Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0716463
Nº Convencional: JTRP00041169
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: ARGUIDO
DEFENSOR
Nº do Documento: RP200803120716463
Data do Acordão: 03/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 519 - FLS 117.
Área Temática: .
Sumário: Nos casos em que seja obrigatória a assistência por defensor, o advogado que tenha a qualidade de arguido num processo penal não pode ser defensor de si mesmo, nem dos outros co-arguidos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Nos autos de instrução com o nº …/06.9TAGDM que correm termos no .º juízo criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, e na sequência do requerimento de abertura da instrução apresentado pelos arguidos B………., C………. e D………., subscrito pelos próprios e pelos dois últimos na qualidade de mandatários, foi proferido despacho que, considerando que os mandatos judiciais conferidos pelos arguidos não podem subsistir, ordenou que os arguidos/requerentes fossem notificados para constituir novo mandatário judicial, sob pena de, não o fazendo, lhes ser nomeado defensor oficioso.
Inconformados com tal despacho, vieram todos os arguidos interpor recurso dele, pretendendo que seja declarado nulo e de nenhum efeito, para o que apresentaram as seguintes conclusões:

I - Lamenta-se ter de o repetir, mas o douto despacho recorrido louva-se num famigerado ex-governante reaccionário e doutrinador (da ditadura fascista) - criador da própria PIDE - e cuja teoria jurídica nele se perfilha, assim se remando contra a letra e o espírito da Constituição de Abril (e do seu Preâmbulo) em pleno vigor.
II - Preâmbulo este que, além do mais, reafirma a decisão do povo português de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos (sic), e que o douto despacho viola, queira-se -o ou não queira!
III - Ao impedir e proibir os recorrentes de exercerem nos autos o seu mandato como advogados - defensores escolhidos (e constituídos) - o douto despacho recorrido violou ainda (frontalmente e inadmissivelmente) não só o art. 62º. nº 1 e 2 do Cód. Proc. Penal mas também o art. 61.°. nº 3 e 64º do E.O.A, entre vários outros, das nossas leis ordinárias.
IV - Violou igualmente múltiplas outras disposições da Constituição em vigor, mormente o seu art. 18°. nºs 1. 2. e 3 (que proíbe claramente no seu conteúdo qualquer retrógrada interpretação restritiva do art. 32°. inclusive do seu nº 3).
V - Por outro lado, ao impor o prazo de dez dias, para os recorrentes constituírem defensor (que já tinham e continuam a ter) o douto despacho recorrido viola ainda o art. 26°, nºs 1 a 4 da Constituição, pois aplica-lhes, na prática, uma medida de segurança incapacitante não expressamente prevista em qualquer lei;
VI - Portanto, também com violação dos art. 29° nº 3 e do art. 32° nº 2 na sua presunção da inocência dos recorrentes, insolitamente mal cominados, pois, com uma "capitis deminutio", de todo inconstitucional.
VII - Viola ainda o art. 58°, nº 1 também da Constituição, no tocante ao Direito ao Trabalho dos dois recorrentes, advogados, insolitamente mal acusados, (somente por um particular; e apenas por o serem), como até o Mº Pº o reconhece; ou seja, mau grado ainda disposto no art. 208°, nº 1,ambos também da Constituição e ambos igualmente violados.
VIII - Ora os tribunais não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (ut seu art. 204°),incumbindo-lhes reprimir a violação da legalidade democrática (idem, art. 202°),e particularmente de um ponto de vista antifascista, se bem pensamos (como tudo resulta, além do mais, do seu histórico Preâmbulo e do art. 46°, nº 4,).
IX - E muito menos podem, portanto, os Tribunais restringir, comprimir ou limitar (e na própria Instrução) sem prévia lei expressa que lho permita, o direito sub judice dos ora recorrentes, previsto no artº 32,° n.º 3, por efeito do disposto no anterior art. 18º, n.º 1,2, e 3 de irrestrita escolha do advogado, como aliás fizeram.

O recurso foi admitido, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.
Na resposta, o MºPº defendeu a improcedência do recurso e a consequente confirmação da decisão recorrida.
Também neste sentido se pronunciou o Exmº Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal.
