Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6622/10.4TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: DIFAMAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Nº do Documento: RP201107136622/10.4TDPRT.P1
Data do Acordão: 07/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Exigir o pagamento de uma dívida através de um meio [afixação de “aviso de cobrança”] em que para além de se pretender cobrar a quantia devida se expõe o devedor publicamente numa situação vexatória e de humilhação desnecessárias à boa cobrança da dívida é susceptível de integrar a prática de um crime de Difamação.
II – No saneamento do processo [art. 311.º, do CPP], só há lugar à rejeição da acusação se ela se revelar “manifestamente infundada” [n.º 3], o que não abrange os casos em que a acusação trata questão juridicamente controversa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 6622/10.4TDPRT.P1.
Acordam em conferência na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
1. No processo nº 6622/10.4TDPRT do 2º juízo, 3ª secção do Tribunal Criminal da Comarca do Porto em que é arguido
B…, melhor id. nos autos
Deduziu a assistente C… acusação particular contra o arguido, acompanhada pelo Ministério Publico, imputando-lhe a autoria material e um crime de injurias e de um crime de difamação, p. e p. respectivamente pelos arts 180, nº1 e 183, nº 1 a) e b) ambos do Código Penal.

2. Por despacho judicial de 9.2.2011, proferido ao abrigo do artigo do artigo 311º, do CPP, foi rejeitada a acusação considerando-a manifestamente infundada.
3. Deste despacho recorre a assistente C… que, em síntese, formula as seguintes conclusões:
3.1. No dia 23 de Abril de 2010 o arguido B… afixou na porta da arrecadação do dito prédio, de que é administrador, onde reside e onde também reside a assistente, situada no rés -do - chão e junto à entrada principal do prédio, um cartaz onde estava escrito o seguinte:
"AVISO DE COBRANÇA
4° ANDAR
Débito do ano 2009 101,65€
Débito do ano 2010 132,42€
(57,60€ + 74,82€)
TOTAL...... 234,07€
O administrador"
3.2. Ao afixar este cartaz, estava o arguido a imputar à recorrente um débito de prestações de condomínio, que bem sabia a recorrente não dever ou não lhe ser exigível, naquela data.
3.3. Apesar de Instado a retirar o referido cartaz através de carta que a recorrente lhe enviou em 24-04-2010 o arguido não só não retirou o dito cartaz como afixou a carta ao lado do mesmo, onde escreveu “Retiro quando for feito o pagamento”.
3.4. O arguido acabou por retirar o cartaz em 14-05-2010 sem que a recorrente tivesse pago qualquer das quantias pedidas.
3.5. Nunca o administrador cobrou receitas do condomínio através de cartazes expostos no hall de entrada do prédio porque tal procedimento nunca foi deliberado em assembleia de condóminos nem consta de qualquer regulamento do prédio.
3.6. Sempre o arguido, enquanto administrador, cobrou as receitas do condomínio através d contacto pessoal com os condóminos.
3.7. Assim aconteceu em 8.7.2010, quando o arguido foi pessoalmente cobrar a quantia de 57,60 €, quantia essa constante do cartaz mas que o arguido nunca havia pedido à recorrente.
3.8. Ao afixar aquele cartaz, foi intenção do arguido enxovalhar, humilhar, apoucar, atingir o bom nome da recorrente, ofendendo a sua honra e consideração.
3.9. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente procurando ofender a recorrente na sua honra e consideração, o que conseguiu.
3.10. Com o despacho recorrido, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 311º, nº 2, al. a) e 312º, do CPP bem como os artigos 180º nº 1 e 183º, nº 1, al a) e b), ambos do CP e ainda os artigos 25º e 26º da CRP.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação.

4. O arguido respondeu ao recurso, dizendo, em síntese:
4.1. A decisão recorrida não merece qualquer reparo.
4.2. O arguido foi administrador do condomínio e sempre procedeu diligentemente e com zelo no exercício das suas funções.
4.3. Nunca foi intenção do arguido por em causa a honra e consideração da recorrente mas reaver uma quantia que foi paga com os seus rendimentos.
