Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
98/11.6TBSJP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO LIMA COSTA
Descritores: ÁGUAS PÚBLICAS
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
Nº do Documento: RP2013071098/11.6TBSJP.P1
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Decreto 5787-IIII, de 10/5/1919, previa que a água pública captada em correntes não navegáveis nem flutuáveis só podia ser objecto de apropriação privada, em irrigação de prédios rústicos particulares, mediante concessão do Estado, sem possibilidade de delegação de poderes de concessão ou de subconcessão a entidades particulares.
II - Não revela qualquer concessão a intervenção de juntas de agricultores ou juntas de regantes que efectivamente auxiliaram o Estado na fixação do universo de concessionários em perímetros de rega e na regulação do uso da água, por fluxos horários proporcionais às áreas irrigadas e por outras regras de distribuição, e continuaram a ser, por vezes durante dezenas de anos, as interlocutoras privilegiadas do Estado nos assuntos que respeitam ao conjunto dos concessionários.
III - Sem o título administrativo da concessão de água pelo Estado não é possível o reconhecimento da servidão legal de aqueduto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 98/11.6TBSJP
Juiz Relator: Pedro Lima da Costa
Primeiro Adjunto: Araújo Barros
Segundo Adjunto: Judite Pires

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
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B… e mulher C…, ou C1…, intentarem no dia 8/5/2011 a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra D… e mulher E…, pedindo que os réus sejam condenados:
a) A reconhecerem que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado nos artigos 1 a 3 da petição inicial;
b) A reconhecerem que não têm direito à água que vem canalizada desde o caminho público até ao prédio dos autores e a daqui retirarem tal água para o seu prédio, pelo que também não têm direito a qualquer servidão a pé do seu prédio para o prédio dos autores a fim de captarem a água no prédio dos autores;
c) A absterem-se de entrarem no prédio dos autores e de ali fazerem regos para irem captar a referida água;
d) A reporem o muro meeiro no estado em que se encontrava antes do seu derrube e a reporem como estava a rede de vedação ali colocada pelos autores, bem como a colocarem uma fechadura nova no portão do prédio dos autores;
e) A pagarem aos autores a quantia de 5.000€, a título de danos não patrimoniais, com a intromissão abusiva no prédio dos autores, acrescida de juros legais a contar da citação.
Sumariamente, alegam os autores:
Os autores são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico, o qual confronta, a Sul, com um prédio rústico pertença dos réus;
Ao longo de dois caminhos que servem o prédio dos autores existe uma levada, ou conduta de água canalizada, construída há cerca de 20 anos pelo Ministério da Agricultura, destinando-se a água aí conduzida à irrigação de prédios rústicos;
Na levada existe uma comporta, seguida de um cano de plástico com cerca de 100 metros de extensão, que se destinam a conduzir água apenas para dois prédios de terceiros, prédios esses que se encontram a montante do prédio dos autores, e para o próprio prédio dos autores, terminando o dito tubo neste prédio dos autores, junto ao respectivo portão principal;
Com essa água sempre e só os autores regam o seu prédio, nos dias que lhe estão destinados;
O prédio dos autores e o prédio dos réus estão separados por um muro meeiro;
O prédio dos réus não é servido por qualquer conduta de derivação desde a levada;
Há cerca de 3 anos os réus arrogam ter direito à água;
Os réus procederam a escavação ao nível dos alicerces do dito muro meeiro e por baixo desse muro fizeram passar um tubo de plástico, o qual dá ligação a uma caixa de cimento que os réus construíram no seu prédio;
Os réus ainda abriram um rego térreo com cerca de 6 metros de extensão dentro do prédio dos autores, por forma a captarem a água desde o referido tubo que finda junto do portão principal;
Os réus nunca regaram com a água em causa, nem nunca tiveram direito a usá-la;
O réu salta o muro meeiro e já o derrubou numa extensão de 1 metro, bem como derrubou uma rede de vedação aí colocada pelo autor para impedir novos avanços seus, tendo ainda arrombado a fechadura do dito portão dos autores, passando a pé dentro do prédio dos autores, tudo com o fito de ir buscar a água;
Com a actuação dos réus, os autores têm ficado muito transtornados e psicologicamente abalados, a que acresce o facto de o réu, depois de ter sido surpreendido pelo autor no prédio deste, o ter ameaçado, brandindo uma enxada na sua direcção e injuriando-o.
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Na contestação, os réus concluem que a acção deve improceder e os réus serem absolvidos “do pedido”.
Os réus ainda formulam reconvenção para que os autores sejam condenados a pagarem aos réus a quantia de 1.020€, pelos danos patrimoniais, e a quantia de 750€, pelos danos não patrimoniais.
Sumariamente, alegam os réus:
O prédio dos réus também é beneficiário da água da levada, “água pública proveniente de uma ribeira e, nos dizeres dos autores, concessionada pelo Ministério da Agricultura”, pois que há mais de cinquenta anos, ou há mais de 20 anos, que os réus, por si e antepossuidores, vêm regando o seu prédio com essa água, durante as horas que lhe estão distribuídas pela comissão de representação de consortes, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção de estarem a exercer um direito próprio e sem prejuízo para quem quer que seja;
A água é proveniente da F…, a qual não é navegável nem flutuável, tendo sido captada há mais de 20 anos através de obras construídas pelo Ministério da Agricultura, em colaboração com as autarquias locais, as quais ainda construíram a rede de aquedutos;
Trata-se de água verbalmente cedida, a título gratuito, tendo sido criada uma Junta de Agricultores, sendo o prédio dos réus um dos beneficiados por essa Junta;
Se assim se não entender, a circunstância de a água ter sido sujeita a estruturas artificiais de apresamento e de distribuição tornou tal água privada e os réus usam-na à vista de toda a gente, nas horas definidas pela Junta de Agricultores, com a convicção de exercerem direito próprio, como se donos da água fossem;
Desde o início do funcionamento da levada existe uma caixa de derivação para repartir a água entre os autores e os réus, correndo a água desde essa caixa para o prédio dos réus através do prédio dos autores, inicialmente por uma conduta a céu aberto e nos últimos 18 anos por um cano em PVC enterrado;
A água entra no prédio dos réus através de um aqueduto existente, há mais de cinquenta anos, no muro meeiro referido pelos autores, sendo falso que só há cerca de 3 anos os réus tenham feito escavação ao nível dos alicerces desse muro e que só então tenham feito passar o tubo em PVC por baixo do mesmo muro;
Havendo concessão de águas públicas para aproveitamento agrícola do prédio dos réus, estes têm direito à constituição forçada da servidão de aqueduto, nos termos do art. 1562 do Código Civil, com inerente direito dos réus de atravessarem o prédio dos autores para seguirem a água e demais actos necessários ao seu aproveitamento, conforme art. 1565 do Código Civil;
Os autores desde há 4 anos vêm dificultando a entrada dos réus no seu prédio e em 2007 mandaram destruir a caixa de derivação que existe no prédio destes e o tubo em PVC que pertence aos réus, repetindo arranque do tubo em 2008;
Os autores colocaram o portão no seu prédio em 2007, tendo-o fechado desde 2008 e recusam entregar a correspondente chave aos réus, limitando-se os réus a abrirem-no por via de uma tranca lateral, sem terem arrombado a fechadura, mas posteriormente os réus cortaram a corrente que os autores colocaram no portão;
Os autores litigam com má fé, devendo ser condenados em multa e em indemnização a favor dos réus de valor igual à daquela multa;
Com a destruição e subtracção dos referidos tubos pelos autores, os réus tiveram um prejuízo de 900€, acrescido de 350€ em que foi avaliada a reconstrução da caixa de derivação e de 70€ com o serralheiro que cortou a corrente;
Os réus sofreram doença nervosa e tiveram insónias e arrelias com este assunto.