Foi cumprido o art. 417º nº 2 do C.P.P., tendo os recorrentes apresentado resposta, na qual reiteram o já alegado, invocam em sustento da sua posição a al. d) do art. 14º do PIDCP e protestam não haver qualquer conflito ou incompatibilidade de interesses entre eles, mas sim e apenas com o assistente.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação
Revestem-se de interesse, para enquadrar e decidir o presente recurso, as seguintes ocorrências processuais:
- nos autos, o assistente, E………., deduziu acusação particular contra os arguidos B………., C………. e D………., imputando-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de difamação com publicidade;
- o MºPº acompanhou essa acusação apenas na parte relativa à arguida B………., e não quanto aos demais arguidos, em virtude de entender que na acusação particular não vêm descritos factos suficientes dos quais se possa retirar a responsabilidade penal destes;
- os arguidos B………., C………. e D………. requereram a abertura da instrução em requerimento subscrito por todos eles, “por si e na qualidade de mandatários”;
- com este requerimento foram juntas aos autos três procurações, uma delas outorgada pela arguida C………. a favor dos advogados (e co-arguidos) C………. e D………., outra outorgada pelo Dr. C………. à Drª D………., e a terceira outorgada por esta àquele (cfr. fls. 68-70);
- foi, então, em 21/5/07, proferido o despacho recorrido, que é do seguinte teor:

Fls. 488 e seguintes.
Através do requerimento em apreço vieram os arguidos B………., C………. e D………. requerer a abertura da instrução.
Ainda no requerimento em apreço os arguidos requerentes fazem juntar aos autos três documentos (procurações forenses), através dos quais a arguida B………. constitui como seus advogados os co-arguidos C………. e D………., e estes se constituem mutuamente como procuradores forenses um do outro (cfr. fls. 544, 545 e 546).
Cumpre, assim, apreciar da legalidade de tal actuação.
Cumpre referir, desde já, que em nossa opinião os mandatos judiciais em questão não poderão deixar de ser insubsistentes.
Passemos a explicar.
O art. 32°, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, estatui que “o arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória”.
Temos por evidente que esta prescrição se assume, definitivamente, como expressão e concretização das garantias de defesa que um processo criminal deve assegurar.
Mas será que o arguido tem sempre este direito, no sentido de que em certas e precisas circunstâncias não pode o mesmo ser comprimido, de forma que não corresponda a uma diminuição considerável (logo, constitucionalmente censurável) das garantias que um processo dessa natureza tem de assegurar?
Parece-nos que a resposta não pode deixar de ser negativa, até porque são essas mesmas garantias que o demandam.
A propósito de essa escolha recair em si mesmo teve oportunidade de se pronunciar o Acórdão do Tribunal Constitucional de 18 de Dezembro de 2001 (n.º 578/01), in www.tribunalconstitucional.pt:
“Efectivamente, a tese do recorrente só seria de aceitar se se partisse de uma posição de harmonia com a qual, sendo o arguido um advogado (regularmente inscrito na respectiva Ordem), a sua “auto-representação” no processo criminal contra si instaurado representasse, de modo objectivo, um melhor meio de se alcanf't1r a sua defesa e se a lei processual penal não reconhecesse ao arguido um conjunto de direitos processuais estatuídos, verbi gratia, no art. 61°, n. ° 1 e 63º, n. ° 2, quanto a este último avultando o de poder, pelo mesmo arguido, ser retirada eficácia a actos processuais praticados pelo seu defensor em seu nome, se assim o declarar antes da decisão a tomar sobre tal acto. E é justamente dessa posição que se não pode partir.
Não se nega que na óptica (naturalmente subjectiva) do recorrente, este possa entender que a sua defesa em processo criminal seria melhor conseguida se fosse prosseguida pelo próprio na qualidade de “advogado de si mesmo”, do que se fosse confiada a um outro advogado. Só que, como este Tribunal já teve oportunidade de salientar (cfr. Acórdão n. o 252/97), há respeitáveis interesses do próprio interessado, a apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal, sendo certo que, mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria técnico jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus interesses seja feita de modo desapaixonada, ou, corno se disse no Acórdão n.º 497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14° volume, 227 a 247), mesmo relativamente aos licenciados em Direito (enquanto parte) se pode afirmar, com Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p, 85), que às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento psicológico) [...] que se fazem mister à boa condução do pleito.
A opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele, não se vê que seja contraditada pela Constituição.
