Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
128/08.9FBAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
ELEMENTOS DO TIPO
PROIBIÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RP20120229128/08.9FBAVR.P1
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos de incriminação pelo crime de Exploração ilícita de jogo, do art. 108.º do DL n.º 422/89, de 2 de dezembro, é manifestamente insuficiente a mera qualidade de proprietário do estabelecimento onde é encontrado material destinado à prática ilícita desse tipo de jogos.
II – A circunstância de as testemunhas (soldados da GNR) não poderem depor sobre declarações do arguido, não as impede de relatarem outros factos de que tenham tido conhecimento no exercício das suas funções, designadamente quanto à atividade que o arguido exercia no estabelecimento, bem como reações e comporta­mentos do mesmo que não se traduzam em declarações mas possam assumir relevo probatório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 128/08.9FBAVR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santos Tirso com o nº 128/08.9FBAVR, foram submetidos a julgamento os arguidos B… e C…, tendo a final sido proferida sentença que absolveu ambos os arguidos do crime de exploração ilícita de jogo p. e p. nos artºs. 108º nº 1 e 103º 1º, 3º, e 4º nº 1 al. g), todos do Dec-Lei nº 422/89 de 2.12, com a redação introduzida pelo Dec-Lei nº 10/95 de 19.1.
Inconformado com a sentença absolutória, dela veio o Mº Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo não considerou provado que B… explorava o D…, nem que beneficiava com os avultados ganhos que resultava da utilização da máquina apreendida, assim como, não deu como provado que sabia que aquele mecanismo desenvolvia jogo de fortuna e azar e que a sua exploração se encontrava confinada aos casinos e zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas e que, assim, estava vedada a sua exploração naquele local, nem que sabia que a exploração deste tipo de jogos era proibida e punida por lei;
2. Porém, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impõe uma decisão a esse propósito absolutamente contrária;
3. Com efeito, as testemunhas E… e F… referiram que o arguido se intitulou como o proprietário/explorador do estabelecimento e que sabia que a máquina desenvolvia um jogo ilegal (depoimento da testemunha E… – gravação de 10:28:00 a 10:42:07, de minuto 02:22 a 02:35, minuto 02:42 a 03:07, minuto 11:45 a 11:49), e da testemunha F… – gravação de 10:40:00 a 10:52:18, de minuto 02:07 a 02:21, de minuto 03:50 a 04:22 e de minuto 08:00 a 09:11);
4. Depoimentos esses que o tribunal não considerou ao contrário do que lhe era imposto, apesar de provenientes de testemunhas cuja credibilidade não foi posta em causa;
5. E não se diga tratar-se de “conversas informais”, já que consistem em depoimentos referentes a declarações do B… num momento de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida a ninguém em concreto e portanto numa fase meramente cautelar e na antecâmara do inquérito;
6. Nessa fase não havia inquérito, não havia apreensões nem havia arguido;
7. E foi a reivindicação da qualidade de proprietário/explorador por parte daquele indivíduo que iluminou a investigação e fez despoletar a abertura de inquérito;
8. De igual modo tal declaração fundou a suspeita que conduziu à constituição do mesmo como arguido;
9. Aliás, caso essa admissão não tivesse ocorrido não existiria qualquer suspeita sobre aquele que veio a ser constituído arguido, suspeita que só surgiu e foi sustentada precisamente com a afirmação proveniente do próprio que era proprietário/explorador do estabelecimento comercial denominado “D…”;
10. A prova produzida revelou o seguinte desenrolar fáctico: primeiro o OPC entrou no estabelecimento comercial, observou a máquina com os dizeres “Grand Prix”; depois tentou saber quem era o responsável por aquele espaço e por último, quando alguém em concreto assumiu essa qualidade, explicou o funcionamento da máquina assumindo que sabia que a mesma era ilegal é que se desencadeou a abertura do inquérito e concomitantemente à constituição de arguido;
11. E nunca poderia ter acontecido com uma ordem cronológica diferente, porque seria contrário às regras da experiência e aos depoimentos dos agentes policiais;
12. O arguido foi como tal constituído mal surgiram as suspeitas fundadas nas suas próprias afirmações perante o OPC (artigo 58º nº 1 al. a) do CPP);
13. De tão válido aquele ato sequer foi colocado em causa quer em termos formais quer substanciais nem pelo próprio arguido nem por outro sujeito processual;