4.4. O arguido apenas se limitou a responsabilizar alguém como devedor, dando a conhecer tal facto a terceiros.
4.5. a conduta do arguido não é susceptível de um juízo de censurabilidade jurídico, na medida em que tal conduta não é adequada e relevante para ofender a honra e consideração da assistente, tendo em conta as circunstâncias envolventes, o contexto em que as imputações são produzidas e a forma como o são.
4.6. O Direito Penal não pode proteger a assistente de meras impertinências ou de meros caprichos mas sim intervir em situações susceptíveis de um juízo de censura jurídico penal.
4.7. De resto, em nada foi atingido o núcleo essencial das qualidades inerentes à assistente.
Pelo que deve ser mantido o despacho recorrido.
5. O Ministério Público em 1ª instância também veio responder, dizendo:
I- Conhecendo de questão prévia nos termos do disposto no artigo 311°, n.º 1 do CPP, entendeu a Mm.ª Juíza a quo que os factos ora em análise e imputados ao arguido B…, na acusação particular, não constituem crime, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 311°, n.ºs 1, 2, al a) e n.º 3, al. d) do C.P.P., rejeitou a acusação deduzida, por manifestamente infundada.
II- Discorda a Assistente do entendimento da Mmª Juíza, e, dando por reproduzida a Acusação Particular, considera indiciados todos os factos ali imputados ao arguido, em termos suficientes para conduzirem à dedução de Acusação, ressaltando o facto de o Ministério Público já ter tomado posição, em dois momentos distintos, o primeiro no sentido da qualificação dos factos denunciados como crime, ao informar a Assistente, no final do inquérito, de que “no entender do Ministério Público foram colhidos indícios suficientes da prática do crime de difamação imputável ao arguido B…”; o segundo, ao acompanhar, oportunamente, a Acusação Particular “por se mostrarem reunidos nos autos indícios suficientes da sua verificação”.
III- O objecto do recurso reconduz-se assim a apurar se a Acusação Particular contém factualidade susceptível de integrar o crime de difamação pelo qual a Assistente deduziu aquela acusação, acompanhada pelo Ministério Público.
IV- Considera-se no douto despacho a quo, que “ responsabilizar alguém como devedor ou dar a conhecer tal facto, a terceiro, nos termos alegados, não é injurioso nem difamatório, ainda que tal facto possa ser inverídico” explicitando-se tal entendimento nos demais termos ali constantes que, com a devida vénia, se dão por reproduzidos.
V- Conclui-se que, “atentos os múltiplos factores que concorrem designadamente as circunstâncias envolventes alegadas como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as imputações são produzidas e a forma como o são, para aferir qual o nível de desvalor da ofensa a partir do qual a conduta do agente é susceptível de um juízo de censura jurídico-penal” (…) não se vislumbra que a eventual conduta imputada ao arguido assuma dignidade penal, na perspectiva de serem expressões criminalmente relevantes por adequadas a ofender a honra e consideração da assistente.”
VI- De acordo com o disposto no art.º 311.º, n.º 2 , do Código de Processo Penal , a acusação é rejeitada se for considerada manifestamente infundada; Por sua vez, dispõe o n.º 3, alínea d), do citado preceito que a acusação considera-se manifestamente infundada “se os factos não constituírem crime.”
VII- No caso concreto, o crime é susceptível de ser preenchido através da imputação de um facto ofensivo da honra, na segmentação correspondente à alínea a) do art.º 180.º do CP .
VIII- A noção de facto, de acordo com as palavras de Faria Costa traduz-se “naquilo que é ou acontece”; “é um juízo de existência ou de realidade”. Porém, não está excluída nesta modalidade da acção típica a determinação dos elementos objectivos do crime “pelo recurso a um horizonte de contextualização”, ainda de acordo com o mesmo autor.[1]
IX- Para o preenchimento do crime imputado ao arguido releva de forma particular, a contextualização da imputação dos factos alegadamente ofensivos da honra e consideração do visado, como foi entendido no douto despacho a quo.
X- Considerando tal relevância da contextualização dos factos importa analisar o que deve entender-se por uma acusação manifestamente infundada com vista ao eventual enquadramento do caso concreto no conceito de acusação manifestamente infundada, conforme decidido.