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Na réplica e num requerimento adicional apresentado em 16/2/2012, os autores concluem como na petição inicial e concluem que a reconvenção deve improceder, sendo os réus condenados como litigantes de má fé, com indemnização aos autores não inferior a 2.000€.
Sumariamente, acrescentam os autores, para lá do que tinham alegado na petição inicial:
A caixa de derivação, referida pelos réus e que se encontrava dentro do prédio dos autores, foi construída pelos autores, para seu uso exclusivo, sendo verdade que os autores a destruíram para o preciso efeito de os réus não usarem a água;
É falso que exista aqueduto há 50 anos, tendo a obra correspondente sido executada pelos réus às escondidas dos autores, além de estes nunca tolerarem a presença dos tubos que os réus colocavam repetidamente no prédio dos autores;
É falso que, na época em que a levada foi construída pela Direcção Hidráulica …, a água tenha sido concessionada aos réus pela dita Direcção ou pela Junta de Agricultores …, sendo ainda falso que o prédio dos réus faça parte do cadastro de propriedades afectas à associação de regantes, pelo que se impugna o alcance e validade de um documento apresentado pelos réus que principia pelos dizeres “Junta dos Agricultores … cadastro das propriedades afectas ao regadio”;
Os réus litigam com má fé.
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No despacho saneador admitiu-se o pedido reconvencional, fixou-se o valor da causa em 9.770€ e seleccionaram-se os factos assentes e a base instrutória.
Realizou-se a audiência de julgamento, com inspecção judicial, e proferiu-se despacho com resposta à base instrutória.
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Na sentença decidiu-se nos seguintes termos:
A) Julgar a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e:
1. Condenar os réus a reconhecer que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1 dos factos provados;
2. Declarar que os réus não têm constituído a seu favor qualquer direito de servidão sobre o prédio dos autores e, por consequência, condenar os réus a absterem-se de entrar no prédio dos autores e ali fazer regos para captar a água do prédio dos autores;
3. Condenar o réu D… a repor o muro que separa o prédio dos autores do prédio dos réus identificado em 3 dos factos provados, no local referido em 10 dos factos provados, numa largura de cerca de um metro, no estado em que se encontrava antes do seu derrube pelo réu;
4. Condenar o réu D… a repor a rede plastificada de cerca de meio metro que o autor colocou sobre o muro referido no ponto antecedente, no estado em que se encontrava antes do seu derrube pelo réu;
5. Condenar o réu D… a colocar uma fechadura nova no portão dos autores que dá acesso ao prédio destes;
6. Absolver a ré E… do pedido de condenação a repor o muro meeiro no estado em que se encontrava antes do seu derrube, a repor como estava a rede de vedação ali colocada pelos autores, bem como a colocar uma fechadura nova no portão do prédio dos autores;
7. Absolver os réus do demais peticionado pelos autores.
B) Julgar a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo os autores dos pedidos formulados pelos réus.
C) Absolver autores e réus do pedido de condenação como litigantes de má fé.
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Os réus apelaram da sentença, a fim de a mesma ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a excepção da preexistência de uma servidão administrativa de aqueduto a favor do prédio dos réus e sobre o prédio dos autores e, consequentemente, julgar-se improcedente a acção e procedente a reconvenção.
Para tanto, formulam as seguintes conclusões:
1 Tendo os réus concentrado a sua defesa na excepção peremptória de serem eles beneficiários de uma servidão administrativa de aqueduto por cedência de água pública para a agricultura e tendo para o efeito alegado que “o prédio dos réus é beneficiário da água proveniente da ribeira” e que “o prédio dos réus foi um dos beneficiados pela referida Junta de Agricultores”, deve entender-se que esta matéria é relevante para a decisão do mérito da causa.
2 Não tendo tal facto sido submetido à discussão na audiência de julgamento, porque omitido na base instrutória, tal constitui a nulidade da sentença estabelecida no art. 668º, nº 1, al. c) do CPC.
3 Assim sendo, face à nulidade da sentença por insuficiência da matéria de facto alegada, deverá ser anulado o julgamento e repetido para apuramento dos factos omitidos (e de todos os outros que daquele dependam ou com ele estão relacionados).
4 Perante os elementos de prova mencionados e validados pelo tribunal da 1ª instância na decisão de julgamento da prova do facto 13 da B.I. e como decorrência do facto M) dos factos assentes, que necessariamente o pressupõe, deve der revogada tal decisão e considerar-se o referido facto 13 como provado.
5 A resposta negativa dada pelo tribunal ao facto 13 da BI é errada, por absurda, pois é ininteligível a relação (ou falta dela) estabelecida entre o Ministério da Agricultura (que captou a água da ribeira em açude por si construído e conduz a água até aos prédios beneficiados) e a Junta de Agricultores que distribuiu o tempo de rega e seleccionou os prédios a beneficiar com a rega dessa água.