O agir desapaixonado torna-se, desta arte e de modo objectivo, uma garantia mais acrescida no processo criminal, o que só poderá redundar numa mais valia para as garantias que devem ser perseguidas pelo mesmo processo, sendo certo que, como se viu mima, ao se não poder silenciar a corte de outros direitos consagrados ao arguido pela lei adjectiva criminal, isso redunda na conclusão de que se não descortina uma diminuição constitucionalmente censurável das garantias que o processo criminal deve assegurar”.
Sendo assim em casos como aquele sobre que recaiu o aresto do Tribunal Constitucional, por maioria de razão (se um arguido não pode ser defensor de si mesmo, também o não pode ser de outro arguido) deve ser no caso em apreço, em que num mesmo processo os arguidos conferem mandato judicial uns aos outros. É que aqui até as normas que regem sobre o arguido e o seu defensor (arts. 52° a 67° do Código de Processo Penal) são claríssimas (sem necessidade, portanto, de qualquer interpretação) quanto à completa demarcação entre o estatuto processual de um e do outro.
De referir ainda que as garantias de defesa do arguido, que se alcançam também com o direito de escolha do defensor, não são unicamente estabelecidas em favor daquele, tendo como propósito, igualmente, o bom funcionamento da justiça. Como nos diz Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal, vol. I, 1995, págs. 156/157, a obtenção das finalidades próprias do processo penal, que se materializam com a realização da justiça e da descoberta da verdade material, e aquele e estas estariam, em tais casos, acentuadamente (se não, mesmo, completamente), postos em causa.
Cumpre acrescentar, por fim, que as coisas também não seriam diferentes se eventualmente ocorresse uma separação de processos. É que não podemos esquecer, desde logo, que os arguidos continuam a ser, em relação a uma mesma prática criminosa os mesmos, somente divergindo, então, uma certa perspectiva formal, qual seja a da inexistência de uma unidade processual.
Mas mesmo nesta hipótese, a realidade não é totalmente cortada (veja-se o impedimento e seu específico recorte constante do art. 133°, n.º 1, alínea a) e n.º 2 Código de Processo Penal).
Depois, e agora na perspectiva das garantias de defesa de que aquela prescrição é emanação, certamente que se não pode questionar que as mesmas, partida e em tese, não são (ou podem ser) realizadas com segurança bastante quando alguém confere mandato judicial a advogado que se indiciou ter participado na prática criminosa que se imputa àquele. E de tal maneira as coisas assim são que não deixamos de ver este aspecto como que demonstrado por normas estatutárias (art. 78°, n.º 1; art. 84°; art. 85°, n.º 1; art. 92°, n.º 2; art. 94°, n.º 1, todos do Estatuto da Ordem dos Advogados).
É claro que este aspecto das coisas acarreta uma compressão do direito contido naquele art. 32°, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa. Só que se configura numa compressão positiva para as ditas garantias de defesa e que corresponde, não a imposição de qualquer defensor, mas a exclusão de um determinado, que, nas circunstâncias, se impõe que tenha lugar, sob pena de as normas constitucionais se verem numa perspectiva praticamente absoluta, logo formal e esvaziadas de conteúdo, propendendo por ver nas perspectivas completamente subjectivas aquelas que melhor se adequam, a final, às ditas garantias de defesa.
Assim sendo, e sem necessidade de ulteriores considerações, notifique pessoalmente os arguidos requerentes para, querendo e em 10 dias, constituírem novo mandatário judicial, sob pena de nada dizendo o Tribunal proceder oficiosamente à nomeação do Ilustre Advogado que se encontra de escala no dia de hoje.
*
Notifique.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
As questões suscitadas no recurso reconduzem-se à de determinar se os advogados que tenham a qualidade de arguidos num processo podem assumir a defesa dos seus co-arguidos.
Os recorrentes sustentam que sim e que negar-lhes esse direito viola diversos preceitos: arts. 62º nºs 1 e 2 do C.P.P., 61º nº 3 e 64º do E.O.A., 18º nºs 1, 2 e 3, 32º nº 3, 58º nº 1, 208º nº 1, 202º, 204º. Além de que a imposição de prazo para constituírem defensor, que já tinham e continuam a ter, viola, ainda, os arts. 26º nºs 1 e 4, 29º nº 3 e 32º da C.R.P.