XI- De acordo com o nosso modelo processual penal acusatório, integrado por um princípio de investigação judicial, o objectivo do processo, dirigindo-se ao apuramento da verdade material, é fundamentalmente, o de determinar se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime e a correspondente responsabilidade com base nas provas produzidas (art.º 368.º do CPP).[2]
XII- A evolução legislativa em matéria de caracterização do sistema processual penal na perspectiva da repartição de funções em obediência às normas e princípios constitucionais “ [3] é esclarecedora do reforço claro das dimensões orgânico – subjectiva e material do princípio do acusatório constitucionalmente consagrado. E as diversas alíneas do n.º 3 do art.º 311.º do CPP definem, de forma clara, a área de actuação do juiz do julgamento, ao qual se impõe, em obediência àquele princípio, uma interpretação restritiva daquelas alíneas.”
XIII- É ainda na obra citada que se refere, por transcrição do Ac. RL de 16.05.2006, processo 836/2006-5. “manifestamente infundada é a acusação que , por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência dos indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para com o arguido , em clara violação dos princípios constitucionais.”
XIV- Ora, “se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz, no despacho do presente artigo não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente. Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na alínea d) do n.º 3 (Se os factos não constituírem crime) se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime.
XV- Conforme referido, para o preenchimento do crime difamação releva de forma particular a contextualização da imputação dos factos alegadamente ofensivos da honra e consideração do visado.
XVI- Assim, porque responsabilizar alguém como devedor ou dar a conhecer tal facto, a terceiros, em especial se tal facto for inverídico, propalado por meio não usual, e reiterado, pode ser, em concreto, ofensivo da honra e consideração do visado, afigura-se-nos que a Acusação Particular contém factos que a produção de prova em julgamento, melhor permitirá aperceber na perspectiva da sua idoneidade para “enxovalhar, envergonhar, humilhar, apoucar, atingir o bom nome da recorrente”, nas palavras da Assistente.
XVII- Contendo a Acusação Particular factos que permitem considerar suficientemente indiciada a ofensa à honra e consideração da Assistente, designadamente ao seu bom nome, indiciando-se suficientemente a prática do crime, de acordo com o juízo de suficiência de indícios a que alude o art.º 283.º, n.º 2, do CPP, não deveria, s.m.e. ter sido rejeitada.
XVIII- Importaria antes submeter tal factualidade à produção de prova, em sede de julgamento, ali se avaliando, em face da conjugação dos elementos probatórios a produzir e à luz dos critérios constitucionalmente exigidos para esta sede, a idoneidade da imputação do facto para produzir a ofensa.
XIX- Ao apreciar a factualidade constante da acusação para concluir pela inexistência de crime faz a Mm.ª Juíza a quo um juízo antecipatório das conclusões a extrair da prova a produzir em sede de julgamento, incorrendo a douta decisão recorrida em violação do princípio do acusatório, extravasando da natureza que é atribuída ao mesmo e dos seus limites, numa interpretação do art. 311º C.P.P. que viola o disposto no art. 32º, n.º 5, da CRP.
XX- Pelo exposto, afigura-se-nos assistir razão à Recorrente ao pugnar pelo recebimento da Acusação Particular e pelo prosseguimento dos autos para julgamento do arguido pela factualidade e incriminação constantes da Acusação Particular, acompanhada pelo Ministério Público.
6. Nesta instância, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer dizendo, em síntese,
Que subscreve os fundamentos da resposta do MP em 1ª instância, pelo que deve ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos, designando-se data para julgamento.
7. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II
Questão a apreciar:
A natureza de “manifestamente infundada”, da acusação.
III
1. É o seguinte, o teor do despacho recorrido:
“Registe e Autue como processo comum

O Tribunal é competente.
