Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0625119
Nº Convencional: JTRP00039607
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO PROVISÓRIA
Nº do Documento: RP200610170625119
Data do Acordão: 10/17/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 228 - FLS 14.
Área Temática: .
Sumário: I - Não existe qualquer dependência entre os n.º 1 e 4 do art. 403.º do CPC, tratando-se de situações diversas.
II - Se a acção principal já estiver decidida em sentido desfavorável ao requerente, não pode este solicitar providência cautelar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória nº…-F/99, da .ª Vara Mista da comarca de Vila Nova de Gaia.
Requerente da providência e ora Agravante – B………. .
Requerida – C………. .

Pedido
Que a Requerida pague à Requerente uma renda mensal no valor de € 5.000.
Tese da Requerente
É comproprietária de um prédio rústico situado na área da comarca de Vª Nª de Gaia.
Com os demais comproprietários, acordou, no ano de 1986, em ceder parte do terreno desse prédio à Requerida, no pressuposto sinalagmático de poder lotear a parte restante do prédio, desafectando-o dos terrenos da Reserva Agrícola Nacional.
Todavia, tal desafectação e loteamento vêm-se revelando impossíveis, já que, por razões a que a Requerente é alheia, não existe alvará de loteamento para o local.
A Requerida tomou posse do terreno e nele construiu uma rua, desde o ano de 1987, concluída em 1989. Com a ocupação desse terreno, para ampliação da D………. e parque de estacionamento, a Requerida tem auferido grandes lucros.
Por força dessa ocupação, a Requerente encontra-se impedida de exercer a actividade agrícola que exercia no aludido prédio, antes dessa mesma ocupação.
Se aí pudesse fazer agricultura, a Requerente teria um rendimento anual de Esc.1.266.850$00, acrescido de 25%, rendimento de que se tem visto privada, motivo pelo qual faz jus a uma indemnização por parte da Requerida (a que acrescerá uma quantia necessária à reconstrução de muros).
A Requerente tem a idade de 82 anos, graves problemas de saúde e vive, por favor, em casa de terceiros; auferiu, durante todo o ano de 2005, a exclusiva pensão global, a cargo da Segurança Social, de € 2 741,48.
Despacho Liminar Recorrido
Pronunciando-se sobre a petição, o Mmº Juiz “a quo”, em 6/6/2006, proferiu o seguinte despacho:
“Na acção principal de que o procedimento cautelar ora apresentado constitui apenso, não é formulado qualquer pedido – nem invocada a respectiva causa de pedir – de indemnização fundado em morte ou lesão corporal de alegados lesados.”
“Logo, o presente procedimento cautelar não tem cabimento legal, por falta de verificação dos requisitos vertidos no artº 403º nº1 C.P.Civ. para o arbitramento de reparação provisória.”
“Destarte, por manifesta improcedência, indefere-se liminarmente o presente procedimento cautelar.”

Na data em que a presente acção cautelar deu entrada em juízo (5/6/2006), encontrava-se já encerrada, na acção comum de que os presentes autos são dependência, incluindo a discussão sobre a matéria de facto, e proferido já, nessa acção, o despacho que decidiu os factos, fixando o teor dos provados e não provados.
A sentença final foi proferida em 28/6/2006. No dispositivo, a aqui Requerente foi reconhecida como proprietária do prédio rústico em causa, mas a Requerida absolvida do pedido de devolução da parte por si ocupada desse mesmo prédio ou de indemnização da aqui Requerente por prejuízos causados.
A aqui Requerente recorreu entretanto da sentença, para o Tribunal da Relação.

Conclusões do Recurso de Agravo:
1 – Ao fundamentar o despacho apenas com base no nº1 do arrtº 403º C.P.Civ., o tribunal omitiu os nºs 3 e 4 do mesmo artigo, números esses referidos no artº 43º da P.I.
2 – Assim, o douto despacho viola o artº 403º nºs 3 e 4 C.P.Civ.
3 – Que deveria ter sido interpretado e aplicado no sentido de admitir a providência,
4 – pelo que se deve ordenar quer a providência seja recebida, seguindo o seu procedimento normal.

A agravada contra-alegou, concluindo em resumo pela manutenção da decisão impugnada.

Factos Provados
Encontram-se provados os factos atinentes à tramitação processual, supra resumidamente expostos.