A efectiva protecção dos direitos do homem exige, para além da sua consagração substantiva, garantias fundamentais de processo que permitam salvaguardá-los e implementá-los. O conjunto dessas garantias está condensado na noção de processo equitativo, entendido este como processo conformado “de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efectiva”[2], e que foi erigido em paradigma das sociedades democráticas. O princípio do processo equitativo foi plasmado, através da definição dos elementos que o integram, em instrumentos de protecção de direitos fundamentais destinados a explicitar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nomeadamente nos arts 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, tendo também sido acolhido no nº 4 do art. 20º da C.R.P. como parte integrante do direito mais abrangente de acesso aos tribunais.
Uma das concretizações deste princípio consiste na enunciação do núcleo mínimo de direitos que devem ser reconhecidos ao acusado, entre eles o de se defender a si próprio ou de ter a assistência de um defensor da sua escolha (al. c) do nº 3 do art. 6º e al. d) do nº 3 do art. 14º, respectivamente da Convenção e do Pacto acima aludidos).
Na C.R.P., mais precisamente no seu art. 32º (no qual se condensam “os mais importantes princípios materiais do processo criminal – a constituição processual criminal”[3]), que começa por afirmar no nº 1 a cláusula geral de que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa[4], incluindo o recurso”, vêm explicitadas as principais garantias de defesa que o processo criminal assegura, sendo uma delas precisamente o direito do arguido a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo (cfr. nº 3). Direito este que se justifica “com base na ideia de que o arguido não é objecto de um acto estadual mas sujeito do processo, com direito a organizar a sua própria defesa”[5].
Os tribunais são os primeiros garantes da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (cfr. art. 202º da C.R.P.), mas a nossa lei fundamental reconhece, igualmente, o papel fundamental dos advogados na administração da justiça e, em particular, na defesa daqueles direitos, dedicando uma norma, no título consagrado aos Tribunais, ao patrocínio forense, na qual consagra, como princípio geral, que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça” (cfr. art. 208º).
Em consonância com este preceito, contém o E.O.A. (actualmente, a Lei nº 15/2005 de 26/1, que revogou o DL nº 84/84 de 16/3 com as alterações subsequentes), no seu Título II, diversas normas que regulam o exercício da advocacia, entre as quais avultam, para o que ora nos interessa, as seguintes:
Art. 61º (Exercício da advocacia em território nacional) nºs 1. “Sem prejuízo do disposto no art. 198º, só os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar actos próprios da advocacia, nos termos definidos na Lei nº 49/2004, de 24 de Agosto” (…) e 3. “O mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza.”
Art. 64º (Liberdade de exercício) “Os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor não podem ser impedidos por qualquer autoridade pública ou privada, de praticar actos próprios da advocacia.”
Art. 62º (Mandato forense) nº 2: “O mandato forense não pode ser objecto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha pessoal e livre do mandatário pelo mandante.”
No que respeita a incompatibilidades e impedimentos, arts. 76º (Princípios gerais) nº 1. “O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.” e 78º (Impedimentos) nº 1. “Os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa ou por inconciliável disponibilidade para a profissão.”
No Título III, sob a epígrafe “Deontologia profissional”, destacamos, ainda, os seguintes preceitos:
Art. 84º (Independência): “O advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros.
Art. 85º (Deveres para com a comunidade) nº 1. “O advogado está obrigado a defender os direitos, liberdades e garantias (…)”
No que respeita às relações com os clientes:
Art. 92º (Princípios gerais) nº2. “O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas.”
Art. 94º (Conflito de interesses) nº 1. “O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.”
Concretizando a garantia consagrada no nº 3 do art. 32º da C.R.P., a nossa lei adjectiva enumera, entre os direitos de que o arguido goza, “em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei”, o de “constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor” (cfr. al. e) do art. 61º do C.P.P., após as alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007 de 29/8, sendo que na formulação da anterior al. d) este direito se traduzia em “escolher defensor ou solicitar ao tribunal que lhe nomeie um”). Por seu turno, no nº 1 do art. 61º, explicita-se que o arguido “pode constituir advogado em qualquer altura do processo”, enquanto que no nº 1 do art. 64º vêm definidos os casos em que é obrigatória a assistência de defensor, admitindo-se, ainda, a nomeação de defensor fora desses casos no circunstancialismo definido no nº 2 do mesmo preceito, sendo de todo o modo obrigatória essa nomeação, nos termos do nº 3, na eventualidade de ainda não ter sido feita e de o arguido ainda não ter advogado constituído, quando contra ele haja sido deduzida acusação.