6 Constando do facto 14 da BI que “os réus vêm regando desde há mais de 20 anos as culturas do seu prédio, com a água da referida levada, durante as horas que lhe foram atribuídas pela referida Comissão de Agricultores…” e resultando do facto provado em N) dos factos assentes que já em 2007 (mais concretamente em Fevereiro, como se pode ver da certidão judicial do inquérito criminal junto aos autos) os autores mandaram destruir a caixa de derivação em cimento que existe no prédio destes, e na consideração de que os autores admitem que o seu prédio é o último a ser regado pela levada (isto é, essa caixa apenas poderia derivar as águas para o prédio dos réus), e considerando ainda que resulta da fundamentação da matéria de facto que a testemunha G…, residente em …, referiu ter feito igualmente parte da mesma “junta de agricultores”, mais referindo ter preenchido o documento junto aos autos a fls. 53, de acordo com o que lhe foi transmitido por outro elemento pertencente à referida “junta de agricultores” e por um engenheiro da zona agrária que auxiliou a referida “junta de agricultores” na distribuição da água da levada (ou seja, resulta claro e evidente que a referida comissão de agricultores comunicou fez entrega aos réus, por volta de 1997, do documento comprovativo das horas de rega que a Junta lhe atribui), a decisão de julgamento deste facto 14 da BI (que considerou provado apenas que “desde há pelo menos três anos que os réus vêm regando as culturas do prédio referido, com a agua da referida levada) deve ser substituída por outra que considere provado que “os réus vêm regando desde há mais de 4 anos as culturas do seu prédio referido em C) e S) dos factos assentes com a água da referida F…, durante as horas e dias que lhe foram atribuídas pela referida Comissão de Agricultores por volta de 1997”.
7 Em face dos factos N) e O) dos factos assentes, donde resulta que a caixa de derivação e tubos existiram e foram mandados destruir pelos autores, é contraditória a decisão de julgamento do facto 15 da BI, que o deu como não provado na totalidade “face à ausência total de produção de qualquer prova que se mostrasse possível de o demonstrar por verdadeiro”.
8 Pelo que se impõe a revogação da resposta ao facto 15, substituindo-a por outra que o considere provado, ainda que sem qualquer referência temporal.
9 Estando provado em N), R) e O) os seguintes factos: N) Em 2007, os autores mandaram destruir a caixa de derivação em cimento que existe no prédio destes, … (facto 14 da sentença); R) Os réus reconstruíram a referida caixa de derivação em cimento (facto 18 da sentença); O) Em Junho de 2008, os autores retiraram do seu prédio os tubos em PVC pertencentes aos réus e aí colocados por estes, … para aproveitamento das águas provenientes da referida levada (facto 15 da sentença), tais factos estão em oposição com os factos 2 e 3 da BI (21 e 22 da sentença), segundo os quais “Tal cano de água, dá água para dois prédios que antecedem o prédio dos autores referido em 1 e 2 e para este indo desembocar no portão principal de entrada desse prédio, terminando aí … não havendo naquele local qualquer outra conduta de derivação, ou comporta que derive a água para outros prédios, designadamente para o prédio dos réus referido em 3 e 19.
10 Por isso, devem os factos 2 e 3 da BI ser eliminados ou anular-se o julgamento para esclarecimento da contradição.
11 Perante a matéria de facto provada em 3º, 5º, 13º, 30º, 6º, 7º, 8º, 20º, 21º, 22º, 14º, 18º, 15º, 9º, 10º, 16º e 17º da resenha factual provada (e por esta ordem lógica e cronológica), donde consta que:
- o Ministério da Agricultora construiu um açude para captação das águas da F….
- o Ministério da Agricultura construiu uma rede de aquedutos até aos prédios agrícolas de regadio situados a jusante dessa rede de rega.
- para que os respectivos proprietários regassem, assim sendo intenção do Estado apoiar a agricultura.
- que o prédio dos autores é um dos servidos por tal sistema de rega.
- que o prédio dos Réus se situa a jusante do dos autores, já que através do prédio destes os autores vêm fazendo passar a água da levada.
- que é evidente que o Estado não só autoriza a utilização da água da ribeira, como fomenta a sua utilização pelos agricultores dos prédios de regadio situados a jusante do sistema de aquedutos.
- sendo os réus proprietários de um prédio de regadio situado a jusante da F… e estando provado que o Estado cede a água da ribeira a tais prédios, deve considerar-se que os réus têm direito a regar por a água lhes ter sido cedida.
12 E tendo os réus direito a regar o seu prédio, não podem os autores proibir os réus de entrar no prédio deles autores, face ao direito de acompanhamento das águas que aos réus assiste, nos termos dos arts. 1562 e 1565 do CC.
13 A cedência pelo Estado da água pública para rega agrícola implica automaticamente a sujeição dos prédios servientes à passagem da água e das pessoas para seu acompanhamento, nisso se consubstanciando a existência de servidão administrativa de aqueduto, a que se refere o art. 1562 do CC.
14 Consequentemente deveria ter sido declarada procedente a excepção peremptória da existência de servidão administrativa a favor dos réus e, consequentemente, improceder a acção.
15 Na procedência da referida excepção, deverá julgar-se procedente a reconvenção, a liquidar em incidente de liquidação.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
As questões a decidir prendem-se com a fixação da matéria de facto provada e não provada, com o título de aquisição da água que os réus poderiam ter e com a constituição de servidão legal inerente à condução da água, onerando o prédio dos autores em benefício do prédio dos réus.
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Na sentença consideraram-se provados os seguintes factos:
1. Os autores são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico, composto de terra de cultura, vinha, quatro macieiras e duas oliveiras, sito …, limite da freguesia de …, concelho de São João da Pesqueira, o qual confronta de Norte e Nascente com herdeiros de H…, do Sul com os réus e de Poente com I…, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 27 e descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Pesqueira sob o número 154/19871120, aí registado a favor dos autores através da apresentação 1 de 23/6/2008, conforme resulta das certidões juntas a fls. 27 e 28, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (factos assentes em A).
2. O prédio referido em 1 adveio à posse dos autores por compra que dele fizeram a J… e marido K…, conforme resulta da cópia de escritura de compra e venda celebrada em 13/6/1988, junta a fls. 32 a 34, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (factos assentes em B).
