Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0843468
Nº Convencional: JTRP00041638
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RP200809240843468
Data do Acordão: 09/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REENVIADO O PROCESSO.
Indicações Eventuais: LIVRO 331 - FLS 185.
Área Temática: .
Sumário: O art. 129º, nº 1, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos de testemunhas que relatem o que ouviram dizer a um arguido que, podendo depor, se recusa a fazê-lo, no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge de forma intolerável e desproporcionada o direito de defesa do arguido nem o contraditório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. n.º 3468-08
Famalicão.

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão, foi decidido:
Julgar improcedente, por não provada, a acusação e, em consequência, absolver o arguido B………., da prática do crime de furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº1 do Código Penal.
Inconformado recorreu o Ministério Público rematando a pertinente motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
a) o arguido B………. foi acusado da prática de um crime de furto, previsto e punido no art.º 203, do Código Penal bem como de outros dois ilícitos em relação aos quais ocorreu desistência de queixa, devidamente homologada;
b) tendo sido julgado, veio a ser absolvido por sentença datada de 3 de Março de 2008;
c) parte dos factos indicados na acusação no que ao citado crime de furto respeita não foram dados por provados, tendo apenas sido dado por provado que o arguido foi visto no dia dos factos na posse dos óculos de sol pertença da queixosa;
d) a prova assentou no depoimento da ofendida e das testemunhas ouvidas, as quais depuseram de forma isenta, objectiva e credível, logrando convencer o tribunal quanto aos factos provados de que mostraram conhecimento directo;
e) impõe-se a correcção da matéria de facto provada, no sentido de constar que o arguido foi visto na pose dos óculos da ofendida pelas 14H00 do dia dos factos;
f) impõe-se também que a matéria de facto dado como não provada seja dada como provada;
g) mesmo considerando a impossibilidade de valoração das confissões do arguido à ofendida e algumas das testemunhas, a prova produzida é bastante, num quadro de normalidade e de experiência comum, para concluir pela autoria dos factos pelo arguido, sendo muito menos provável e talvez mesmo contrário a tais regras de experiência comum, que o arguido não seja o autor dos factos, por ter recebido os óculos de terceiros ou por os ter achado, como se considerou hipoteticamente em sede de motivação na sentença;
g) ocorre, por isso, erro na fixação da matéria de facto e erro na apreciação da prova;
h) mesmo que o Tribunal não considerasse que tal prova bastante para a condenação para a condenação (expurgada das “confissões” do arguidos à ofendida e testemunhas, o que o Ministério Público não podia adivinhar, pois estava convicto que fora feita prova dos factos), impunha-se então ao Tribunal que tentasse confrontar o arguido com tais “confissões”, desenvolvendo procedimentos, oficiosamente, ao abrigo do art.º 340, do Código de Processo Penal;
i) de facto, o art.º 340, do Código de Processo Penal, impõe um dever de investigação, fazendo recair sobre o tribunal um poder-dever de apurar a verdade material, independentemente da intervenção do Ministério Público, imposição essa que não foi seguida;
j) presumindo-se que o tribunal conhece a jurisprudência e que conhece a possibilidade de valoração depoimentos prestados por testemunhas que relatem a confissão do arguido, desde que este seja confrontado com tais depoimentos, era exigível que o tribunal, recorrendo ao citado art.º 340, do Código de Processo Penal, ordenasse a presença do arguido, confrontasse o arguido com tais testemunhos e, caso se mantivesse a credibilidade de tais depoimentos, valorasse esses depoimentos na parte confessória do arguido, dando todos os factos como provados, condenado o arguido;
l) mesmo que não conseguisse ouvir o arguido, ainda assim se crê, que podia e devia valorar os depoimentos da testemunhas, já que o tribunal ficaria numa situação de não poder ter conseguido fazer comparecer o arguido, situação prevista no art.º 129, n.º 1, do Código de Processo Penal;
m) nessas circunstâncias, não podendo o tribunal fazer comparecer a pessoa a quem se ouviu dizer, teria que valorar os depoimentos citados;
n) em todas estas possibilidades que se defendem, o arguido seria necessariamente condenado;
n) a correcta apreciação da matéria de facto, a correcta aplicação dos comandos do art.º 127, do Código de Processo Penal, impõe reformulação da matéria de facto provada / não provada, nos termos propostos;
o) sendo possível, da prova colhida, como se crê que é, concluir no sentido da prova dos factos, deve o Tribunal de recurso decidir pela condenação do arguido pela prática do crime de furto simples, previsto e punido no art.º 203, do Código Penal.
p) não o sendo, terá que ordenar-se a presença do arguido para ser ouvido em declarações, ao abrigo do art.º 340 do Código de Processo Penal, o qual se crê ter sido violado.