Fundamentos
Por via da pretensão expressa pela Recorrente, o único tópico a abordar na solução do presente recurso será o de apreciar o fundamento do despacho recorrido e o respectivo sentido decisório, no enquadramento do disposto no artº 403º C.P.Civ.
Vejamos pois.
I
Como flui da pretensão da Requerente, fundou-se a mesma no disposto no artº 403º nº4 C.P.Civ., norma que estende a possibilidade de arbitramento de quantia certa, sob a forma de renda mensal, como reparação provisória do dano, não apenas como dependência da acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal (como na previsão primária do artº 403º nº1 C.P.Civ.), mas também com fundamento em dano susceptível de pôr seriamente em causa o sustento ou a habitação do lesado.
O Mmº Juiz “a quo” entende porém que a pretensão cautelar não tem cabimento legal, por falta de verificação dos requisitos vertidos no artº 403º nº1 C.P.Civ.
Existirá alguma dependência entre os citados nºs 1 e 4, no sentido de que o dano que ponha em causa o sustento ou a habitação do lesado deva resultar de acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal?
A resposta não pode deixar de ser negativa, no sentido em que uma coisa é o facto gerador da pretensão de indemnização, referido no nº1, o qual, em si, pode originar uma multiplicidade de efeitos danosos impossível de elencar “a priori”, outra coisa é a concreta natureza do dano, tal como referido no nº4.
Desta forma, trata-se de previsões legais independentes entre si, e que, ambas, podem encontrar-se na origem da pretensão de arbitramento de reparação provisória.
Esta natureza independente das referidas previsões legais tem sido afirmada pela doutrina (cf., neste exacto sentido, Teixeira de Sousa, Estudos, pg.242, Lopes do Rego, Comentários ao Código, artº 403º, notas 2 e 3 e A. Geraldes, Temas da Reforma, IV, §§ 45.4 e 45.5).
Desta forma, independentemente da apreciação do mérito da pretensão deduzida, fundando-se a mesma em responsabilidade extracontratual ou mesmo até em responsabilidade contratual, não há dúvida que o simples facto de a Requerente da providência de arbitramento de reparação provisória invocar uma situação de grave dificuldade de prover ao seu sustento ou habitação pode conduzir a mesma Requerente a beneficiar da tutela antecipatória.
Não podemos acompanhar assim o exacto fundamento da decisão recorrida.
II
Todavia, apreciada a pretensão da Requerente à luz da totalidade das normas jurídicas que regem as pretensões cautelares, sempre haveremos de chegar à conclusão de que o pedido não poderia em qualquer caso proceder.
Um dos pressupostos da composição provisória das situações controvertidas em juízo é o de que, para o decretamento da providência cautelar, se exige apenas a prova de que a situação jurídica alegada é provável ou verosímil, pelo que é suficiente a aparência desse direito, ou seja, o decretamento da providência basta-se com um fumus boni juris.
Porém, o artº 384º C.P.Civ. consagra características de instrumentalidade e de dependência do procedimento cautelar face à acção principal – desta forma, a aparência requerida para o direito invocado pressupõe também a hipótese (instrumentalidade hipotética) de vir a ser favorável ao autor a decisão a produzir no processo principal.
Tal formulação hipotética, porém, perde qualquer razão de ser se o juiz já ponderou no processo principal, rodeado de maiores garantias de solenidade, contraditório e acerto, a prova do direito invocado.
Mais do que um fumus boni juris estaremos, nesse caso, já perante um verdadeiro jus declarado, o qual não poderá deixar de ser considerado um mais, face ao direito invocado por summaria cognitio, como é próprio das providências cautelares.
Ora, o que se verifica do processo, é que a providência cautelar foi instaurada em momento posterior ao do despacho que fixou a matéria de facto no processo, despacho esse complementado, pouco após, com a decisão final que julgou improcedente a pretensão da Autora (aqui Requerente) à entrega do prédio ou ao pagamento de uma indemnização.
Ou seja, decisão que denegou o direito, invocado quer por acção principal, quer por providência cautelar dependente.
Cobram assim sentido as palavras de Teixeira de Sousa (Estudos, pg.233): “Se na acção principal já tiver sido proferida uma decisão desfavorável ao autor (nomeadamente uma decisão que está pendente de recurso), não pode esta parte requerer, durante esse recurso, qualquer providência cautelar, porque, nessas circunstâncias, não é possível fazer prevalecer a probabilidade da existência da situação sobre a apreciação realizada naquela decisão”.