3. A confinar de Sul com o prédio dos autores encontra-se o prédio dos réus, sito no … ou …, freguesia de … (factos assentes em C).
4. Desde a data da sua aquisição pelos autores até ao presente, que estes, por si e antepossuidores, usam, fruem e cultivam o prédio descrito em 1 e 2 como bem querem e entendem, sendo que desde há mais de 20, 30, ou 40 anos até ao presente que os autores, por si e antepossuidores, limpam as oliveiras, varejam e apanham a azeitona do olival, cuidam e tratam da vinha, escavando-a, podando-a e colhem as uvas, com as quais fazem o vinho, pagam os impostos referentes ao mesmo e dele retiram todas as utilidades e proveitos, de forma contínua, ininterrupta e de boa fé, sem oposição ou reparo de ninguém e com conhecimento generalizado das pessoas de … (factos assentes em D).
5. No caminho público que passa a Nascente do prédio dos autores existe uma levada ou conduta de água canalizada, feita em cimento, denominada F…, a qual foi construída há cerca de 20 anos pelo Ministério da Agricultura e leva a água desde a nascente, situada a montante, a vários prédios de …, prédios estes que são irrigados por tal conduta (factos assentes em E).
6. Através da conduta que passa no caminho público, a montante do prédio dos autores, a água é desviada por meio de uma comporta, passa por um caminho de consortes, estendendo-se desde o caminho público referido em 5 até ao prédio dos autores (factos assentes em F).
7. Com essa água sempre os autores regaram nos dias que lhe eram destinados (factos assentes em G).
8. A conduta de água canalizada estende-se em todo o comprimento do caminho de consortes que se vê no croquis junto com a petição inicial, a fls. 12, tendo aí a extensão de cerca de 100 metros (factos assentes em H).
9. Os prédios dos autores e dos réus, na parte em que confinam entre si, estão separados por um muro meeiro de vedação construído em pedra, com cerca de 1 metro de altura e cerca de 50 centímetros de largura (factos assentes em I).
10. Para proceder à derivação da água da conduta, do prédio dos autores para o seu, o réu, sem autorização dos autores, sobe e desce esse muro meeiro de vedação (factos assentes em J).
11. O réu arrombou o canhão da fechadura do portão que dá acesso ao prédio dos autores, para captar a referida água do prédio destes para o seu (factos assentes em K).
12. O autor intentou contra o réu processo crime por crimes de ameaça e injúria, o qual corre termos por este tribunal sob o número 14/09.5TASJP (factos assentes em L).
13. A água da F… é proveniente da ribeira com o mesmo nome, com leito não navegável nem flutuável, a qual desagua, sucessivamente, no Rio …, no Rio … e no mar e foi captada, há mais de 20 anos, através de um açude construído pelo Ministério da Agricultura em colaboração com as autarquias locais, que construíram também uma rede de aquedutos até aos prédios agrícolas de regadio situados a jusante (factos assentes em M).
14. Em 2007, os autores mandaram destruir a caixa de derivação em cimento que existe no prédio destes, factos que deram lugar ao processo crime 100/07, que corre pelos Serviços do Ministério Público junto deste tribunal (factos assentes em N).
15. Em Junho de 2008, os autores retiraram do seu prédio os tubos em PVC pertencentes aos réus, aí colocados por estes, numa extensão de 11 metros, para aproveitamento da água proveniente da levada, tendo o réu apresentado a queixa crime constante de fls. 59 e 60, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (factos assentes em O).
16. Os autores colocaram um portão no seu prédio em 2007, mantendo-o aberto durante um ano, após o que lhe colocaram uma fechadura; tendo-lhes sido pedida uma chave, os autores recusaram-na (factos assentes em P).
17. Então os autores passaram a colocar um cadeado no portão, tendo os réus, para poderem seguir o curso da água da levada, cortado a respectiva corrente, do que deram conhecimento aos autores (factos assentes em Q).
18. Os réus reconstruíram a referida caixa de derivação em cimento e por duas vezes tiveram os réus que contratar um serralheiro para ir ao prédio dos autores cortar a corrente do cadeado com que estes tinham fechado o dito portão (factos assentes em R).
19. O prédio referido em 3. foi adquirido pelos réus através da escritura de compra e venda de 27/1/1978, conforme resulta do documento constante de fls. 54 a 58, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (factos assentes em S).
20. A água da F… é desviada por meio de uma comporta (referida em 6.) para um cano em plástico, tal como consta do croquis junto a fls. 12 (1 da base instrutória).
21. Tal cano dá água para dois prédios que antecedem o prédio dos autores e para este, indo desembocar no portão principal de entrada desse prédio e terminando aí (2 da base instrutória).
22. Não havendo naquele local qualquer outra conduta de derivação, ou comporta, que derive a água para outros prédios, designadamente para o prédio dos réus (3 da base instrutória).
23. Com essa água os autores regaram nos dias que lhes eram destinados (resposta a 4 da base instrutória).
24. Os réus, em data não concretamente apurada, arrogando-se com direito à água, efectuaram uma abertura no muro meeiro de autores e réus, junto ao solo, por forma a fazer passar pela mesma um tubo de plástico, o qual dá ligação a uma caixa de cimento que construíram na sua propriedade (resposta a 5 da base instrutória).
25. E escavaram e abriram um rego térreo com cerca de 6 metros de comprimento na propriedade dos autores, por forma a captar a água canalizada, desde o cano junto ao portão dos autores até ao seu prédio, para a caixa em cimento que se alude em 24., dali a derivando para o seu prédio (6 da base instrutória).
26. O réu D.. derrubou o muro referido em 9. e 10., no local referido em 10., numa largura de cerca de um metro (resposta a 8 da base instrutória).
27 E vem derrubando a rede plastificada de cerca de meio metro que o autor colocou sobre tal muro, a fim de evitar que o réu continuasse a entrar no prédio dos autores (9 da base instrutória).
28. Há pelo menos três anos que o réu vem entrando no prédio dos autores (resposta a 10 da base instrutória).
29. Com a actuação do réu os autores têm ficado aborrecidos (resposta a 11 da base instrutória).
30. A utilização da água da F… foi distribuída entre os proprietários dos prédios agrícolas de regadio referidos em 13. por uma junta de agricultores, constituída por três pessoas da freguesia que se organizaram para proceder à reconstrução dessa levada, beneficiando para o efeito de um subsídio concedido pelo IFADAP, que definiram os beneficiários e avaliaram o tempo de rega de cada um, em função da área de cada prédio (resposta a 13 da base instrutória).