Admitido o recurso o arguido respondeu pugnando pela sua improcedência. Já neste Tribunal o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, foi de parecer que o recurso não merece provimento. Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e após os vistos realizou-se conferência.

Factos provados:
1-Feito o julgamento e com relevância para a decisão da causa (em face da extinção do procedimento criminal quanto aos crimes de ofensa à integridade física e ameaça), resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 19 de Junho de 2006, pela tarde, o arguido foi visto na posse de uns óculos de sol marca Roberto Cavalli, no valor aproximado de 400 euros, foram subtraídos na noite anterior a C………., tendo-os entregue ao namorado e amigos da ofendida que o contactaram.
2. O arguido tem antecedentes criminais pela prática de crimes de furto qualificado, dano, furto simples, tráfico de menor gravidade e condução sem habilitação legal.
2- Com relevância para a decisão da causa, não se provou que:
1. Que em hora não concretamente apurada, entre as 00H00 as 08H00 da madrugada do dia 19 de Junho de 2006, o arguido B………. dirigiu-se junto da viatura de matrícula ..-..-LV, pertença da ofendida C………., que estava estacionado na ………., nesta cidade de Vila Nova de Famalicão, com a intenção de da mesma retirar tudo o que lhe interessasse, bem sabendo que a viatura e o que nela se encontrava não lhe pertencia e que agia contra a vontade da dona.
2. No seguimento do seu plano, retirou da viatura ou de dentro da mesma:
_ uns óculos de sol, de marca Roberto Cavalli, no valor aproximado de 400,00 euros;
_ um porta CD's em formato de bola de basquetebol, com cerca de oito CD's no seu interior e valor global aproximado de 40,00 euros;
_ as chaves de um veículo de marca Fiat, modelo ………., matrícula UI-..-..6, sem valor comercial;
_ quatro tampas de válvulas dos pneus, em cromado e de valor não apurado;
3. Que na posse de tais objectos, o arguidos fê-los seus, levando-os consigo.
4. Que o arguido tenha assumido a prática dos factos.
5. Que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
6. Que o arguido quis fazer seus os objectos descritos que retirou de dentro da viatura da ofendida, intento que concretizou, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam que actuava contra a vontade dos donos e conforme fim que visava e de forma apta a alcançá-lo.

Motivação:
A convicção do tribunal sobre a factualidade provada e não provada formou-se com base na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com as regras de experiência comum. Assim, quanto aos factos provados, atendeu-se ao depoimento das testemunhas C………., D………., E………., F………. e G………., que depuseram de forma isenta, objectiva e credível, logrando convencer o tribunal quanto aos factos provados de que mostraram conhecimento directo.
Atendeu-se ainda ao CRC do arguido junto aos autos.
A factualidade não provada decorre de não ter sido produzida prova da sua verificação.
As testemunhas inquiridas, muito embora tenham deposto de forma isenta objectiva e credível, sobre os factos, sobre a autoria do furto, apenas contaram o que ouviram dizer ao arguido, que várias horas depois do furto, ostentava os óculos subtraídos, tendo-os entregue.
Ora, sendo certo que o tribunal não pode valorar os referidos depoimentos quanto ao que ouviram ao arguido, já que este não foi ouvido em julgamento, a mera detenção pelo arguido de um dos objectos furtados, no dia seguinte aos factos é insuficiente para concluir em sede de sentença que o arguido praticou os factos por que vem acusado, atenta a multiplicidade de circunstâncias que podem ter determinado aquela detenção (furto, receptação, apropriação de coisa achada, etc.).

O Direito.