Questão prévia:
A Assistente deduziu acusação particular B… acompanhada pelo Ministério Publico acusando da autoria material e um crime de injurias e de um crime de difamação, p. e p. respectivamente pelos arts 180, nº1 e 183, nº 1 a) e b) ambos do Código Penal, e onde fez constar que:
“1º No dia 23 de Abril de 2010 o arguido, que é administrador do condomínio do prédio onde reside e onde também reside a assistente, pela primeira vez, afixou na porta, de cor castanha, da arrecadação do dito prédio, situada no rés -do - chão e junto à entrada principal do mesmo, local de passagem comum dos condóminos, de modo a ser visto por todos eles e por todas as pessoas que lá entrassem, um cartaz, em papel branco, (por isso bem evidenciado). onde estava escrito o seguinte:
"AVISO DE COBRANÇA
4° ANDAR
Débito do ano 2009 101,65€
Débito do ano 2010 132,42€
(57,60€ + 74,82€)
TOTAL...... 234,07€
o administrador"
2º O arguido, ao afixar este cartaz, estava a imputar à assistente um débito de prestações de condomínio, que bem sabia a assistente não dever ou não lhe ser exigível, naquela data.
3º Com efeito, aquele total anunciado no cartaz como sendo débito da assistente resulta da soma das seguintes parcelas - 57.60€ + 74.82€ + 101.65€=234.07€
4° Ora, o pagamento da dívida respeitante à primeira parcela 57.60€. só foi pedido pela primeira vez, à assistente pelo arguido, no dia 08/07/2010, por isso, em data posterior aquela em que o cartaz foi afixado sendo Imediatamente paga.
Doc. junto aos autos por requerimento registado em 30 de Setembro de 2010
5º No entanto o arguido mantinha em seu poder (sem que a assistente soubesse) o documento mencionado no número anterior pelo menos desde 14-02-2010, pois tal documento é uma factura emitida por D… com data de vencimento em 14-02-10.
6º A dívida respeitante à segunda parcela 7482€ não existia em 23 de Abril de 2010. sabendo o arguido que assim era já que esse crédito do condomínio foi objecto de uma acção Judicial que correu termos nos Juízos Cíveis do Porto terminando com uma transacção homologada por sentença de 22-11-2006 transitada em julgado Doc. nº 3 já junto aos autos.
7° O arguido sabia ainda que não podia exigir à assistente os 101,65€ da terceira parcela supra mencionada, porquanto tal quantia dizia respeito às contas do condomínio relativas ao ano de 2009, apresentadas na Assembleia de Condóminos realizada em 25-02-2010 mas que não foram votadas nem aprovadas designadamente pela assistente que logo nessa assembleia informou o arguido que Iria Impugnar, como Impugnou Judicialmente a acta que não assinou.
8º De facto encontra-se pendente nos Juízos Cíveis do Porto a respectiva acção de Impugnação da acta da assembleia de condóminos do prédio onde residem a assistente e o arguido realizada no dia 25-02-2010.
9° Apesar de Instado a retirar o cartaz designadamente através de uma carta registada que a assistente e marido lhe remeteram em 24-04-2010 o arguido não só não retirou o dito cartaz como ainda afixou essa carta ao lado do mesmo, com o seguinte comentário por ele escrito Retiro quando for feito o pagamento.
10° O arguido acabou por retirar o cartaz e a carta remetida pela assistente em 14-05-2010 sem que a assistente tivesse pago qualquer das quantias pedidas.
11º Apesar de no prédio haver cinco condóminos não existe regulamento de condomínio, nem conta poupança-condomínio pese embora haja decisão Judicial nesse sentido, sendo que de acordo com essa decisão, que se protesta Juntar os condóminos estão a pagar mais € 1000 para essa conta.
120 Nunca foi deliberado, em assembleia de condóminos, que se afixasse em local comum do prédio, qualquer lista de devedores ao condomínio e tal nunca havia acontecido antes de 23-04-2010 e só aconteceu, nessa data para achincalhar a assistente.
130 O arguido exerce o cargo de administrador do prédio há mais de dez anos continuadamente.
14° O arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente e ao praticar os actos aqui descritos, através de um meio que facilitou a sua divulgação, imputando à arguida uma divida que naquela data, bem sabia não existir ou não lhe ser exigível actuou com o único propósito de enxovalhar, envergonhar e humilhar a assistente, atingindo-a no seu bom nome e reputação, o que conseguiu.
*
Como resulta do disposto no artigo 311º., n.º 1, do CPP, “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”; e se “o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha nomeadamente no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada” (n.º 2), entendendo-se como tal a acusação cujos factos descritos não constituam crime (n.º 3, al. d)).