31. Desde há pelo menos três anos que os réus vêm regando as culturas do seu prédio com a água da F… (resposta a 14 da base instrutória).
32. Com o intuito de impedir que os réus passassem para o seu prédio, o autor colocou rede junto ao muro, no local onde os réus subiam para ir buscar água ao prédio dos autores, e colocou no mesmo muro pedras que eram daí retiradas (resposta a 23 da base instrutória).
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Os réus entendem que a resposta ao quesito 13 deve ser provado.
Nesse quesito 13 averiguava-se se “a água da F… foi verbal e gratuitamente cedida aos respectivos proprietários dos prédios agrícolas de regadio referidos em M) em apoio da agricultura, tendo para o efeito o Ministério da Agricultura criado uma Junta de Agricultores, presidida por um funcionário do Ministério, com o objectivo de definir os beneficiários e avaliar o tempo de rega de cada um, em função da área de cada prédio?”.
Respondeu-se a tal quesito que “a utilização da água da F… foi distribuída entre os proprietários dos prédios agrícolas de regadio referidos em M) por uma junta de agricultores, constituída por três pessoas da freguesia que se organizaram para proceder à reconstrução dessa levada, beneficiando para o efeito de um subsídio concedido pelo IFADAP, que definiram os beneficiários e avaliaram o tempo de rega de cada um, em função da área de cada prédio (resposta a 13 da base instrutória)”.
Os réus apontam para contradição entre a resposta dada ao quesito 13 e a matéria da alínea M) dos factos assentes, onde se exara que “a água da F… é proveniente da ribeira com o mesmo nome, com leito não navegável nem flutuável, a qual desagua, sucessivamente, no Rio …, no Rio … e no mar e foi captada, há mais de 20 anos, através de um açude construído pelo Ministério da Agricultura em colaboração com as autarquias locais, que construíram também uma rede de aquedutos até aos prédios agrícolas de regadio situados a jusante”.
Os réus entendem que a resposta ao quesito 14 deve ser “provado que os réus vêm regando desde há mais de 4 anos as culturas do seu prédio referido em C) e S) dos factos assentes com a água da F…, durante as horas e dias que lhe foram atribuídas pela referida Comissão de Agricultores, por volta de 1997”.
Nesse quesito 14 averiguava-se se “os réus vêm, desde há mais de 20 anos, regando as culturas do prédio referido em C) e S) dos factos assentes com a água da F…, durante as horas que lhe foram atribuídas pela referida Comissão de Agricultores, o que fazem à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, na convicção de estarem a exercer um direito próprio, como se donos da referida água fossem, sem prejuízo de outrem, pois que no período semanal em que regam ninguém reclama tal água?”.
Respondeu-se a tal quesito 14: “provado apenas que desde há pelo menos três anos que os réus vêm regando as culturas do seu prédio com a água da F…”.
Os réus apontam para a conciliação dessa resposta com o ano da destruição de caixa que consta na alínea N) dos factos assentes e louvam-se no documento copiado a fls. 53, referindo, a um tempo, que tal documento foi entregue aos réus por volta de 1997, e, a outro tempo, invocando o conteúdo do mesmo documento.
Na discussão da matéria de facto dos quesitos 13 e 14 os réus não indicam quais os trechos do depoimento gravado da testemunha G…, ou de qualquer outra testemunha, que justificam a pretendida alteração às duas respostas, não cumprindo imposição prevista no art. 685-B nº 2 do CPC para que se possam ponderar os depoimentos prestados na audiência de julgamento.
Em todo o caso, os réus reúnem os requisitos para verem reapreciadas as respostas dadas aos quesitos 13 e 14 com base no art. 712 nº 1 al. a), primeira parte, e al. b) do CPC, face à prova documental que consta nos autos e por via de conciliação com factos que já tinham sido considerados assentes.
Relacionada com a matéria dos quesitos 13 e 14 também se encontra uma invocação de nulidade da sentença que se prende com a invocada alegação pelos réus de que quem concessionou a água em benefício do prédio dos réus foi uma alegada “junta de agricultores”.
Vejamos.
A água da F… não foi objecto de preocupação e, mesmo depois de 21/3/1868, nunca foi objecto de concessão perpétua a quem quer que fosse, tanto mais que o Decreto-Lei 32.380, de 5/6/1943, proibia prazo superior a 50 anos para a concessão para rega agrícola tendo por objecto água pública que corresse em leito não navegável nem flutuável.
Assim sendo, a água que se discute nos presentes autos é água pública, conforme art. 1385 do Código Civil (CC), art. 1 nº 3 do Decreto 5787-IIII, de 10/5/1919 (este art. 1 só foi revogado pelo art. 29 da Lei 54/2005, de 15/11) e art. 1386, a contrario sensu, do CC (cfr. ainda o art. 438 do Código Civil de Seabra, a contrario sensu).
Aquele art. 1 nº 3 do Decreto 5787-IIII estabelece que são do domínio público as correntes de água não navegáveis nem flutuáveis.
Nos termos daquele Decreto 5787-IIII, a água pública só pode ser objecto de apropriação privada, em irrigação de prédios rústicos particulares, mediante concessão do Estado.
A revogação do Decreto 5787-IIII, por via de diplomas adiante citados, em nada alterou a necessidade de instrumento administrativo de concessão por parte do Estado – actualmente através do INAG, Instituto da Água, Instituto Público – no uso particular de água pública em irrigação.
Quem concessiona a água que se discute nos presentes autos é o Estado.
Os réus chegam a concordar com essa asserção e a louvarem-se em elemento de prova que, de certeza, os não beneficia, quando afirmam, na apelação, que “o Estado cedeu, em 1960, os direitos ao uso da água da ribeira, definindo então os beneficiários e respectivos tempos e água (ver o livro da Direcção Hidráulica … […]) e em 1994 o mesmo Estado iniciou um processo de redefinição dos beneficiários e respectivos tempos de água”.