Também A. Geraldes, Temas da Reforma, III - §35: “Parece claro que, na emissão da decisão cautelar, o juiz não deixará de ponderar a decisão favorável ou desfavorável proferida no processo principal, mesmo que ainda não tenha transitado em julgado (...). Embora não existam obstáculos formais à dedução de uma pretensão provisória em situações em que na acção principal tenha sido proferida decisão desfavorável ao requerente, ainda não transitada em julgado, este facto é, no entanto, revelador da falta de um dos requisitos substantivos: a verosimilhança acerca da existência do direito”.
Dir-se-á que, no momento em que a procedimento cautelar deu entrada em juízo, tinha apenas sido proferido, na acção principal, o despacho que fixava a matéria de facto e que só cerca de vinte dias após foi proferida a sentença – a asserção resulta artificial, ao distinguir os dois momentos, o do julgamento do facto e o do julgamento do direito, ambos aliás impugnáveis exclusivamente no recurso que se interpuser da decisão final (artº 712º C.P.Civ. e Varela, Bezerra e S. e Nora, Manual, pg.656, nota 4).
O julgamento do facto indicia o julgamento do direito, que no primeiro se fundamenta, de tal forma que, mesmo que se não esteja ainda perante uma decisão de direito, mas tão só perante uma decisão sobre os factos, é vedada a interposição de procedimento cautelar que verse sobre matéria já julgada no processo principal – doutrina expendida, v.g., no Ac. S.T.J. 30/9/99 Bol.489/294.
Ainda que outro entendimento se trilhasse, acresceria que o facto relativo à decisão de direito do processo principal, em 1ª instância, se revelaria de conhecimento oficioso do tribunal, mesmo nesta instância (artº 514º nº2 C.P.Civ.).
Na verdade, quanto a essas questões, o tribunal de recurso pode conhecer de todas elas, “quer se refiram à relação processual, quer à relação material controvertida”, e não devem abranger o conceito de questões novas, no sentido de não suscitadas no tribunal recorrido – artº 676º C.P.Civ. e J. Rod. Bastos, Notas ao Código, III vol., artº 676º - nota 3.
Por outro lado, e no que concerne a superveniência do conhecimento de mérito da acção principal, em face do despacho recorrido, sabe-se como, do disposto nos artºs 663º nº1 e 713º nº2 C.P.Civ., resulta que também o acórdão proferido nesta instância deverá, dentro do condicionalismo expresso nesses artigos, reflectir a situação de facto existente e trazida ao conhecimento dos julgadores até ao encerramento da discussão nesta 2ª instância.
Tal conclusão aplica-se a todos os pressupostos processuais, incluindo os que são susceptíveis de integrar excepções dilatórias, como a da ilegitimidade, o que não pode deixar de integrar os pressupostos necessários ao exercício da acção (cf. J. Rod. Bastos, op. cit., artº 663º, v.g. quanto à perda da posse no decurso de embargos de terceiro, ou S.T.J. 8/2/96 Bol.454/607, quanto à superveniência de factos que se repercutam no pressuposto processual da legitimidade).
Tudo isto se afirma, como é óbvio, com inteira independência sobre o mérito do recurso interposto no processo principal, a ser oportunamente apreciado.
Desta forma, a conclusão desta instância é idêntica à conclusão formulada na comarca: o pedido mostrava-se manifestamente improcedente (artº 234º-A nº1 C.P.Civ.).

Resumindo a fundamentação:
I – Não existe qualquer dependência entre os nºs 1 e 4 do artº 403º C.P.Civ., no sentido de que o dano que ponha em causa o sustento ou a habitação do lesado, previsto no artº 403º nº4, deva resultar de acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, prevista no artº 403º nº1.
II – Vistas as características de instrumentalidade e de dependência do procedimento cautelar face à acção principal (artº 383º C.P.Civ.), se na acção principal já tiver sido proferida uma decisão desfavorável ao autor, não pode esta parte requerer qualquer providência cautelar, porque tal facto indicia a falta de um dos requisitos substantivos da providência: a verosimilhança acerca da existência do direito.
III – O acórdão proferido em 2ª instância deve, dentro do condicionalismo expresso nos artºs 663º nº1 e 713º nº2 C.P.Civ., reflectir a situação de facto existente e trazida ao conhecimento dos julgadores até ao encerramento da discussão em 2ª instância, conclusão que se estende aos pressupostos necessários à formulação de um concreto pedido cautelar.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
No não provimento do agravo, confirmar o despacho recorrido.
Custas pela Agravante, sem prejuízo do Apoio Judiciário concedido.

Porto, 17 de Outubro de 2006
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva
Maria das Dores Eiró de Araújo