Vejamos:
Preceitua o artigo 180º, no seu nº 1, que: “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivo da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.
Antes de mais, convém referir que a distinção fundamental entre difamação e injúria consiste na imputação indirecta ou directa dos factos ou juízos desonrosos. É que uma coisa é a violação da honra perpetrada de maneira directa (perante a vítima), outra será levar a cabo aquela mesma ofensa fazendo intervir uma terceira pessoa, utilizando um terceiro para conseguir os seus intentos. Nas palavras de Faria Costa, diremos que: “a difamação pressupõe uma relação tipicamente triangular enquanto a injúria se basta por uma conexão bipolar” in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 608.
Analisando o preceito transcrito em primeiro lugar, verificamos que os elementos do tipo objectivo estruturam-se em dois grandes segmentos: um, o segmento ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja, através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido, mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros.
Por sua vez resulta do preceito transcrito em segundo que a injúria pode compreender tanto a imputação de um facto como a utilização de palavras.
A noção de facto, traduz-se naquilo que é ou acontece, na medida em que se considera como um dado real da experiência. Assume-se como um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, ou seja, é um elemento da realidade, traduzível na alteração dessa mesma realidade, cuja existência é incontestável, que tem um tempo e um espaço precisos.
Quanto ao significado de palavras ofensivas da sua honra e consideração, tem um valor de uso, valor que se aprecia no contexto situacional.
Mas o que sempre se exige, é que o comportamento seja lesivo da honra ou consideração de alguém.
Analisando os elementos dos preceitos transcritos teremos que:
Honra “é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade de carácter, à dignidade da pessoa que pauta o seu comportamento pelos ditames da moral, valores estes assumidos conscientemente pelo próprio indivíduo” in Ac. STJ de 21-03-79 e Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, Lisboa, 1996, 2º vol., pag. 317.
Consideração é “o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros” in ob. cit., pag. 317.
Por outras palavras, “honra consiste no conjunto de qualidades que exornam a personalidade”, enquanto que “a consideração é o conceito das outras pessoas sobre a personalidade de outrem, a estima ou o respeito que lhe dispensam” in Ac. RC de 03-07-93, CJ, XVIII, 4, pag. 71.
Como já referimos, difamar mais não é, basicamente, que imputar a outra pessoa (através de terceiro) factos ou palavras ofensivos da sua honra ou consideração, conceitos que já definimos. Contudo, vem-se entendendo que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão dos arts. 180 º e 181º do C.P.. É necessário que esses factos sejam objectivamente considerados ofensivos. Cabe então perguntar qual o nível de desvalor da ofensa a partir do qual a conduta do agente é susceptível de um juízo de censura juridico-penal.
Na realidade, existe em todas as comunidades um consenso sobre o comportamento que deve nortear cada um na convivência com os outros. Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros. Ultrapassado tal limite pode surgir o comportamento ofensivo. Cf. a este propósito: António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Coimbra 1996, pag. 37 e ss. e Ac. RP de 31-01-96, CJ, XXI, 1, pag. 242.
Na situação “sub iudice” o que se afixou foi um valor em divida por um andar do prédio, sem menção do nome de quem seria o devedor, e ainda que a assistente se possa sentir incomodada, com a afixação de tal papel, pelo arguido o certo é que aquela menção constante do texto acusatório, nem aquelas que constam dos documentos para onde aquela remete, são factos objectivamente injuriosos ou difamatórios. De facto, responsabilizar alguém como devedor ou dar a conhecer tal facto, a terceiro, nos termos alegados, não é injurioso nem difamatório, ainda que tal facto possa ser inverídico.
A assistente, pode sentir-se embaraçada, desgostosa ou perturbada, desconfortável até com a situação, todavia o dar a conhecer que seja devedor ao próprio ou a terceiro, como foi feito ainda que na realidade assim possa não o ser, por eventual discordância, não é objectivamente injurioso nem difamatório.
Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, por maioria de razão, nas relações de condomínio e que geram litigiosidade em Tribunal, o que é apto a gerar situações em que os agentes se podem expressar, ao nível da linguagem, de forma a perturbar, incomodar. Contudo, o direito penal não pode intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades inerentes à dignidade da pessoa humana.