Acrescenta-se, sem querer descontextualizar as teses dos réus, que estes chegam a apelidar uma identificada “Junta dos Agricultores …”, como “junta ad hoc de agricultores”, o que também não beneficia a sua tese na parte em que se pretendem fazer valer do documento copiado a fls. 53 e de poderes dessa junta para os fazer beneficiar da água.
Ainda que se entenda que os réus invocaram no art. 3E do articulado de aperfeiçoamento da contestação que o seu prédio beneficiou de concessão da água pública deferida pela dita junta de agricultores, tal facto acabava por estar sob escrutínio nos quesitos 13 e 14 que ora se discutem, não tendo de ser formulado quesito com aquele alcance específico, pelo que não ocorreu nulidade alguma da sentença por alegada contradição entre os fundamentos e a decisão ou por omissão de pronúncia sobre questão que deveria ter sido apreciada na mesma sentença, improcedendo objecção de nulidade da sentença suscitada pelos réus.
Os réus não alegaram que o Estado delegou na dita junta de agricultores poderes de concessão da água (só na apelação parecem alegar que ocorreu tal delegação).
Como não delegou.
A junta de agricultores identificada na resposta dada ao quesito 13 não tem poderes de concessão da água, nem o Estado pode delegar em entidades particulares – constituídas em associação que tenha ou não tenha personalidade jurídica – poderes de concessão de água pública para irrigação de prédios rústicos particulares.
O Decreto 5787-IIII não prevê em ponto algum que o Estado pode delegar o poder de concessionar água pública.
Esse Decreto 5787-IIII também não prevê que o Estado possa conferir poderes de sub-concessão dessa natureza a entidades particulares.
Existiu – e talvez ainda exista – uma junta de agricultores que auxiliou o Estado na fixação do universo de concessionários e na regulação do uso da água, por fluxos horários proporcionais às áreas irrigadas e por outras regras de distribuição, tendo sido ainda essa junta de agricultores a interlocutora privilegiada do Estado nos assuntos que respeitam ao conjunto dos concessionários, mas não foi tal junta quem concessionou a água, nem será ela, caso continue a existir, quem poderá estabelecer novas concessões da água, ou revogar as concessões existentes.
A junta de agricultores também não é, ela própria, a concessionária da água pública, ou seja a concessionária instituída pelo Estado.
Os concessionários instituídos pelo Estado são os proprietários dos prédios rústicos em que se subdivide o perímetro de irrigação, perímetro esse que também foi definido pelo Estado – provavelmente em função da cota máxima de enchimento do açude interposto na F… –, mas é provável que nem todos os prédios rústicos integrados dentro desse perímetro, com cota válida para rega por gravidade, tenham sido contemplados com concessão, seja pela natureza das culturas dominantes no prédio não contemplado, seja pela diminuta área crítica em que a rega aí se poderia exercer, seja pela má qualidade do solo, seja pela onerosidade das obras com aquedutos, seja pela necessidade de se implementaram aquedutos fora das vias públicas e a atravessarem outros prédios particulares, seja pela escassez da água na máxima estiagem face aos volumes necessários para a rega do milho, seja por muitos outros factores técnicos.
Tais factores não devem fazer surpreender os réus por não serem concessionários, não obstante o seu prédio ter cota válida para rega e encontrar-se dentro do perímetro (geral) de rega que pode ser servido pela F….
Não é o tribunal quem tem de dar resposta ao clamor dos réus – que bem se entende – no sentido de poderem ter as culturas de regadio a fenecer, ou sem as poderem iniciar – a ponto de se lhes ter reconhecido efeito suspensivo na apelação – quando os autores, a viverem em Lisboa, não dão, nem podem dar, uso a uma água que, para os réus, seria uma base do seu modo de vida, determinando, em pura perda, que terão de abandonar a exploração do seu prédio, para mais num contexto em que o destino mais correcto daquela água pública é a de servir na irrigação agrícola, único justificativo da realização das obras do açude e da levada.
Esses argumentos dos réus terão de ser dirimido perante o Estado, concretamente perante o INAG, instituto este que se encontra na dependência do Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território.
Embora tivesse existido um excelente início de compreensão do assunto dos autos no despacho de 8/2/2012 (fls. 80 e ss.), a resposta dada ao quesito 13 desfoca a legitimidade primária na atribuição do direito ao uso da água, transformando uma entidade particular – no caso um conjunto de três pessoas físicas agindo num âmbito particular, que só teve funções de auxiliar do Estado e de mero interlocutor privilegiado do Estado – numa instituição que teve suposta legitimidade para concessionar a água pública da F…, quando essa legitimidade e competência nunca saíram do âmbito das funções do Estado e correspondem a atribuições e competências que o Estado não pode delegar, como nunca delegou, nem pode submeter a sub-concessão, como nunca submeteu.
A concessão da água em causa foi decisão do Estado, no âmbito da competência administrativa do Estado, cometida ao antigo Ministério da Agricultura.
Existe prova documental segura sobre o exercício dessa função administrativa: o livro com o “cadastro das propriedades afectas à associação dos proprietários da F…”.
Esse documento foi apresentado pelos autores na sessão de julgamento de 26/6/2012.
Verifica-se aí que a autoridade administrativa que procedeu à concessão da água pública, numa base individual que abrange cerca de 68 prédios rústicos, foi a Direcção de Hidráulica do …, uma subdivisão do Estado integrada no antigo Ministério da Agricultura.
Este documento é muito importante e só por si determina a alteração às respostas aos quesitos 13 e 14.
O extenso despacho de 12/7/2012 contém a fundamentação das respostas à base instrutória, mas não se divisa referência alguma ao livro com o “cadastro das propriedades afectas à associação dos proprietários da F…”, omissão que tanto mais avulta quando nessa fundamentação se alude a um documento emitido pela alegada Junta dos Agricultores …, composto por uma única folha de – eventual – cadastro das propriedades afectas ao regadio da F…, o supra referido documento copiado a fls. 53 (tal folha reporta-se a um único prédio, sendo esse prédio pertença dos réus (prédio de …)).
Com efeito, é inteiramente credível o livro com o cadastro completo das propriedades que beneficiam da água conduzida pela F….
Nesse livro documenta-se o conjunto dos prédios beneficiados, concessão a concessão, com cerca de 68 prédios.
A idoneidade probatória e a extensão da informação aglutinada num cadastro completo é muitíssimo superior à idoneidade probatória e à informação desintegrada que se extrai do documento apresentado pelos réus, copiado a fls. 53.