14. No início era aquela declaração do B…;
15. O inquérito, a constituição de arguido e tudo o resto veio depois;
16. Sem prescindir, e por mero exercício académico, vamos imaginar que as declarações das duas testemunhas não permitiriam de per si relacionar o arguido com a propriedade do estabelecimento e que era efetivamente necessário um documento que atestasse essa qualidade;
17. O nosso ordenamento processual penal é timbrado na fase do julgamento pelo princípio da investigação em virtude do qual o tribunal tem o poder-dever de investigar os factos sujeitos a julgamento;
18. Ora, estabelece o nº 1 do artigo 340º do CPP que o “tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”;
19. Isto significa que a “adução das provas não cabe exclusivamente à acusação ou à defesa, recaindo também sobre o juiz o dever de, oficiosamente, mandar produzir todas aquelas que se lhe afigurem necessárias para esclarecer os factos e fixar a verdade judicial prática. Cabe-lhe não só participar ativamente na produção das provas arroladas pela acusação e pela defesa como também ordenar a produção de outras cuja existência lhe adveio da discussão da causa e que se revelem necessárias à descoberta da verdade” (in Código de Processo Penal, Comentários e notas práticas, Coimbra Editora, pág. 851);
20. Como bem refere o Tribunal, a prova desse facto probando poderia ser esclarecido através de prova documental, nela se incluindo, adiantamos nós, as declarações fiscais, as declarações para a Segurança Social do próprio arguido;
21. Bastaria, pois, oficiar essas entidades e esclarecer a que título o arguido é tributado;
22. Tais elementos permitiriam perceber desde logo se o arguido era ou não o proprietário do estabelecimento comercial “D…”;
Conclui pela alteração da matéria de facto e pela condenação do arguido ou, a entender-se legítima a dúvida sobre a propriedade do estabelecimento comercial, ser ordenada a diligência supra referida.
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O arguido B… respondeu às motivações de recurso pugnando pela respetiva improcedência, por entender não se ter produzido uma qualquer prova legal e bastante da sua responsabilidade quanto aos factos em apreço nos autos, impondo-se por isso a confirmação da sentença recorrida.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da rejeição do recurso por extemporâneo uma vez que, não tendo por objeto a reapreciação da prova gravada, deveria ter sido interposto no prazo normal de 20 dias. Caso assim se não entenda, deverá ser negado provimento ao recurso, uma vez que as testemunhas indicadas não atestaram, sem margem para dúvidas, a qualidade em que o arguido se encontrava no estabelecimento aquando da sua intervenção, nem procederam à recolha de qualquer documento que atestasse quem era o detentor da sua exploração, da respetiva licença ou outro.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1- No dia 21 de Maio de 2008, pelas 14.30 horas, três Agentes da Guarda Nacional Republicana dirigiram-se ao “D…”, sito na Rua …, n.° .., nesta comarca, onde encontraram o arguido B…, com vista a realizar uma acção de fiscalização.
2- Já no interior do referido café, constataram que em cima do balcão de atendimento ao público, se encontrava uma máquina electrónica tipo roleta, ligada à corrente eléctrica e pronta a ser utilizada pelos clientes, com os dizeres “Grand prix”, sem qualquer referência exterior quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou de série e com as seguintes características:
3- Tratava-se de um móvel de pequenas dimensões — tipo portátil — em madeira prensada, apresentando várias cores no vidro acrílico que se encontra na parte frontal.
4- Através do referido vidro acrílico visualiza-se a designação da máquina “Grand Prix” e na parte lateral direita encontramos o mecanismo de introdução de moedas de € 0,50, €, 1,00 e €2,00.
5- Ao centro do aludido painel situa-se um mostrador em forma de pista de corridas, dividido em oito pontos, os quais são identificados por um sinal de proibição seguidos pelos seguintes números: 1; 50; 2; 100; 5; 20; 200; 10.
6- O mostrador em forma de pista de corridas é constituído por vários Led’s - pontos de luz - equidistantes, sendo que, após a introdução de uma moeda de € 0,50 (mínimo para se iniciar a jogada) se iluminam sequencialmente, executando, no mesmo sentido, um movimento que percorre toda a pista. Destes, oito encontram-se devidamente destacados. Este mostrador apresenta oito (8) Led’s identificados com os seguintes números 1; 50; 2; 100; 5; 20; 200; 10, sendo que os restantes não têm qualquer identificação.