Por conseguinte, e atentos os múltiplos factores que concorrem designadamente as circunstâncias envolventes, alegadas como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as imputações são produzidas e a forma como o são, para aferir qual o nível de desvalor da ofensa a partir do qual a conduta do agente é susceptível de um juízo de censura jurídico-penal, temos que e revertendo ao caso dos autos, no qual não se vislumbra que a eventual conduta imputada ao arguido assuma dignidade penal, na perspectiva de serem expressões de criminalmente relevantes por adequadas a ofender a honra e consideração da assistente.
Pelo exposto, por os factos ora em análise e imputados ao arguido B…, na acusação particular não constituírem crime, ao abrigo do disposto no art. 311º, n.ºs 1, 2, al. a) e n.º 3, al. d) do C.P.P., rejeito a acusação deduzida, por manifestamente infundada.
Custas pelo assistente, fixando a taxa de justiça no mínimo legal, art. 515 al f) do CPP.
Notifique
*
Pedido cível:
O pedido cível deduzido no processo penal tem como causa de pedir a prática de um ou vários crimes, e é deduzido no processo penal respectivo, nos termos do art. 71º, do Código Penal, ou seja, em conformidade com o princípio da Adesão.
Estando vedado ao Tribunal conhecer da causa de pedir enxertada no processo penal, (crime) mercê da rejeição da acusação supra decidida, não pode o Tribunal criminal conhecer do pedido cível conexo, por não poder sindicar a causa de pedir.
Assim, nos termos da al. e) do art. 287º, do CPC “ex vi” art. 4º do CPP, declara-se extinta a instância cível por impossibilidade superveniente da lide.
Custas (cfr. alínea m) do art. 4º, do RCJ)
Notifique,
Transitado o presente despacho e cumpridos os ulteriores termos do processo, oportunamente arquivem-se”.

2. Apreciando:
2.1. Compulsado o teor do artigo 311º, n.º 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do CPP, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente pode, desde logo, rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (n.º 2, al. a)), o que se verificará se os factos descritos na acusação não constituírem crime (n.º 3, al. d)).

Foi esta a prorrogativa usada pelo Juiz a quo, conforme resulta do despacho recorrido mas que não teve a concordância quer da assistente quer do Ministério Público. E pensamos que com acertada razão.
Os indiciados factos encontram-se minuciosamente narrados/descritos na acusação vertidos no despacho recorrido. Dispensa-se mais uma vez aqui a sua reprodução.
Merecendo aceitação as considerações gerais e teóricas tecidas no despacho recorrido sobre o conceito e natureza de honra e consideração, já o mesmo não acontece quanto à subsunção concreta da situação dos autos. Maxime quanto à interpretação feita pelo despacho do conceito de “manifestamente infundada”, da acusação que no caso se subsume a considerar os factos como não constituindo crime.

Importa também desde já anotar que a resposta da Digna Magistrada do Ministério Público coloca primorosamente a apreciação da questão na sua exacta dimensão em que deve ser analisada, merecendo ser destacados a contextualização da ocorrência dos factos, a interpretação do conceito de acusação manifestamente infundada e o “juízo antecipatório” das conclusões que desde já são feitas, o que só deveria ocorrer após a produção da prova o mesmo é dizer só após a fixação efectiva e concreta dos factos provados.
2.2. Efectivamente, só mediante a realização da audiência de julgamento com a consequente produção da prova é que é juridicamente aceite que se fixem os concretos factos ocorridos que merecerão a apreciação do tribunal com vista ao seu enquadramento jurídico criminal.
Sem prejuízo de ser sempre possível efectuar um juízo prévio sobre os factos indiciados, sempre se tratará de um juízo sobre factos putativos, que se poderão provar ou não naqueles exactos termos ou que poderão sofrer alterações ou nuances que melhor ajudarão a compreender a sua ocorrência, nomeadamente a dita contextualização.
É que pode pois acontecer que um facto “de per si”, isolado, não constituía crime mas que ocorrido ou praticado num determinado contexto, o possa constituir, porque merecedor de um determinado sentido ou imputação.
