Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0746636
Nº Convencional: JTRP00040918
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: PROCESSO SUMÁRIO
DESOBEDIÊNCIA
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200801090746636
Data do Acordão: 01/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 295 - FLS 11.
Área Temática: .
Sumário: Com a entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, foi descriminalizada a conduta que, pela via do nº 2 do anterior art. 387º do Código de Processo Penal, preenchia o crime de desobediência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 6636/07
- com os juízes Arlindo Teixeira Pinto (presidente da secção), Artur Oliveira (relator) e Maria Elisa Marques
- após conferência, profere, em 9 de Janeiro de 2008, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. No processo abreviado n.º …/06.1TPPRT, do .º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal do Porto, em que é arguido B………., foi proferida sentença, em 18 de Maio de 2006, que decidiu nos seguintes termos [fls. 8-9 da certidão]:
(…) condenar o arguido B………., pela prática de um crime p. e p. pelo art. 3.º n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3.01, na pena de 120 [cento e vinte] dias de multa à taxa diária de € 2 [dois euros];
condenar o arguido B………., pela prática de um crime p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 70 [setenta] dias de multa à taxa diária de € 2 [dois euros].
Em cúmulo, condena-se o arguido (…) na pena única de 170 [cento e setenta] dias de multa à taxa diária de € 2 [dois euros], o que perfaz o total de € 340 [trezentos e quarenta euros] ou em 113 [cento e treze] dias de prisão subsidiária.
2. Com a entrada em vigor da Revisão do Código de Processo Penal, e uma vez que a pena não se mostrava cumprida, o juiz, por promoção do Ministério Público, proferiu, em 19 de Setembro de 2007, o seguinte despacho [fls. 27 de certidão]:
«Cumpre, neste momento, e atenta a entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, atendendo à descriminalização ocorrida [do] crime de desobediência por falta à audiência de julgamento, desfazer o cúmulo jurídico em que o arguido foi condenado nos presentes autos.
Desta feita, o arguido B………. encontra-se unicamente condenado nos presentes autos pela prática de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3.01 na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 2 euros num total de 240 euros.
Notifique (…)»
3. É deste despacho que o Ministério Público, seguindo uma orientação proferida pelo Exmo. Procurador-geral distrital do Porto, interpõe recurso, conforme motivação que remata com as seguintes conclusões [fls. 35-36 da certidão]:
«1ª - O anterior artigo 387.º, n.º 2, C.P.P., previa como crime de desobediência, a falta de arguido que, notificado para comparecer ante o Ministério Público, não o fizesse;
2ª - O actual artigo 385.º, n.º 3, alínea a) dispõe que, havendo libertação, o arguido é notificado para comparecer ante o Ministério Público, para ser submetido a julgamento em processo sumário, com a advertência de que este se realizará mesmo que não compareça, sendo representado por defensor.
3ª - Não se prevê, assim, no novo Código, qualquer crime de desobediência.
4ª - Em todo o caso, nas hipóteses anteriores à vigência do novo Código (15.09.07) o crime (art. 348.º, C.P.) mantém-se, não se tendo operado qualquer descriminalização [sic Despacho n.º 55/2007, de 10.10.2007, do Exmo. Sr. Procurador-Geral Distrital do Porto].
5ª - O crime de desobediência em apreço foi praticado antes da entrada em vigor do referido Código, pelo que “não se tendo operado qualquer descriminalização”, não deveria, face ao entendimento constante do Despacho supra citado, ter sido, como foi, julgado/declarado descriminalizado.
6ª - Face a tal entendimento, a judicialmente declarada/julgada, nos termos em que o foi, atenta a entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – 15ª alteração ao C.P.P. aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, descriminalização não é admissível porque a Lei em causa não operou qualquer descriminalização.
7ª - No entendimento constante do acima transcrito Despacho n.º 55/2007, de 10.10.2007, do Exmo. Sr. Procurador-Geral Distrital do Porto, o douto despacho recorrido viola, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art. 387.º, n.º 2, do C.P.P., na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, 348.º, do C.P. e 385.º, n.º 3, alínea a) do C.P.P., na redacção actual e vigente.
Nestes termos (…) deve o/a douto/a despacho/decisão recorrido/a ser revogado/a, concedendo-se provimento ao presente recurso.
4. Nesta instância, o Exmo. procurador-geral-adjunto não emitiu parecer [fls. 66].
II – APRECIAÇÃO
5. Face às conclusões apresentadas (que delimitam o objecto do recurso), importa decidir apenas uma questão: saber se a recente revisão do Código de Processo Penal descriminalizou o crime de desobediência previsto pela anterior redacção do artigo 387.º, n.º 2, do Código de Processo Penal; e se, ainda assim, as situações anteriores à referida revisão estão cobertas pela previsão do artigo 348.º, do Código Penal.
6. De facto, a anterior redacção do artigo 387.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, cominava com a prática de um crime de desobediência o detido que, no âmbito de um processo sumário e na impossibilidade de audiência imediata, não comparecesse perante o Ministério Público no dia e hora que lhe foi designado.
7. A alteração legislativa que opera desde 15 de Setembro último, revê de forma significativa o quadro legal de regulação do processo sumário. Assim, entre outras modificações, a nova redacção do artigo 387.º, n.º 3, do Código de Processo Penal prevê o alargamento do âmbito de aplicação da forma do processo sumário, ao mesmo tempo que determina que a audiência de julgamento se realize mesmo que o arguido não compareça – caso em que será representado por defensor oficioso.
8. Resulta, de forma inequívoca, que o legislador “despromoveu” a atitude dos arguidos que faltarem à audiência de julgamento: o que, até à revisão, constituía a prática de um crime de desobediência, passou, a partir de então, a ser um comportamento irrelevante do ponto da ilicitude criminal.