Este último é documento que refere um único prédio, desintegrado de uma lista total dos prédios beneficiados com a água, sem que se possa excluir que a alegada Junta dos Agricultores … nunca tenha estabelecido, em termos sistemáticos e incontroversos, a lista de todos os prédios beneficiados.
No confronto entre o livro com o cadastro completo das propriedades e o documento copiado a fls. 53 prevalece a idoneidade que se pode atribuir à autoria de um e de outro documento: a Direcção de Hidráulica do … tinha a verdadeira competência para proceder às concessões da água e tinha a razão de ciência primária no estabelecimento do cadastro dos prédios beneficiados, ao passo que a alegada Junta dos Agricultores … não tinha aquela competência e não passava de auxiliar da Direcção de Hidráulica do … em definições pertinentes para o assunto.
O livro com o cadastro de cerca de 68 prédios não menciona o prédio de … que pertence aos réus.
Esse prédio dos réus de … não se confunde com o prédio dos réus sito em …, o qual tem o número sequencial 8 no cadastro, sendo este o prédio que os réus referem no requerimento de 1/7/2012 quando mencionam o prédio referido a fls. 22 desse livro, o qual já pertenceu à falecida L…. Essa informação errada transmitida pelos réus é paradigma do conhecimento pelos réus de que o seu prédio de … não beneficia de concessão de água.
A resposta ao quesito 13 será alterada, mas não nos termos pretendidos pelos réus, até porque a formulação original do quesito já comportava a óbvia irrazoabilidade de a cedência da água ter sido feita de forma verbal: há muitíssimo mais de 20 anos que não existem actos administrativos válidos sob a forma verbal e nem sequer se pode ter por razoável que a alegada Junta dos Agricultores …, se porventura tivesse competência na adjudicação das águas, tivesse exercido essa competência de forma verbal. Bastará referir que os fluxos temporais de benefício da água se definem ao minuto – por exemplo o prédio 60 beneficiava de água à quinta-feira das 18h22m às 18h27m –, tendo quase necessariamente, num universo na ordem dos 68 prédios, de existir suporte muito mais válido para especificações tão finas e numerosas do que uma mera transmissão verbal.
Assim sendo, a resposta ao quesito 13 passará a ser a seguinte:
13- Provado que a água da F… foi concessionada pelo Estado a cada um dos proprietários de cerca de 68 prédios agrícolas de regadio referidos em M), existindo uma estrutura de organização e representação dos agricultores assim beneficiados que auxiliou o Estado na definição dos prédios que iriam ser beneficiados e que auxiliou o Estado na avaliação do tempo de rega, primordialmente em função da área de cada prédio.
Já na resposta ao quesito 14 salvaguarda-se conciliação temporal com o acto de destruição de uma caixa de derivação de água ocorrida no ano de 2007, mas em nada se confere relevância ao documento copiado a fls. 53, pelo que, na essência, se manterá idêntica à resposta dada na sentença, ou seja:
14- Provado que desde o ano de 2006 os réus vêm regando as culturas do seu prédio com a água da F….
Os réus também discordam da resposta não provado dada ao quesito 15, mas não existe contradição alguma entre os factos dos anos de 2007 e 2008 que se referem em N) e O) dos factos assentes e a estrutura de condução de água que corporiza o regime de concessões feitas pelo Estado muito antes desses anos de 2007 e 2008: os factos das alíneas N) e O) inserem-se num período temporal completamente distinto do referido no quesito 15, o qual se reporta ao início do funcionamento da F…, sempre há mais de 18 anos.
Mantém-se a resposta “não provado” dada ao quesito 15.
Nas respostas “provado” dadas aos quesitos 2 e 3 reconstitui-se a estrutura de condução de águas que corporiza o regime de concessões feitas pelo Estado e não a alteração a essa estrutura que os réus executaram nos anos de 2006 a 2008, bem como as correspondentes destruições ou inutilizações funcionais executadas pelos autores, pelo que não há contradição entre a matéria de facto provada dos quesitos 2 e 3 e a matéria de facto assente das alíneas N), R) e O) dos factos assentes.
Mantêm-se as respostas dadas aos quesitos 2 e 3.
Assim sendo, o elenco dos factos provados e não provados só é alterado em função das novas respostas dadas aos quesitos 13 e 14.
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O assunto dos autos nunca se poderia centrar no instituto da usucapião, mas, por outro lado, entende-se que a ausência de reconvenção para consolidar o reconhecimento de servidão legal ao uso da água que chega ao prédio dos autores em benefício do prédio dos réus e de oneração do prédio dos autores com servidão legal de aqueduto e de passagem a pé em benefício do prédio dos réus também não é suficiente para afastar o conhecimento da matéria dessas servidões legais.
Com efeito, tais servidões legais – mesmo com insuficiência da causa de pedir – acabam convocadas para o litígio dos autos por via das excepções peremptórias invocadas pelos réus.
A utilização da água pública pelos réus no seu prédio de … está dependente de concessão pelo Estado.
Não se tratou de uma distribuição particular da água e sim de uma obra pública de aproveitamento de água pública que nunca tinha sido sujeita a preocupação, com títulos administrativos de concessão da água, dividida por unidades de tempo, em que o concedente é o Estado, através da dissolvida Direcção Hidráulica ….
A concessão pelo Estado é imposta desde o décimo ano que se sucedeu à entrada em vigor do Decreto 5787-IIII, de 10/5/1919, conforme parágrafo 1 do correspondente art. 17: “decorridos 10 anos depois da publicação deste decreto, os aproveitamentos a que este artigo se refere [irrigação com água de correntes não navegáveis nem flutuáveis] só poderão fazer-se no regime de concessões nele regulado”.
Esse parágrafo 1 alterou o regime muito mais liberal do art. 434 do Código de Seabra, o qual permitia de forma quase totalmente livre o aproveitamento para benefício privado de água pública retirada de corrente não navegável nem flutuável.
A concessão da água em causa em nada se prende com a vigência do Código de Seabra, mas ocorreu muito depois do dito décimo ano que se sucedeu ao ano de 1919, conforme títulos administrativos de concessão que constam para cerca de 68 prédios rústicos no livro com o “cadastro das propriedades afectas à associação dos proprietários da F…”.