O despacho recorrido fundamenta a dado momento que “atentos os múltiplos factores que concorrem designadamente as circunstâncias envolventes alegadas como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as imputações são produzidas e a forma como o são, para aferir qual o nível de desvalor da ofensa a partir do qual a conduta do agente é susceptível de um juízo de censura jurídico-penal, temos que e revertendo ao caso dos autos, no qual não se vislumbra que a eventual conduta imputada ao arguido assuma dignidade penal, na perspectiva de serem expressões de criminalmente relevantes por adequadas a ofender a honra e consideração da assistente”.
Teve esta fundamentação uma pertinente resposta do MºPº:
“Assim, porque responsabilizar alguém como devedor ou dar a conhecer tal facto, a terceiros, em especial se tal facto for inverídico, propalado por meio não usual, e reiterado, pode ser, em concreto, ofensivo da honra e consideração do visado, afigura-se-nos que a Acusação Particular contém factos que a produção de prova em julgamento, melhor permitirá aperceber na perspectiva da sua idoneidade para “enxovalhar, envergonhar, humilhar, apoucar, atingir o bom nome da recorrente”, nas palavras da Assistente”.

Com certeza que ter uma dívida para com alguém, em princípio não é social e relevantemente censurável. Vive-se numa sociedade em que o assumir dívidas faz parte do quotidiano[4]. Mas também é verdade que a mesma sociedade espera que qualquer dívida seja regular e pontualmente paga.
Como também não pode ser considerado socialmente censurável, o acto de exigir o pagamento da dívida. Em caso de incumprimento é um acto normal. Acontece que, inexistindo censurabilidade na exigência da dívida, pode contudo a mesma existir na forma como esta é exigida. Ou seja, exigir o pagamento de uma dívida vencida segundo o meio legalmente admissível, interpelando o devedor para pagar, quer pessoalmente quer por escrito quer recorrendo à proposição de uma acção em tribunal[5], não constitui crime.
Exigindo uma dívida através de um meio em que para além de se pretender cobrar a quantia devida se expõe o devedor publicamente numa situação vexatória, de humilhação, desnecessárias à boa cobrança da dívida, com certeza que se pode estar perante uma ofensa ao bom nome e honra da pessoa logo, pode estar em causa a prática de um crime.
2.3. É certo que nem todo o facto que envergonha e perturba cabe na previsão dos arts. 180 º e 181º do C.P.. Mas como se afirma no despacho recorrido, há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros.
Ora, se esses limites forem efectivamente ultrapassados e se daí resultar uma humilhação para com a pessoa visada, sobretudo quando para exercer o direito em causa não era necessário ultrapassar esses limites, então é perfeitamente admissível estar já perante uma censurabilidade jurídico-criminal.
A censurabilidade criminal não advém do facto de a ofendida se sentir embaraçada, desgostosa, perturbada ou desconfortável. Advirá sim, do facto de a ofendida se sentir enxovalhada, envergonhada, humilhada, apoucada, atingida no seu bom nome.
2.4. Pelo que a definição ou concretização da exacta contextualização da prática dos factos pelo arguido e a sua percepção quer pela assistente quer por terceiros, os procedimentos normais de cobrança das dívidas dos condóminos pelo administrador, a necessidade ou desnecessidade de o administrador recorrer à afixação do “aviso de cobrança” ou aos efectivos motivos por que o fez, juntando ao dito aviso a carta enviada pela assistente para retirar tal aviso, são factos que devem ser submetidos ao contraditório da audiência para a sua fixação ou não como provados acrescidos de eventuais outras circunstâncias que da audiência possam resultar para o seu esclarecimento, de todos sendo possível, a final, realizar a devida concatenação e apreciação e concluir pela natureza ou não da sua censurabilidade criminal.
A relevância do contexto da ocorrência da conduta do arguido é afirmada no despacho mas não só essas circunstâncias indiciadas não são apreciadas ou valoradas, como se entende que faz a Mm.ª Juíza a quo um juízo antecipatório das conclusões a extrair da prova a produzir em sede de julgamento[6]

Este juízo antecipatório está por sua vez também em oposição com uma “interpretação restritiva”, que deve ser feita do conceito de acusação “manifestamente infundada”.

