Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0625494
Nº Convencional: JTRP00039791
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
Nº do Documento: RP200611290625494
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 233 - FLS 113.
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade decorrente da omissão parcial de gravação de um depoimento apenas se constitui como nulidade processual (secundária) se se puder concluir que viria a influir no exame ou na decisão da causa; tal não ocorre se o depoimento em causa não foi decisivo para a convicção do tribunal.
II - A testemunha não indicada a um determinado quesito, factualmente complementar de outro a que foi indicada, pode formar a convicção do tribunal sobre a matéria desse mesmo quesito a que não foi indicada, por força do princípio da aquisição processual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo sumário nº…../03.8TBVNG, do .º Juízo Cível da Comarca de Vila Nova de Gaia.
Autor – B………. .
Réu – C………. .

Pedido
Que o Réu seja condenado a pagar ao Autor a quantia de € 3.530,99, resultante da diferença entre a reparação paga pelo Autor com a condenação obtida em julgado.
Que o Réu seja ainda condenado a pagar ao Autor a quantia de € 1.524,63, tidas com alimentação feita em restaurantes, fruto da inabitabilidade da fracção do Autor.
Tese do Autor
O Autor é proprietário de uma fracção predial situada abaixo de uma outra fracção de que o Réu é proprietário.
O Réu foi condenado a indemnizar a Administração de Condomínio do prédio, por via de obras por ele levadas a cabo que causaram danos, entre outros, na fracção predial do Autor.
Todavia, os danos agravaram-se entretanto na fracção do Autor, forçando o Autor a realizar obras urgentes que orçaram Esc.1.017.900$00, tendo o Autor direito à diferença entre aquela primeira condenação e a quantia que suportou.
Para além disso, o Autor viu-se privado da utilização da cozinha, por via da abundante entrada de água proveniente da fracção do Réu, durante longo período de tempo.
Tese do Réu
O Autor actua em abuso de direito já que aceitou uma condenação judicial anterior, movida por terceiro contra o ora Réu, e dela se desvincula agora, apesar de já conhecer ou dever conhecer a extensão dos danos invocados.
Impugna os montantes invocados para o valor dos danos.
Sentença
Na sentença proferida pela Mmª Juiz “a quo”, a acção foi julgada procedente, por provada, e o Réu condenado a pagar ao Autor as quantias de € 3.530,99 e aquela que se vier a apurar em execução de sentença, respeitante às despesas tidas com alimentação, até ao limite de € 1.524,63.

Conclusões do Recurso de Apelação
1ª - O Recorrente argui desde já a nulidade de omissão de gravação da totalidade dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, sendo que tal alegação perante esse V. Tribunal é legítima e tempestiva.
2ª - O depoimento que se encontra incompleto é o da testemunha F………. .
3ª - As respostas dadas aos qq. 1º e 2º não tiveram em linha de conta a prova produzida em sede de audiência de julgamento.
4ª - Da conjugação dos depoimentos das testemunhas D………. e E………. – cassete 1, lado A, início a 31:83 – resulta que as mesmas testemunhas não conhecem sequer a marquise construída pelo Recorrente, pelo que, no que concerne a resposta dada aos qq. 1º e 2º, os depoimentos de ambos são irrelevantes.
5ª - A testemunha F………. referiu que a cessação das infiltrações deveu-se a terem sido feitas obras nos terraços do andar de cima em 2001, não tendo havido qualquer outro problema até aos dias de hoje, tendo tal facto sido corroborado pela testemunha G………., que foi precisamente quem realizou as obras de impermeabilização de todos os terraços do 6º andar – cassete 1, lado A, parte final e lado B.
6ª - Resulta dos depoimentos das testemunhas F………. e G………. que as infiltrações de água cessaram após o condomínio ter realizado uma intervenção nos terraços do 6º andar, não tendo a área da marquise construída pelo Recorrente sido objecto de qualquer intervenção.
7ª - Assim sendo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, nunca deveria ter sido dada como provada a matéria relativa aos qq. 1º e 2º.
8ª - Ao arrepio da indicação da matéria de facto feita pelo Recorrido, o Mmº Tribunal “a quo” descreveu o depoimento da testemunha G………. como sendo aquele onde tinha sido descrita a má execução das obras de construção da marquise na fracção do Recorrente.
9ª - Acontece que resulta da acta da audiência de julgamento constante de fls.214, a testemunha G………. não foi indicada ao quesito 1º, pelo que não podia ser tomado em linha de conta o seu depoimento em tal matéria.
10ª - Ao não entender assim, incorreu o Mmº Tribunal “a quo” num vício previsto no artº 668º nº1 al.d) C.P.Civ., sendo por isso nula a decisão recorrida.

Em contra-alegações, o Réu pugna pela manutenção do decidido.