Recuperando a última parte da motivação, fica claro que a absolvição do arguido pelo crime de furto «decorre de não ter sido produzida prova da sua verificação». E não se fez prova da verificação do crime, segundo consta da motivação, porque «as testemunhas inquiridas, muito embora tenham deposto de forma isenta objectiva e credível, sobre os factos, sobre a autoria do furto, apenas contaram o que ouviram dizer ao arguido, que várias horas depois do furto, ostentava os óculos subtraídos, tendo-os entregue. Ora, sendo certo que o tribunal não pode valorar os referidos depoimentos quanto ao que ouviram ao arguido, já que este não foi ouvido em julgamento, a mera detenção pelo arguido de um dos objectos furtados, no dia seguinte aos factos é insuficiente para concluir em sede de sentença que o arguido praticou os factos por que vem acusado, atenta a multiplicidade de circunstâncias que podem ter determinado aquela detenção».
Será correcto o entendimento vertido na motivação recorrida?
O artigo 128º, nº 1, do Código de Processo Penal, dispõe que "a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova". E, no artigo 129º, nº 1, do mesmo Código, acrescenta-se: "Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas".
A questão a decidir prende-se com saber se os ditos depoimentos constituem, ou não, depoimento indirecto ou de ouvir dizer.
Podem resultar equívocos de uma abordagem literal do vertido nos referidos preceitos legais. A melhor interpretação da formulação legal conduz a que só se considere depoimento indirecto, v.g. se a pessoa que faz o relato, não assistiu ou presenciou a ocorrência. Assim se entre A e B se desenvolve uma conversa, a que C pessoalmente assiste, mas na qual não intervém, apesar de o seu depoimento «resultar do que ouviu dizer a pessoas determinadas» temos como indiscutível que não estamos perante depoimento indirecto, ele esteve presente, viveu a realidade, ouviu as conversas de A e B. De outro modo chegávamos ao absurdo de não haver «depoimentos directos puros», só o que o depoente disse era depoimento directo, já o que ouviu, mesmo em resposta à sua conversa, porque «ouviu dizer a pessoa determinada» seria depoimento indirecto. Não pode ser. O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo, se não, é indirecto.
O que o legislador quis afastar foi o «depoimento em segunda mão»: o C vem a tribunal dizer que o A lhe disse que o B fez ou aconteceu. São estes, mas não apenas estes, os depoimentos indirectos que o legislador quis vetar como meio de prova, salvo se chamar o «intermediário» a depor. Assim se estiver em causa saber se o arguido fez, ou não, a predita declaração, se teve ou não a conversa com as testemunhas, não é caso de depoimento indirecto.
Acontece que não é essa realidade da vida que nos interessa no caso dos autos; o que nos interessa é o apuramento do facto a provar relevante, constante da acusação, a ocorrência, ou não do furto. Do que se trata, não é provar se o arguido fez, ou não aquela declaração confessória – caso em que, como vimos, quanto à declaração em si, não haveria depoimento indirecto, pois foi directamente ouvida pelas testemunhas – mas antes apurar a verdade dos factos constantes da acusação e que segundo as testemunhas o arguido confessou. A prova dos factos constituintes do furto, realizada apenas pelas declarações das testemunhas que ouviram a sua confissão, e apenas com base nela, é indiscutivelmente face ao nosso actual regime normativo uma prova indirecta, uma «prova em segunda mão».
Mas dos artºs 128º, 129º e 130º do Código de Processo Penal resulta que, embora o testemunho directo seja a regra, o depoimento indirecto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule). O princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações. E, com isso, o processo penal continua a assegurar todas as garantias de defesa. Continua a ser a due process of law[1]. A disciplina contida no referido artigo 129º, nº 1 não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório se o tribunal ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. Garantida a imediação e possibilita a cross-examination, fica plenamente garantido o contraditório, o que é garantia de melhor apreciação da prova.
Só é admissível que as pessoas referidas não sejam chamadas a depor, se a sua inquirição não for possível, "por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas". Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de se considerar razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto.
Esta impossibilidade, constituindo uma limitação do contraditório, aumenta a possibilidade de manipulação da prova esperando-se do tribunal um especial cuidado na apreciação da prova, que decorre segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção, artigo 127º do Código de Processo Penal.