É legítima a referência feita pelo MP no sentido de que de acordo com o nosso modelo processual penal acusatório, integrado por um princípio de investigação judicial, o objectivo do processo, dirigindo-se ao apuramento da verdade material, é fundamentalmente, o de determinar se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime e a correspondente responsabilidade com base nas provas produzidas (art.º 368.º do CPP)[7].
Mostrando-se por sua vez também oportuna a citação feita do ac. RE de 10.10.2006, citado in CPP – Notas e Comentários, de Vinício Ribeiro:
“A evolução legislativa em matéria de caracterização do sistema processual penal na perspectiva da repartição de funções em obediência às normas e princípios constitucionais “é esclarecedora do reforço claro das dimensões orgânico –subjectiva e material do princípio do acusatório constitucionalmente consagrado. E as diversas alíneas do n.º 3 do art.º 311.º do CPP definem, de forma clara, a área de actuação do juiz do julgamento, ao qual se impõe, em obediência àquele princípio, uma interpretação restritiva daquelas alíneas.[8]”
2.5. Aceitamos, assim, como boa e a correcta, a posição segundo a qual
“manifestamente infundada é a acusação que , por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento , seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência dos indícios ser manifesta e ostensiva , no sentido de inequívoca, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal , constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para com o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais.[9]”

Mas pode-se ir ainda mais longe na definição deste conceito, ao ponto de se afirmar que “se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do presente artigo – do artigo 311º, do CPP -, não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente infundada” - CPP – Notas e Comentários, de Vinício Ribeiro, fls. 644.

“Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto a alínea d) do nº 3 (se os factos não constituírem crime) se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime” – mesmo autor, obra e fls.

Ora, por toda a narração e circunstâncias que já resultam indiciadas nos autos, de modo algum se pode afirmar que a questão é incontroversa e muito menos inequívoca.
Outrossim, o apuramento exacto dos factos pode revelar uma ofensa do bom nome e honra da assistente, pelos motivos já adiantados supra.
Mas não é intenção deste acórdão nem tal questão é o objecto do recurso, em desde já se concluir pela existência ou não da prática do crime pelo arguido.
Se o fizéssemos, estaríamos a incorrer no mesmo erro em que ocorreu o despacho recorrido: a fazer uma apreciação antecipatória do que efectivamente se pode vir a provar em julgamento sobre a efectiva ocorrência dos factos.
Ora, também é outra regra nobre em processo penal, jurisprudencialmente aceite e seguida, de que o mérito da acusação só em julgamento pode e dever ser apreciado – v. acs. da RC de 27.4.1994, BMJ 436, pg. 455 e de 15.2.1995, BMJ 444, pg. 721, citados por Vinício Ribeiro, fls. 644.
III
Decisão
Por todo o exposto, decide-se julgar o recurso procedente e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido que rejeitou a acusação com o fundamento de “manifestamente infundada”, que deve ser substituído por outro que receba a acusação – se outro ou outros fundamentos não houver para a sua rejeição -, designando-se dia para julgamento com a consequente e posterior tramitação dos autos.
Sem custas.

Porto, 13.7.2011
Luís Augusto Teixeira
Artur Daniel Tarú Vargues da Conceição
_________________
[1] Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág.612.
[2] Ac. RG de 14.03.2005, proc. 183/05.-1.ª.
[3] Extracto do AC. RE de 10.10.2006, citado in CPP – Notas e Comentários, de Vinício Ribeiro
[4] Embora também seja verdade que determinadas dívidas em determinadas circunstâncias – quer pelo valor, quer pela qualidade do devedor, quer pela qualidade do credor, quer pelas consequências que pode causar na vida do credor -, possam ser socialmente mais censuráveis que outras.
[5] Instituição vocacionada para os sujeitos processuais exercerem os seus direitos.
[6] Conclusão XIX da resposta do MP.
[7] Conclusão XI.
[8] Conclusão XII
[9] Ac. RL de 16.05.2006, processo 836/2006-5, referenciado na conclusão XIII e CPP – Notas e Comentários, de Vinício Ribeiro, fls. 644.