7- Ao centro do mostrador existe uma janela digital através da qual são visualizados os pontos provenientes de eventuais jogadas premiadas e, no lado direito, encontra-se uma nova janela digital que informa dos créditos existentes provenientes da introdução das moedas. Cada € 0,50 proporciona 50 créditos.
8- Quando, no final do movimento que percorre a pista de corridas, um dos Led’s identificados ficar iluminado, todo o mostrador se ilumina, dando indicação ao jogador que tem uma jogada premiada.
9- Na parte lateral esquerda da máquina, encontram-se dois pontos metálicos que permitem fazer o “reset” aos pontos provenientes de eventuais jogadas premiadas.
10- No lado direito da máquina encontra-se um botão encarnado que permite ao jogador utilizar os pontos acumulados. Por um ponto ganho, o jogador terá direito a mais duas jogadas.
11- Na base da máquina podem visualizar seis carros de corridas para brincar, também estes identificados com os números 5 a 200. 12- O jogo desenvolvido pela máquina processava-se da seguinte forma:
13- A máquina funciona com moedas que são introduzidas na ranhura existente ao cimo e à direita do painel frontal. Após a introdução de, no mínimo, € 0,50, automaticamente é disparado um ponto luminoso que percorre, no sentido dos ponteiros do relógio, os vários pontos de luz existentes no mostrador circular, iluminando-os à sua passagem.
• o ponto luminoso inicia o seu movimento giratório animado de grande velocidade que vai perdendo gradualmente até parar ao fim de algumas voltas, fixando-se aleatoriamente num dos diversos pontos de luz já referidos;
• após fixado num dos diversos pontos de luz, duas situações podem acontecer:
• o ponto de luz em que parou o ponto luminoso corresponde a um dos oito identificados pelos números já referidos e, neste caso, o jogador terá direito aos pontos correspondentes, que oscilam entre 1 (equivalente a € 1,00) e 200 (equivalente a € 200,00);
• o ponto de luz em que parou o ponto luminoso corresponde a um dos restantes pontos sem qualquer referência e, neste caso, o jogador não terá direito a qualquer prémio, restando-lhe a hipótese de tentar novamente a sua sorte, introduzindo mais moedas;
14- O ponto luminoso inicia o seu movimento giratório animado de considerável velocidade, que vai perdendo gradualmente, até parar ao fim de três ou quatro voltas, num dos oito pontos de luz com direito a prémio, com base, exclusivamente, na sorte, de nada valendo, para a obtenção do resultado final, a perícia e destreza do jogador.
15- O jogo conduz assim a resultados que dependem única a exclusivamente da sorte e consiste na atribuição aleatória de prémios pecuniários a quem arrisca dinheiro na esperança de ganhar mais dinheiro.
16- No interior da máquina encontrava-se a quantia de € 11,50.
17- A máquina apreendida encontrava-se naquele café para os respectivos clientes jogarem o jogo por si desenvolvido.
18- O estabelecimento comercial denominado “D…” não se encontra legalmente autorizado a explorar máquinas que desenvolvem jogos de fortuna e azar.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
Não se logrou provar que o arguido B… explorava o D…, nem que beneficiava com os elevados ganhos que resultava da utilização da máquina apreendida.
Tão-pouco se provou que a referida máquina funcione a exemplo do que se passa nas roletas tradicionais dos casinos.
Também não se provou que a referida maquina pertence ao arguido C1… que a cedeu e colocou no estabelecimento comercial designado “D…” mediante acordo com o arguido B…, nem que segundo tal acordo, o rendimento ou lucro resultante da exploração da máquina seria distribuída na proporção de 50% para cada um.
Não se provou ainda que ambos os arguidos sabiam que aquele mecanismo desenvolvia jogo de fortuna e azar e que a sua exploração se encontra confinada aos casinos e zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas e que, assim, estava vedada a sua exploração naquele local, nem que sabiam que a exploração deste tipo de jogos era proibida e punida por lei, mas, apesar de o saberem, os arguidos — em comunhão de esforços e na sequencia de um plano previamente por ambos delineado - quiseram actuar da forma descrita e explorar o referido jogo de fortuna e azar desenvolvido pelos referido mecanismo, colocando-o ao dispor do público, no referido estabelecimento de Café.