Factos Considerados Provados em 1ª Instância
1 - O Autor B………. é proprietário do 5º andar direito traseiras, do prédio sito à Rua ………., Ent. .., em Vila Nova de Gaia – alínea A) dos factos assentes.
2 - O Réu C………. é possuidor de um andar imediatamente acima do do Autor, no 6º andar esquerdo do prédio sito na Rua ………., Ent. .., em Vila Nova de Gaia – alínea B) dos factos assentes.
3 - Na fracção identificada no ponto 2 dos factos provados, realizou o Réu um conjunto de obras, nomeadamente construção de duas marquises no terraço de cobertura – alínea C) dos factos assentes.
4 - Em 21 de Dezembro de 2000, a administração do condomínio do prédio acima identificado, demandou judicialmente o aqui Réu através de acção que correu termos no .º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, sob o nº ./2001, onde, por sentença de 19 de Abril de 2002, já transitada em julgado, foi este condenado no pagamento da quantia de 310.000$00 / € 1546,27, acrescida de juros à taxa legal de 7% desde a data de citação até integral pagamento. - documento de fls. 86 a 101 dos autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – alínea D) dos factos assentes.
5 - A administração do condomínio do edifício onde se insere a fracção aludida no ponto 1 dos factos provados procedeu à realização de obras de impermeabilização do terraço aonde foi levada a cabo a construção das marquises aludidas no ponto 3 dos factos provados, obras essas que foram realizadas por aquela administração em substituição do Réu, e que ficaram concluídas em finais de Agosto de 2001 – alínea E) dos factos assentes.
6 - A construção das marquises aludidas na alínea C) dos factos assentes foi defeituosamente executada – resposta dada ao quesito 1º.
7 - Tendo provocado, a partir de Dezembro de 1999, constantes infiltrações na fracção aludida no ponto 1 dos factos provados, designadamente em dois quartos e na cozinha – resposta dada ao quesito 2º.
8 - Tais infiltrações causaram o escorrenciamento dos tectos, o empolamento da tinta das paredes, a existência de água líquida nas referidas divisões, e o apodrecimento e queda do gesso dos tectos – resposta dada ao quesito 3º.
9 - Posteriormente à data da propositura da acção, a que se alude no ponto 4 dos factos provados, as infiltrações aludidas estenderam-se a um outro quarto da fracção e ao WC, provocando, também aí o escorrenciamento dos tectos, o empolamento da tinta da parede, a existência de água líquida nas referidas divisões e o apodrecimento e queda do gesso dos tectos – resposta dada ao quesito 4º.
10 - Em 07 de Agosto de 2001, o Autor comunicou à administração do condomínio, o início da reparação dos danos provocados na sua fracção, face à inércia do Réu em repará-los – resposta dada ao quesito 5º.
11 - O custo da reparação orçou em 870.000$00 / € 4.339,55, acrescidos de IVA – resposta dada ao quesito 6º.
12 - Tal montante foi pago pelo Autor – resposta dada ao quesito 7º.
13 - A abundância de água que caía directamente da fracção aludida no ponto 2 dos factos provados impossibilitava a ligação do fogão eléctrico, único existente na fracção identificada no ponto 1 dos factos provados – resposta dada ao quesito 8º.
14 – A situação aludida no ponto 13 dos factos provados obrigou, quer o Autor, quer o seu filho, a comer em restaurantes – resposta dada ao quesito 12º.