No caso não foi possível ouvir a pessoa «fonte» do depoimento porque a mesma não estava presente, apesar de convocada. Acresce que essa pessoa, não é uma pessoa qualquer, é o sujeito processual o arguido e não se mostra comprovado que existiu impossibilidade absoluta de o ouvir.
Perante a ausência do arguido o Ex.mo juiz limitou-se a afastar a relevância dos depoimentos indirectos, proferindo absolvição. Com este procedimento não pode ser «acusado» de não defender os direitos de defesa do arguido. Bem pelo contrário. Acontece que no processo penal se prosseguem outras finalidades, sendo que a primeira delas foi literalmente postergada.
Vejamos:
Como ensina Figueiredo Dias[2], as finalidades primárias a cuja realização o processo penal se dirige são as seguintes:
a) A realização da Justiça e a descoberta da verdade material[3].
b) A protecção dos direitos fundamentais das pessoas[4].
c) O restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da validade da norma violada[5].

O critério de valor adequado à interpretação teleológica das singulares normas e à solução dos concretos problemas jurídico-processuais, o que, se não serve para dar ao juiz a solução que lhe falte para um certo problema concreto, ajuda ao esclarecimento dos pressupostos últimos, na base dos quais hão-de ser encontrados os critérios fundamentais de solução dos problemas concretos, é fornecido pela concordância prática: Como as precedentes finalidades são potencialmente conflituantes há que tentar a sua harmonização: de cada finalidade há-de salvar-se, em cada situação, o máximo conteúdo possível, optimizando-se os ganhos e minimizando-se as perdas axiológicas. Porém quando estiver em causa a garantia da dignidade da pessoa – em regra do arguido mas também de outra pessoa – nenhuma transacção é possível, havendo que dar prevalência à finalidade do processo penal que dê total cumprimento àquela garantia constitucional[6]. Que no caso não está em causa a garantia da dignidade da pessoa humano di-lo expressamente Figueiredo Dias[7], que admite a limitação de interesses individuais do arguido em função dos interesses conflituantes[8]. Os interesses que, no caso, temos que contrabalançar aos do arguido são os interesses da sociedade na realização da Justiça, na descoberta da verdade material, o restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da validade da norma violada. Ora não foi isso que fez o Ex.mo juiz. Quando se lhe exigia um adequado «equilíbrio» e «balanceamento» dos diversos interesses em presença, optou unilateral e exclusivamente pelo direito de defesa esquecendo que o valor primeiro do processo penal é a realização da Justiça e a descoberta da verdade material. Desenvencilhou-se mal o Ex.mo juiz na tarefa do balanceamento das finalidades em tensão. É patente um desequilíbrio no sentido da protecção do arguido, em detrimento da realização da justiça que é também um valor constitucional.
Perante a ausência do arguido, impedimento que não era absoluto, impunha-se-lhe que oficiosamente, art.º 340º do Código de Processo Penal, diligenciasse pela sua presença, para o confrontar com os depoimentos das testemunhas. Tendo o julgamento começado sem a presença do arguido, se no seu desenrolar se concluir que a sua presença é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade, o juiz que a ele preside tem o dever de providenciar pela sua presença, marcando se necessário data para tal, art.º 333º do Código de Processo Penal.
Claro que apesar de o juiz providenciar pela presença do arguido o mesmo pode furtar-se a essa presença, caso em que estaremos perante uma total impossibilidade. Não nos parece curial – passe a tautologia - forçar o exercício pela força de um «direito» que o arguido não quer esclarecidamente exercer!
Também é indiscutível que o arguido, caso se logre a sua comparência, mantém intocado o seu direito ao silêncio, art.º 343º n.º1 do Código de Processo Penal. Agora o que não pode o arguido pretender é que o exercício desse direito ao silêncio inviabilize o depoimento de ouvir dizer. O balanceamento dos concretos interesses do caso já foi feito pelo legislador resultando que se aceita o depoimento indirecto desde que se verifique o condicionalismo previsto no art.º 129º do Código de Processo Penal.