À demais matéria não se responde por ser conclusiva.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
A decisão do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida e que se limitou – uma vez que nenhum dos arguidos prestou declarações em audiência de julgamento - ao teor do exame de fls.130-133 de onde resulta a composição e modo de funcionamento da máquina apreendida nos autos e fotografias de fls.8 que a ilustram, o que foi conjugado com os depoimentos de E… e F…, militares da GNR que efectuaram a fiscalização que deu origem aos presentes autos e que procederam à dita apreensão. Não puderam, no entanto, estes atestar da qualidade em que o arguido B… ali se encontrava, pois desconheciam a que título estava no dito estabelecimento (nunca lá tinham entrado antes da dita ocasião), sendo que nenhum documento recolheram – cessão de exploração, licença de utilização ou outro – que permitisse extrair a conclusão de que o mesmo explorava efectivamente, em seu nome e em seu proveito, o dito café e bem assim a máquina em causa. Também nenhum meio de prova – processualmente válido - se produziu em audiência que ligasse a proveniência da aludida máquina ao arguido C…, pelo que foram os correspondentes factos considerados não provados.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o recorrente delimita o respectivo objecto à impugnação da matéria de facto e à omissão de diligências probatórias que entende deveriam ter sido oficiosamente produzidas pelo juiz em sede de julgamento.
Sustenta o recorrente que o tribunal recorrido não valorou devidamente a prova produzida, já que dos depoimentos das testemunhas militares da GNR resulta que era efetivamente o arguido B… quem explorava o estabelecimento comercial denominado D… onde se encontrava a máquina de jogo apreendida e que o mesmo sabia que a máquina era ilegal.
Antes de mais importa salientar que é manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação; apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância[3].
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[4], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica – e não como “novos julgamentos”.
Com efeito, “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”[5].
Por outro lado, como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008[6], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- Desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância por parte do recorrente de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
Ora, impondo-se que o recorrente, quando impugne a matéria de facto, proceda além do mais à indicação das concretas passagens da prova documentada que, em sua opinião, impõem decisão diversa da recorrida, no caso em apreço o recorrente limitou-se a transcrever parte dos depoimentos dos agentes da GNR, pretendendo com tal transcrição salientar que o arguido B… se identificou perante aqueles agentes como proprietário do estabelecimento onde foi apreendida a máquina de jogo.
Contudo, para efeitos de incriminação do ilícito acusado – exploração ilícita de jogo – é manifestamente insuficiente a mera qualidade de proprietário de um estabelecimento onde é encontrado material destinado à prática ilícita de jogos de fortuna e azar.
Vejamos:
Ao arguido B… foi imputada na acusação a prática de um crime de exploração ilícita de jogo p. e p. nos artºs. 108º nºs 1, 3 e 4, nº 1 alínea g), todos do Dec-Lei nº 422/89 de 2.12, na redação introduzida pelo DL nº 10/95 de 19.1.
Comete este tipo de crime «quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados…», sendo que, «jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte» - art. 1.º, daquele mesmo diploma legal.
Constituem assim elementos típicos do crime de exploração ilícita de jogo: (a) a exploração de jogos de fortuna ou azar - objecto da acção; (b) que essa exploração se processe por qualquer forma - modo de acção; (c) a exploração de tais jogos e por tais formas fora dos locais legalmente autorizados - ofensa do bem jurídico tutelado; (d) a existência de dolo em qualquer das suas modalidades - elemento subjectivo[7].

Importa, desde logo, clarificar o sentido do termo «exploração» para efeitos do ilícito em apreço.
Este termo «…envolve a ideia de desenvolvimento de actividade empresarial, económica, em que se tem em vista a obtenção de lucros…», pelo que «estando a exploração inserida no âmbito de uma actividade empresarial, ela ocorrerá independentemente de em cada momento a máquina de jogo estar a ser usada ou não». Dito isto, facilmente se compreende que «a materialização da exploração da máquina…basta-se com a colocação da máquina, de modo a proporcionar aos eventuais interessados, jogadores, a sua utilização»[8]. A exploração de um estabelecimento visa, naturalmente a obtenção de lucros e a exposição ao público de uma máquina de jogo tem como objetivo alcançar ganhos. Na ótica do explorador, o objetivo da exposição é o ganho, já que as máquinas de jogo não têm função decorativa.