9. Esta nova orientação insere-se, aliás, numa corrente generalizada nos sistemas jurídicos europeus de progressiva restrição ou eliminação dos crimes de desobediência do quadro geral dos tipos de ilícito penal. O crime de desobediência consiste num crime de dever, desenhado não tanto como uma forma de comportamento (por acção ou por omissão) mas “como a violação de certo tipo de deveres”, em que o bem jurídico protegido é a própria função de autoridade pública numa acepção funcional, ou seja, o interesse administrativo do Estado em que as ordens legítimas dos seus agentes ou autoridades sejam cumpridas – ver Teresa Pizarro Beleza, em Direito Penal, 2.º Volume, AAFDL, 1995, p. 105.
10. Enquanto crime de mera actividade que se reconduz basicamente à violação de um dever de obediência a determinada ordem ou mandado [desde que legítimos por emanados de autoridade ou funcionário competente e regularmente comunicados], tem progressivamente sido eliminado de diversos ordenamentos jurídicos próximos do nosso por se entender que “protegendo-se o dever de obediência, só devem merecer censura penal os actos contra funcionários e agentes de autoridade, ou de natureza idêntica, que perturbam ou impedem o normal e livre exercício dos poderes de autoridade, não devendo ser incriminados quer os meros actos de não cumprimento de uma ordem quer os actos de resistência passiva à execução de uma actividade dos poderes públicos que não envolvam violência” – ver José Luís Lopes da Mota, “Aspectos gerais da revisão dos crimes contra a autoridade pública”, Jornadas de Direito Criminal, Volume II, CEJ, Lisboa, 1998, p. 427.
11. A evolução traçada tenta concentrar a perseguição criminal no acto lesivo original, anulando a possibilidade de, por via dele, se gerarem outras incriminações, laterais e sucessivas.
12. E se é assim, ou seja, se o que o legislador assumiu foi a retirada de um dado comportamento do conjunto dos factos ilícitos tipificados na lei como crime, então não podemos deixar de convocar o disposto no artigo no artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal – que determina, peremptoriamente:
2- O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais. [sublinhados nossos]
13. Este declaração constitui a, vulgarmente designada, “primeira excepção” ao princípio da não retroactividade da lei penal. Visa as leis penais mais favoráveis ao agente, tem consagração expressa no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e é um dado estável dos sistemas jurídicos em que nos integramos: se uma lei nova deixa de incriminar factos que a lei anterior incriminava, significa que o legislador entendeu, em mais adequada e actualizada visão dos valores legalmente protegidos, que os factos não são criminalmente censuráveis. Não faria, em tais termos, sentido persistir-se na incriminação, pelo que não deve mais aplicar-se a lei anterior. E os seus efeitos devem cessar mesmo que tenha havido condenação com trânsito em julgado – como é o caso dos autos.
14. Bem andou, pois, o despacho recorrido, ao declarar a descriminalização do crime de desobediência pelo qual o arguido tinha sido condenado.
15. Diz, porém, o recorrente – Ministério Público – que deve manter-se a incriminação para “as hipóteses anteriores à vigência do novo Código” através da previsão do crime do artigo 348.º, do Código Penal.
16. Discordamos: desde logo, porque colide frontalmente com o princípio constitucional assinalado e com a norma penal correspondente. A leitura mais actual do princípio em causa [cuja razão histórica se prende à atribuição, à pena criminal, de uma função essencialmente preventiva geral ou especial, em detrimento da função retributiva preponderante até ao séc. XIX] vai no sentido de transcender a classificação comum que o via como uma mera excepção à proibição da retroactividade da lei penal, para realçar e focalizar a sua importância como decorrência de um outro princípio, o da restrição mínima dos direitos fundamentais, proclamado pelo artigo 18.º, n.º 2, erigindo, com ele, o princípio da aplicação da lei penal mais favorável – [nesse sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2005, p. 330 e taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais, p. 222].
17. Depois, porque o tipo-de-ilícito geral que integra a previsão do crime de desobediência [remete e] pressupõe, expressamente, a existência da disposição legal cominativa que agora deixou de existir – alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º, do Código Penal. Mesmo que se procurasse apoio na menção da alínea b) [ausência de disposição legal – o que não era o caso (!)], sempre teria de prevalecer o princípio constitucional da aplicação da lei penal mais favorável ou da imposição da retroactividade da lei penal mais favorável.
18. Assim, perante a mudança de atitude do legislador [expressão da consciência colectiva sob a forma do princípio normativo imanente a cada norma] que deixou de considerar como “crime” determinada conduta, não é legítimo esperar que o intérprete encontre vias alternativas para sustentar a condenação anterior.
19. Em suma: com a entrada em vigor da Revisão do Código de Processo Penal aprovada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o crime de desobediência previsto pela anterior redacção do artigo 387.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi descriminalizado.
20. Vão nesse sentido:
. o acórdão da Relação do Porto de 21.11.2007 [Relator: Luís Gominho], processo 0744565, ponto III – 3.6.;
. o acórdão da Relação do Porto, de 30.10.2007 [Relatora: Maria do Carmo], processo 0713692 – ambos em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/Pesquisa+Termos?OpenForm, acedidos em Novembro de 2007.
III – DECISÃO
Pelo exposto, os juízes acordam em:
. Negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a decisão proferida.
Sem tributação.
[Elaborado e revisto pelo relator]

Porto, 9 de Janeiro de 2008
Artur Manuel da Silva Oliveira
Maria Elisa da Silva Marques Mota Silva
Arlindo Manuel Teixeira Pinto