Fundamentos
As questões colocadas pelo presente recurso são as de saber:
- se existe nulidade por omissão de gravação de um dos depoimentos testemunhais prestados em audiência;
- se, tendo o tribunal baseado a resposta ao q. 1º no depoimento de testemunha não indicada pela parte, ocorre a nulidade prevista no artº 668º nº1 al.d) C.P.Civ.;
- se, em face da prova produzida em audiência, as respostas aos qq. 1º e 2º deveriam ter sido negativas, ao contrário da resposta positiva que obtiveram.
Apreciemo-las seguidamente.
I
Foi ouvido na íntegra o suporte áudio integrando o registo dos depoimentos de parte e testemunhais.
No que concerne as respostas aos qq. 1º e 2º que nos ocupam (os quais receberam resposta positiva) não podia ser outra a conclusão.
Aí se perguntava, recorde-se, se “a construção das marquises, pelo Réu, foi defeituosamente executada, tendo provocado, a partir de Dezembro de 1999, constantes infiltrações na fracção aludida em A) dos Factos Assentes, designadamente em dois quartos e na cozinha”.
Ora a única prova com que o Tribunal se teve de haver foi a prova positiva.
Alguns depoimentos relacionaram temporalmente as obras efectuadas no terraço superior com os danos presencialmente verificados na fracção do Autor – assim, D………. (vizinho e membro da comissão de obras que corrigiu o isolamento do terraço) e E………. (colega de trabalho do Autor); nesse particular, sobretudo, o filho do Autor, e com ele convivente, F………. declarou claramente que, começadas as obras no terraço, começou a “chover” dentro de casa – terminadas as reparações, em 2001/2002, de nada mais se podia queixar, porque as infiltrações de água na fracção de seu pai cessaram.
Desta forma, tais depoimentos apelaram também a uma conclusão de experiência (a formular pelo tribunal), sendo certo que nenhuma outra causa potencial para as infiltrações de água, no apartamento do Autor, foi referida.
Todavia, o depoimento decisivo em tais matérias foi claramente o da testemunha G………., cuja isenção entre as partes é absoluta, já que trabalhou, a pedido do condomínio, em 2001, na correcção do isolamento do terraço.
Esta testemunha constatou, após retirar o material cerâmico e a tela, que esta última se encontrava ferida pelos parafusos de fixação da marquise, por cima da habitação do Autor; e obviamente que, de acordo com o seu depoimento, a conclusão é apodíctica – se o material de isolamento está fendido (ferido), é claro que a água, que chegava a empoçar no terraço, teria por força que penetrar nas paredes divisórias entre pisos.
Ora, toda a prova referida não foi minimamente contraditada pela prova oferecida pelo Réu ou outra: as testemunhas que apresentou apenas depuseram ao valor das obras na fracção do Autor (H……….), nada sabiam em concreto sobre a matéria (I……….) ou conheceram a fracção do Réu apenas depois de as novas obras de impermeabilização do terraço se encontrarem concluídas (J……….).
Nesta matéria outra conclusão não nos resta senão sufragar por inteiro as respostas dadas.
II
Existe de facto uma parte do depoimento da testemunha F………. que, por motivos que se desconhecem, não ficou registada no suporte áudio.
Tal poderia constituir uma nulidade processual secundária se se pudesse concluir que viria a influir no exame ou na decisão da causa – artº 201º nº1 parte final C.P.Civ.
Mas já vimos como, por um lado, o depoimento da testemunha é concordante com o sentido do depoimento de outras, designadamente as testemunhas D………. e E………. .
Ainda que o não fosse, por factualmente mais rico, convincente ou veemente, sempre haveríamos de o relativizar em função da ligação familiar com o Autor e da vivência que interiorizou, necessariamente interpretada de acordo com os respectivos interesses.
Depois, é certo que, na parte não gravada, o depoimento da testemunha poderia ter sido contraditório, sufragando a tese do Réu – tal não é verosímil já que o teor do depoimento acima aludido foi concordante no início e na parte final do depoimento (partes efectivamente gravadas); nem o Réu/Apelante referencia essas eventuais contradições ou outras.
Finalmente, há que relembrar que o depoimento claramente decisivo foi o da testemunha G………. .
Por isso, a nulidade invocada, que existe, nenhuma influência assume no exame e na decisão da causa, não nos cabendo dessa forma pronunciarmo-nos sobre qualquer eventual anulação ou repetição de depoimento.
III
O Réu/Apelante mais entende que o depoimento da testemunha G………. não poderia ter sido valorado por não ter sido ouvido à matéria do quesito 1º.
Não se pode porém esquecer que a testemunha foi oferecida à matéria do quesito 2º, matéria essa que constitui um simples desenvolvimento, mas decisivo, porque factualmente concretizador, da matéria do quesito 1º.
Ainda que assim não fosse, a alegação não colheria, já que nos cabe recordar que vigora no ordenamento processual português o princípio da aquisição processual (ut J. A. dos Reis, Anotado, III/272ss.): as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, “pouco importando saber por via de quem elas foram trazidas ao processo”.
Decorre do princípio afirmado no artº 515º C.P.Civ. que “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las” – neste sentido, afigura-se inteiramente correcto poder recorrer a um meio de prova não directamente produzido a um concreto quesito, para responder afirmativamente a esse mesmo quesito.
Em sentido semelhante decidiu o Ac.S.T.J. 22/11/90, Actualidade Jurídica, 13/11.
Muito menos se poderia afirmar qualquer excesso de pronúncia, (artº 668º nº1 al.d) C.P.Civ.), nulidade que se reporta à decisão em si, e não ao iter escolhido pelo tribunal para atingir a decisão.
Por todo o exposto, acompanha-se claramente o sentido da decisão recorrida

Resumindo a fundamentação:
I - A nulidade decorrente da omissão parcial de gravação de um depoimento apenas se constitui como nulidade processual (secundária) se se puder concluir que viria a influir no exame ou na decisão da causa – artº 201º nº1 parte final C.P.Civ.; tal não ocorre se o depoimento em causa não foi decisivo para a convicção do tribunal.
II – A testemunha não indicada a um determinado quesito, factualmente complementar de outro a que foi indicada, pode formar a convicção do tribunal sobre a matéria desse mesmo quesito a que não foi indicada, por força do princípio da aquisição processual (artº 515º C.P.Civ.).

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente, por não provado, o recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.

Porto, 29 de Novembro de 2006
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
José Gabriel Correia Pereira da Silva
Maria das Dores Eiró de Araújo