Sendo esse o quadro em que se verifique a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte pelas testemunhas de acusação, que, de resto, podem ser contraditadas pelo arguido, através do seu mandatário, é razoável e proporcionado que esses depoimentos possam ser valorados como meios de prova, sendo estes depoimentos apreciados pelo tribunal com a prudência que a «impossibilidade» de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência. Desde logo, porque não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor.
Esta é a solução a que se chega após um prudente balanceamento dos interesses conflituantes que se prosseguem no processo penal. Operando a concordância prática dos interesses em jogo conclui-se que o artigo 129º, nº 1 do Código de Processo Penal, (conjugado com o artigo 128º, nº 1), interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um arguido que, podendo depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido nem o contraditório.
Constata-se que o Ex.mo juiz omitiu a audição do arguido, o que se impunha, quer ao abrigo do art.º 340º do Código de Processo Penal, quer do art.º 333º do Código de Processo Penal, o que constitui omissão de investigação de matéria constante da acusação com interesse para a decisão final, o que configura o vício do art.º 410º n.º2 al. a) do Código de Processo Penal[9]. Note-se que a precedente decisão não concebe ou interpreta o art.º 410º n.º2 al. a) do Código de Processo Penal, como possibilitando uma «segunda oportunidade» à acusação para provar a ocorrência de crime. No caso resulta claro que o Ex.mo juiz contrariamente ao que lhe era legalmente imposto deixou de oficiosamente providenciar pela comparência do arguido, para possibilitar o contraditório.
Verificando-se o vício do art.º 410º n.º2 al. a), do Código de Processo Penal e não sendo possível decidir a causa por este tribunal, pois impõe-se possibilitar ao arguido oportunidade para, querendo, se pronunciar quanto ao depoimento das testemunhas que referiram que ele lhes confessou o furto, o que não pode ser feito neste tribunal o que desencadeia o reenvio do processo para novo julgamento relativamente a esta concreta questão, art.º 426º do Código de Processo Penal, sem prejuízo de o tribunal levar a cabo as diligências reputadas pertinentes em ordem a uma melhor decisão.
Decisão:
Na procedência do recurso determina-se o reenvio do processo para novo julgamento.
Custas pelo arguido fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 24 de Setembro de 2008.
António Gama Ferreira Ramos
Abílio Fialho Ramalho


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[1] Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 213/94 e 440/99, que iremos seguir de perto.
[2] Direito Processual Penal, 1988-9, p. 20 a 26, aqui seguido de perto.
[3] Esta finalidade não obsta ao funcionamento dos institutos do caso julgado e do in dubio pro reo, que podem em concreto conduzir a condenações materialmente injustas - uma decisão incorrecta mas coberta pelo caso julgado, pois o arguido nem o Ministério Público, no interesse do arguido, recorreram; A. confessou o crime à polícia... no julgamento perante a equivocidade das provas é absolvido -. Finalmente a descoberta da verdade não se persegue a todo o custo: exige-se que a decisão ocorra de modo processual válido e admissível com respeito pelos direitos fundamentais das pessoas que estão envolvidas no processo.
[4] Proibição da valoração das provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física, etc. art.º 126º Código Processo Penal. Mas nem em todas as circunstâncias, os direitos de cada pessoa devem ser defendidos e a sua liberdade salvaguardada. O estado de direito exige também a protecção das suas instituições e a viabilização de uma eficaz administração da justiça penal; assim em certas circunstâncias, para que esses interesses se concretizem, torna-se necessário por em causa direitos fundamentais das pessoas, escutas etc.
[5] Pretende-se restabelecer a paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime – ou pela suspeita da prática do crime: intenção do processo penal é não só condenar os culpados como absolver os inocentes. O restabelecimento da paz jurídica tanto funciona no plano do arguido como no plano mais amplo da comunidade jurídica. Tem imanente um valor de segurança, porém não absoluto: v.g. recurso de revisão.
[6] F Dias, Direito Processual Penal, 1988-9, pág. 20-1],
[7] Para Uma nova justiça penal, 1983, p. 208 e 209.
[8] Assim também Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, 1992, p. 317 (218), que corrige entendimento contrário explanado em Parecer publicado na CJ Ano VI, Tomo I, p. 11.
[9] Simas Santos, Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5ª ed., p. 62.