Por outro lado, não se trata de um crime de execução vinculada, em que a norma indica a espécie de actividade em que deve traduzir-se a ofensa penalmente relevante do bem jurídico tutelado, mas antes, a conduta apresenta forma livre, podendo assumir uma pluralidade de variedades. A estrutura material da conduta não é objecto de descrição típica, sendo incriminada toda a actividade idónea ao exercício da exploração, pouco importando que a exploração da máquina de jogo seja levada a cabo pelo seu proprietário, ou por proprietário ou locatário de estabelecimento comercial, ou por aquele e estes em conjunto.
Mister é que o agente desenvolva uma atividade económica, visando a obtenção de lucros através da exposição ao público de uma ou mais máquinas que desenvolvam jogos de fortuna ou azar, proporcionando aos eventuais interessados a respetiva utilização.
No caso em apreço, pretende o recorrente demonstrar que dos depoimentos dos agentes policiais resulta que o arguido B… era, à data da ação de fiscalização, o proprietário do Café onde se encontrava a máquina de jogo.
Com efeito, da transcrição parcial de tais depoimentos resulta que o arguido se terá identificado àqueles agentes como proprietário do estabelecimento. Porém, tal qualidade não permite extrair a conclusão de que era o arguido quem efetuava a exploração do mesmo estabelecimento e, essencialmente, da máquina de jogo apreendida. Embora, da exploração do estabelecimento pudesse decorrer, segundo as regras da experiência comum, que igualmente explorasse a referida máquina, já a propriedade do estabelecimento não permite, sem mais, extrair a ilação de que o estabelecimento fosse efetivamente explorado pelo seu proprietário. São figuras jurídicas distintas que podem não coincidir na mesma pessoa física.
Diferentemente ocorreria se, para além de se ter identificado aos agentes policiais como proprietário, tivesse resultado da prova produzida em audiência de julgamento que o arguido, pessoalmente ou por interposta pessoa, procedia à exploração do mesmo estabelecimento. Na ausência de prova documental demonstrativa da efetiva exploração, poderia constituir indício da mesma, por exemplo, o facto de o arguido ter sido visto atrás do balcão, a atender clientes, a emitir ordens a empregados, etc.
Nada disso resulta da impugnação de facto formulada pelo recorrente e, como se disse, os depoimentos das testemunhas ali identificadas, é manifestamente insuficiente para determinar um juízo alternativo da matéria de facto, ou seja, não impõe decisão diversa da recorrida no que respeita à imputação dos factos ao arguido B….
Alega o Mº Pº que foi declarado por aquelas testemunhas (cuja credibilidade não foi posta em causa) que era o arguido quem efetivamente explorava o estabelecimento comercial denominado “D…” e que sabia que a máquina era ilegal.
Refira-se, novamente, que tal não resulta da transcrição feita nas motivações, a fls. 288 e 289. Aliás, ainda que o recorrente tivesse cumprido, nessa parte, o ónus imposto no artº 412º nºs 3 e 4 do C.P.P., sempre seria de questionar a valoração dos depoimentos dos agentes policiais a tal respeito.
Alega o recorrente que o arguido disse que era o explorador do café, que sabia que a máquina era ilegal tendo explicado o funcionamento da mesma aos agentes da GNR, defendendo que tais depoimentos não consistem na transmissão de “conversas informais” decorridas entre os agentes e o arguido e que, tendo ocorrido em momento antecedente à constituição daquele na referida qualidade processual e à abertura de inquérito, se enquadram na materialidade do artº 249º do C.P.P.
Vejamos:
Estatui o artigo 356º, nº 7, do Código de Processo Penal que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas. Nos termos do nº 2 do artigo 357º do mesmo Código, tal proibição é aplicável a declarações de arguido.
No caso em apreço, o arguido não prestou declarações em audiência, pelo que, não poderiam ser lidas declarações por ele prestadas perante órgãos de policia criminal nos termos do referido nº 7 do artigo 356º. A questão reside em saber se este regime é aplicável às declarações de agente ainda não constituído arguido, na fase de averiguações sumárias ao abrigo do artigo 249º, nº 1, do Código de Processo Penal.
