.

Estando em causa, como acima se deixa referido, tipos legais autónomos que, sob diferente teleologia, pretendem tutelar bens jurídicos diferentes, o que pode coarctar o legislador na adopção das medidas adequadamente diferenciadas relativamente aos diferentes interesses subjacentes?
Como se diz no Ac.242/09 de 12.05.2009 do Tribunal Constitucional:
“…. cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação das regras princípios constitucionais relevantes na matéria. E, citando o Acórdão nº1146/96 do mesmo Tribunal: ‘a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade […] o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela’. Vindo a concluir que ‘as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105º (abuso de confiança fiscal) e 107º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção pelo legislador”
Em que é que, no caso concreto – repete-se: “ numa altura em que se discute, se questiona e se pretende essencialmente assegurar e defender a sustentabilidade da segurança social, objectivo que ganhou foros de princípio fundamental do Estado Previdência e como garante de satisfação do pagamento das prestações sociais e reformas dos seus beneficiários” - na adopção e na interpretação segundo a letra da lei e os valores subjacentes à mesma ocorre uma opção inadequada, desmedida, excessiva?
Não se vê. Em boa verdade, também, o Recorrente não a chega a identificar.

III. Decisão
São termos em que na improcedência do recurso se confirma a douta decisão recorrida.
Da responsabilidade do Recorrente a taxa de justiça de 4UC.

Porto, 21 de Outubro de 2009
Joaquim Maria Melo Sousa Lima
Francisco Marcolino de Jesus
_________________
[1] Sentença de 24.11.2006, confirmada - salvo na parte que decidiu no sentido da suspensão da execução da pena de multa - por acórdão do TR do Porto, de 15.10.2007.
[2] Referem-se a título de exemplo:
• Em sentido favorável: Acs. 27.05.2009 (Processo 343/05.7TAVNF); 14.10.2009 (Processo6335/05 c/ voto vencido)
• Em sentido contrário: Acs. 25.03.2009 (Processo 1131/01.5TASTS); 20.04.2009 (Processo 8419/02.6TDPRT); 27.05.2009 (Processos 1760/06.0TDPRT e 946/07.5TABGC); 03.06.2009 (Processo 0715084); 15.07.2009 (Processo 0846834); 07.10.2009 (Processos 32/02.4TAPNF c/ voto vencido e 2416/06.0TAMAI.P1 c/ voto vencido); 03.09.2009 (Processo 267/02.01DBRG-b.P1);
[3] «Em geral considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos» Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição – 3ª Edição – Almedina , Pág. 252, 253
[4] Reconhecendo, embora, a valia do argumento da “contradição insanável na estatuição do nº1 do artigo 107º uma vez que as penas previstas nos nº1 e 5 do artigo 105º são distintas”, não se lhe atribui a força suficiente para alterar a posição de fundo assumida na questão sob juízo.
Ressalva-se, de todo o modo, que as penas são, em si, efectivamente distintas por referência à verificação ou não no caso concreto de uma circunstância qualificativa (carácter agravativo) de um valor superior a €50.000,00, seja com referência ao crime de abuso de confiança fiscal, seja com referência ao abuso de confiança contra a Segurança Social.
À sobreposse, não se olvide a liberdade de conformação que compete ao legislador.
[5] Dizer, nas palavras de Gomes Canotilho: “O sentido mais geral da proibição do excesso é, …, este: evitar cargas coactivas excessivas ou actos de ingerência desmedidos na esfera jurídica dos particulares. Há, porém, um outro lado da protecção que, em vez de salientar o excesso, releva a proibição por defeito. Existe um defeito de protecção quando as entidades sobre quem recai um dever de protecção adoptam medidas insuficientes para garantir uma protecção constitucionalmente adequada aos direitos fundamentais” – Ob. Cit. Pag. 267
[6] Seguiram-se, de perto, os ensinamentos de J.J.Gomes Canotilho, ob. Cit. Pags. 261 a 265.