Perante este quadro legal, mantém-se válido o entendimento de que todo e qualquer arguido, ainda que tenha a qualidade de advogado, tem de ser assistido por defensor nos casos em que tal assistência é obrigatória. Assim, o direito que, em geral, se reconhece ao advogado de litigar em causa própria, sofre restrições na jurisdição penal.
Convocam-se aqui as razões em que assenta tal entendimento porque elas também têm validade para afastar a possibilidade de um arguido que seja advogado defender outro(s) co-arguido(s). Este entendimento é pacífico na jurisprudência[6] e na doutrina e já era seguido nos tempos da vigência do C.P.P. de 1929, quando Luís Osório, a propósito do art. 22º desse diploma, defendia que "ainda quando o réu for um advogado deve o juiz nomear-lhe um defensor oficioso (…). A intervenção do defensor é uma garantia de ordem pública e não diminui, em coisa alguma, os direitos do réu e antes torna mais eficaz a sua defesa; pois (…) é sempre difícil e muitas vezes perigoso o patrocínio de si mesmo"[7]. E justifica-se porque a própria carga emocional que a qualidade de arguido envolve nem sempre permite, mesmo a quem disponha de refinados conhecimentos jurídicos, conservar a lucidez necessária para fazer as melhores opções em termos de estratégia de defesa. De facto, “as faculdades do arguido encontram-se diminuídas pelo peso da acusação, que presumivelmente lhe obnubila a clareza do raciocínio; e tem de haver-se com o aparato dos órgãos de justiça, impregnado de fórmulas técnicas e provido de conhecimentos jurídicos que ele, na maioria dos casos, não possui. (…) a existência de um órgão de defesa, de defensor, é obrigatória naqueles casos em que é de presumir a insuficiência do arguido para conduzir convenientemente a própria defesa, ou em determinados actos processuais particularmente graves para o arguido. Não importa, aliás, que o arguido tenha ele próprio conhecimentos jurídicos; nos casos de obrigatoriedade do defensor, este é igualmente necessário nessa hipótese, porque a defesa não é estabelecida apenas em favor do arguido, mas também para garantir o bom funcionamento da justiça, e é sempre de presumir uma perturbação de espírito do arguido, que possa afectar a segurança da defesa”[8]. Além disso, são várias as regras processuais dos estatutos do defensor e do arguido que tornam incompatível o exercício do auto-patrocínio; de facto “num processo de estrutura acusatória, os poderes que por lei são atribuídos ao defensor não são em muitas situações conciliáveis com a sua posição de arguido, v.g, os arts. 141º, nº 6, 326º e sobretudo o art. 352º”[9].
Na jurisprudência dos nossos tribunais superiores encontram-se vários acórdãos, todos eles afinando pelo mesmo diapasão: a regra que permite aos advogados litigarem em causa própria é inaplicável aos casos em que o advogado é, ele próprio, arguido em processo penal[10].
A própria Ordem dos Advogados foi chamada a dar parecer sobre a questão, tendo-se pronunciado no mesmo sentido[11].
Colocada a questão ao Tribunal Constitucional, pronunciou-se este[12] no sentido de que “a opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele, não se vê que seja contraditada pela Constituição.”
De facto, o direito de auto-patrocínio a que aludem a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, “não é, porém, um direito absoluto, podendo os Estados, pela via legislativa ou por decisão judicial, impor a obrigação de a defesa ser assegurada por um advogado.”[13] O entendimento que afasta o auto-patrocínio do advogado/arguido não é violador da norma do nº 2 do art. 16º da C.R.P., na medida em que não comporta uma interpretação contrária à dimensão normativa do direito de o acusado se defender a si próprio consagrado nos instrumentos de protecção de direitos fundamentais destinados a explicitar a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Aliás, e conforme salienta o Ac. TC a que acima nos referimos, “na aludida Declaração se não surpreende qualquer disposição que, directa ou indirectamente, próxima ou remotamente, tenha a ver com a questão da «auto-defesa».” De resto, a interpretação normativa em causa não restringe nenhum direito de defesa do arguido, antes os amplia na medida em que introduz um factor acrescido de protecção do arguido, fazendo com que beneficie de um apoio técnico que complementa os seus próprios conhecimentos, com o benefício de provir de alguém que tem o distanciamento suficiente para avaliar os riscos com serenidade e evitar que o próprio, com as emoções penhoradas numa questão que tão profundamente o afecta (emoções essas que também o podem levar a convencer-se de que se pode bastar a si próprio na sua defesa), se deixe trair por elas. Por outro lado, o facto de beneficiar de (mais um) apoio técnico-jurídico não significa que não possa oferecer a sua avaliação jurídica própria e de, juntamente com o colega investido nas funções de seu defensor, contribuir para delinear a estratégia de defesa a prosseguir. Donde se possa afirmar que, se na não admissão do auto-patrocínio há uma efectiva compressão do direito consagrado no nº 3 do art. 32º da C.R.P., ela será sempre pela positiva e no sentido do reforço dos direitos de defesa.