Nesse livro não consta o prédio de … dos réus e desde a (primeira) contestação dos réus que se tornou evidente que eles nunca tiveram concessão da água, a ponto de no articulado de aperfeiçoamento os réus acrescentarem que as concessões foram verbais, o que é obviamente impraticável – e ilegal, quanto a concessão por via de acto administrativo.
Os réus, mesmo pagando, não podem ir buscar a água que chega ao prédio dos autores e que aí não é utilizada a fim de a usarem na irrigação agrícola, ao abrigo da faculdade (excepcional) do art. 1558 do CC, tudo pela precisa circunstância de a água que chega ao prédio dos autores ser água pública concessionada e de o nº 2 do art. 1558 excluir daquela faculdade de aquisição potestativa a água pública concessionada.
A norma do art. 1558 citada reporta-se a servidão legal e é a prerrogativa jurídica que estaria mais próxima das pretensões dos réus, desde que pagassem a água aos autores, mas é procedimento totalmente excepcional, uma vez que corporiza verdadeira expropriação por utilidade particular, só sendo viável para água particular – água que aflora naturalmente no prédio serviente ou que está captada nesse prédio por obra do respectivo dono.
É juridicamente impossível – mesmo absurda – a expropriação por utilidade particular de uma água pública concessionada.
Não se deixa de referir que os autores, se porventura viessem a querer, também não podem vender aos réus a água pública concessionada que é apanágio do seu prédio, uma vez que a água pública concessionada não pode ser destacada do específico prédio que vem instituído no título de concessão.
Nunca é irrelevante assinalar que as servidões legais são títulos de constituição de direitos reais, ou de prerrogativas de posse, substantivamente distintas das servidões prediais constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família, existindo grande diferença entre a natureza das servidões do número 1 do art. 1547 do CC e a natureza das servidões do número 2 do mesmo art. 1547: as mais das vezes, a natureza jurídica das servidões legais é a de expropriação por utilidade particular, tendo de ser paga indemnização.
As alegações dos réus não são ajustadas à matéria das servidões legais que poderiam relevar e nunca sustentariam excepção peremptória que pudesse impedir a procedência do [1] pedido de declaração de os réus não terem direito à água, do [2] pedido de os réus se absterem da passagem dentro do prédio dos autores para captarem a água, do [3] pedido de os réus não poderem abrir rego dentro do prédio dos autores e do [4] pedido de os réus reconstruírem o muro meeiro, com demolição da estrutura de aqueduto e com reposição de outras estruturas de impedimento da devassa do prédio dos autores por parte dos réus.
O assunto dos autos centrar-se-ia em servidão legal, sendo até irrelevante a invocação de posse boa para usucapião – aliás não provada – que chegou a ser levada ao quesito 14 (conferir, por exemplo, o art. 19 da DL 280/2007, de 7/8).
Os réus não aludem com uma única palavra a tentativa sua – se é que existiu – de obterem concessão da água junto do Estado, assunto em que no ano de 2006 – quando eles começaram a regar – já vigorava a disciplina da Lei 54/2005, de 15/11, e da Lei 58/2005, de 29/12, relevando ainda nessa matéria o DL 226-A/2007, de 31/5, e o DL 280/2007, de 7/8.
A concessão que os réus porventura poderiam obter não consistiria na reafectação da água atribuída aos autores em benefício do prédio dos réus, já que isso, mesmo por decisão do INAG, corresponderia a expropriação por utilidade particular que o dito art. 1558 nº 2 proíbe, mas aquela concessão seria o suporte de expropriação por utilidade particular para que os réus estabelecessem aqueduto sobre o prédio dos autores (e muro meeiro) na irrigação do seu prédio e para poderem entrar a pé dentro do prédio dos autores durante as actividades de condução daquela água que lhes fora concessionada.
No assunto dos autos, o interlocutor principal dos réus sempre foi o Estado, hoje através de acto administrativo do INAG.
Como os réus precisam do prédio dos autores para fazerem transitar a água assim concessionada, claro que os autores também seriam interlocutor necessário dos réus, mas sempre numa condição que teria de ser antecedida pela concessão administrativa que o Estado/INAG deferisse.
Então sim e mediante indemnização, os autores seriam sujeitos de imposições potestativas conferidas aos réus através da servidão legal de aqueduto prevista no art. 1562 do CC.
Sem título administrativo de concessão de água pelo Estado, seja a pretensão dos réus – na forma de excepção peremptória – quanto ao direito ao uso da água que está atribuída aos autores no prédio destes, ao abrigo do art. 1558 do CC, seja a pretensão acessória de servidão legal de aqueduto prevista no art. 1562 do CC, para aproveitamento de água pública a onerar o mesmo prédio dos autores em benefício do prédio dos réus, fica liminar e radicalmente comprometida.
O dito art. 1562 realça a quase evidência de só poder existir servidão legal de aqueduto para aproveitamento de água pública se existir título de concessão da água, reiterando o impedimento radical e sempre comum que impede a procedência das excepções peremptórias invocadas pelos réus.
Sumário previsto no art. 713 nº 7 do CPC:
1- O Decreto 5787-IIII, de 10/5/1919, previa que a água pública captada em correntes não navegáveis nem flutuáveis só podia ser objecto de apropriação privada, em irrigação de prédios rústicos particulares, mediante concessão do Estado.
2- Esse Decreto 5787-IIII não previa que o Estado pudesse delegar em entidades particulares poderes de concessão de água pública para irrigação de prédios rústicos particulares.
3- Esse Decreto 5787-IIII também não previa que o Estado pudesse conferir poderes de sub-concessão dessa natureza a entidades particulares.
4- As asserções que antecedem em 2 e 3 são particularmente válidas quanto a juntas de agricultores ou a juntas de regantes que efectivamente auxiliaram o Estado na fixação do universo de concessionários em perímetros de rega e na regulação do uso da água, por fluxos horários proporcionais às áreas irrigadas e por outras regras de distribuição, continuando a ser, por vezes durante dezenas de anos, as interlocutoras privilegiadas do Estado nos assuntos que respeitam ao conjunto dos concessionários.
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Em face do exposto, acordam os Juízes em julgar a apelação improcedente e confirmam a sentença.
Custas pelos réus.

Porto, 10/7/2013
Pedro André Maciel Lima da Costa
José Manuel Ferreira de Araújo Barros
Judite Lima de Oliveira Pires