A ratio deste regime prende-se com as implicações dos princípios da imediação e do contraditório. Contrariaria a exigência de imediação, isto é, de relação directa e imediata do juiz com a prova, a relevância probatória de declarações a que o juiz não assistiu, com o que isso implica de desconhecimento de factores que influenciam o juízo de credibilidade dessas declarações (a convicção, firmeza, segurança e seriedade com que foram prestadas tais declarações, a globalidade do contexto em que foram prestadas, etc.). E tal relevância também contrariaria as exigências do princípio do contraditório, pois seria inviável algum contra-interrogatório em ordem a, eventualmente no interesse da defesa, esclarecer o alcance dessas declarações ou permitir um mais sustentado juízo sobre a sua credibilidade, ou falta dela.
Entende hoje a doutrina[9] e a jurisprudência maioritária[10] que o regime de proibição do citado artigo 356º, nº 7, tem aplicação quanto às chamadas “conversas informais”, no sentido de declarações prestadas na fase de inquérito e não reduzidas a auto. É assim porque quod non est in acto non est in mundo, mas, sobretudo, porque a ratio do regime em causa tem aqui plena aplicação, porque se assim não fosse estaria a «deixar-se entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta» e estaria a via aberta para tornear a exigência legal (bastaria não reduzir a escrito uma declaração para que fosse permitida a sua leitura).
Quanto às declarações prestadas antes da abertura do inquérito, como se acentua no Ac. desta Relação de 05.01.2011[11] «se, durante a inquirição passar a haver fundada suspeita que a pessoa ouvida cometeu um crime “a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do artigo anterior” [59.º, n.º 1; 58.º, n.º 2], passando deste então essa pessoa a gozar do estatuto de arguido, com os seus direitos e deveres processuais [60.º; 61.º].
Por outro lado, as garantias de defesa e o direito a um processo equitativo ao conceder ao arguido o direito ao silêncio, conferem-lhe igualmente o direito de não contribuir para a sua incriminação quando prestar o seu depoimento, conforme é jurisprudência corrente no TEDH [Acórdãos Funke c. França de 1993/Fev./22; John Murray c. RU de 1996/Fev./08; Saunders c. RU de 1996/Dez./17], devendo por isso e previamente ser informado desse seu direito ao silêncio. A preterição daquela formalidade e atento o princípio da legalidade das provas [125.º], conjugados com os demais elementares direitos fundamentais, como as garantias de defesa [32.º, n.º 1 C. Rep.; 11.º, n.º 1 DUDH; 48.º, n.º 2 CDFUE] e o direito a um processo equitativo [20.º, n.º 4 C. Rep.; 10.º DUDH; 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º CDFUE], levam a que essas declarações prestadas pelo arguido não possam ver valoradas em audiência de julgamento».
Constituiria assim prova proibida as declarações das testemunhas E… e F…, agentes da GNR, quanto a eventuais declarações prestadas pelo ora arguido em fase anterior à abertura de inquérito. Tais declarações, a terem sido proferidas, como alega o recorrente, não poderiam ser valoradas e servir de base à prova dos factos imputados ao arguido.
O facto de as testemunhas em causa não poderem depor sobre declarações do arguido, não as impediria de relatarem outros factos de que tivessem tido conhecimento no exercício das suas funções, designadamente quanto à atividade que o arguido exercia no estabelecimento no momento em que ali entraram para proceder à ação de fiscalização ou a forma como abordou as referidas testemunhas, bem como reações e comportamentos do mesmo que não se traduzam em declarações, mas possam assumir igualmente relevo probatório[12].
Não é isso, porém, o que o recorrente pretende ao alegar que o arguido declarou aos agentes policiais que era ele que explorava o estabelecimento comercial em causa e que sabia que a máquina era ilegal.
Contudo, após o arguido se ter identificado como proprietário do estabelecimento, impunha-se que os agentes policiais tivessem suspendido a prestação de tais declarações, procedendo de imediato à comunicação de que o arguido passava a assumir essa qualidade e indicando-lhe os deveres e direitos, conforme dispõem os artigos 59º nº 1 e 58º nº 2 ambos do Código de Processo Penal.
Não o tendo feito, as eventuais declarações prestadas pelo arguido nessa fase jamais poderiam ser valoradas em audiência de julgamento.
Quanto ao invocado poder/dever do juiz na fase de julgamento de investigação dos factos, designadamente, oficiando às entidades competentes para obtenção de declarações fiscais e declarações para a Segurança Social, para esclarecer a que título o arguido é tributado, apenas se dirá que se estranha que o Mº Pº não tivesse junto aos autos tais documentos ainda na fase de inquérito ou, mesmo em sede de julgamento, não tivesse usado da faculdade prevista no artº 340º do C.P.P., solicitando que se obtivessem tais documentos, ao invés de esperar pela decisão absolutória por manifesta falta de prova, vindo suscitar em recurso uma omissão que a si próprio deve ser imputada.
A decisão recorrida não merece qualquer censura ao ter absolvido o arguido B… por ausência de prova da autoria dos factos que lhe eram imputados na acusação.
Improcede, assim, o recurso interposto pelo Mº Público.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando consequentemente a decisão recorrida.
Sem tributação.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2012
(elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] V. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I n.º 0 Maio de 1999, pág.
[4] In “O caso Julgado Parcial…”, 2002, pág. 37.
[5] Cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15/12/2005, proferido no proc. nº 2951/05 e Ac. STJ de 9/3/2006, proferido no proc. nº 461/06, relatados por Simas Santos (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais). Aliás, como se diz no Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), a admissibilidade da alteração da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação “mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
[6] Proferido no Proc. nº 07P4375, disponível em www.dgsi.pt
[7] Cfr. Acórdão, da Relação de Évora, de 19.05.98 e, na doutrina, ver Carlos Alberto da Mota Pinto, António Pinto Monteiro e João Calvão da Silva, «Jogo e Aposta - Subsídios de Fundamentação Ética e Histórico-Jurídica», Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1982; Rui Pinto Duarte, «O Jogo e o Direito», THEMIS, II, 3 (2001), pp. 69 e ss.; Sérgio Vasques, «Os Impostos do Pecado - O Álcool, o Tabaco, o Jogo e o Fisco», Almedina, 1999; António Patacas, «Jogos de Fortuna ou Azar», Ciência e Técnica Fiscal, 202/204 (Outubro/Dezembro de 1975) e 205/207 (Janeiro/Março de 1976); José de Oliveira Ascensão e António Menezes Cordeiro, «Jogos de Fortuna ou Azar Contrato Administrativo», Revista de Direito Público, ano II, n.º 3 (Janeiro de 1988), pp. 58 e ss.; Maria Lourdes Ramis, «Regimen Jurídico del Juego», Madrid, Marcial Pons, 1992. Cfr. ainda, com impressiva análise dos preceitos em referência, os Acórdãos, do Tribunal Constitucional, n.º 93/2001, de 13.03.2001, no Diário da República, 2.ª Série, de 5.6.2001, pp. 9479 e ss., e n.º 99/2002, de 27.02.2002, no Diário da República, 2.ª Série, de 4.4.2001, pp. 6214 e ss.
[8] Cfr. Ac. R. Évora de 19.05.1998, supra citado, in CJ, Ano XXIII, Tomo 3, pág. 283.
[9] V. Damião da Cunha, «O regime processual da leitura de declarações», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7º, 3, Julho-Setembro de 1997, pg. 403.
[10] V., entre outros, os Acs. do S.T.J. de 29.01.92, in C.J., 1992, I, p. 20; e de 22.04.06, in C.J.S.T.J., 2006, II, p. 165, e da Relação do Porto de 11.10.2000, in C.J., 2000, IV, p. 165.
[11] Proferido pelo Des. Joaquim Gomes e disponível em www.dgsi.pt
[12] É esse o sentido uniforme da jurisprudência: ver, por exemplo, os acórdãos do S.T.J. de 24.02.93, in C.J., 1993, I, p. 202; de 11.12.96, in B.M.J. nº 462, p. 299; de 25.09.97, in B.M.J. nº 469, p. 351; e de 20.12.2002, in C.J.-S.T.J., 2002, III. P. 232, e o acórdão da Relação de Évora de 02.03.2004, in C.J., 2004, III, p. 232.