Aqui chegados, começamos por reafirmar que todas estas razões são válidas para também se não admitir que um advogado/arguido possa assumir a representação de um co-arguido[14]. Mas a elas acrescem, ainda, as que se relacionam com o potencial conflito de interesses, já para nem falar nas perturbadoras dificuldades de ordem prática que resultariam da confusão numa só pessoa das posições de arguido e defensor de co-arguido na prática de actos e na participação em diligências processuais. De facto, mesmo admitindo que o arguido/defensor e o co-arguido possam estar, como sói dizer-se, “no mesmo barco”, ainda assim é possível que os interesses de um e do outro não sejam exactamente coincidentes. A um pode convir defender-se confessando a prática dos factos, a outro negá-la; um pode estar interessado em entrar em acordo com o ofendido ou com o lesado, quando possível, e a outro não; a um pode interessar a incriminação do co-arguido (e as declarações de co-arguido vêm sendo admitidas como meio de prova válido) para aligeirar a sua própria responsabilidade; a um podem aproveitar causas de justificação ou de exclusão da ilicitude e a outro não, etc., etc. Confiar a defesa de um arguido a quem também se tem de defender é sempre passível de criar situações de risco em que, para se defender a si próprio, o advogado se possa ver obrigado ou tentado a não prosseguir a melhor estratégia de defesa em relação ao(s) co-arguido(s) que pudesse representar.
Assim, a própria potencialidade de existir um conflito de interesses (independentemente de ele se verificar ou não na prática, porque a norma deve ser geral e abstracta) só por si já imporia ao advogado que recusasse o patrocínio de um co-arguido (ainda que o tivesse patrocinado anteriormente noutras causas, quando apenas este era arguido), sendo perfeitamente enquadrável na previsão do nº 1 do art. 94º do E.O.A.
Tendo-o aceite, não pode o tribunal, por todas as razões acima indicadas, tomar outra posição senão considerar insubsistente o mandato no processo em que se verifica a potencial incompatibilidade de defesas, como sucedeu no caso concreto, e ordenar a notificação dos arguidos (ora recorrentes) para constituírem mandatário em determinado prazo (que no caso foi fixado com perfeita razoabilidade, sendo, além do mais, o prazo supletivo fixado no nº 1 do art. 105º do C.P.P. – mas que sempre poderia ser prorrogado havendo justificação para tal), sob pena de nomeação de defensor oficioso caso o não constituíssem (tendo em conta que, a partir da acusação, a lei impõe que aos arguidos seja nomeado defensor – cfr. art. 64º nº 3 do C.P.P.). E nem se diga que foi praticada uma qualquer nulidade (que os recorrentes nem identificam e para a qual também não encontramos cabimento em qualquer preceito legal, sejam os arts. 118º e 119º do C.P.P. ou qualquer outro), nem, tão-pouco, que esta decisão comporta uma restrição do direito ao trabalho consagrado no art. 58º da C.R.P. ou se traduz na aplicação de uma medida de segurança incapacitante não expressamente prevista na lei. Para além do carácter programático daquela norma, é indefectível que todas as actividades, remuneradas ou não, estão sujeitas a restrições sem que isso implique necessariamente uma discriminação intolerável no exercício desse direito. Ora, no caso e como tentámos explicar, existem razões ponderosas para que o exercício da advocacia não seja admissível em relação a co-arguidos. O que, de todo, pode ser encarado como uma medida de segurança, aliás perfeitamente inadmissível neste contexto; o que se trata é, ainda e sempre, de dar expressão aos direitos de defesa do arguido de forma a evitar distorções que a lei não quer e não permite.
Em conclusão: o despacho recorrido não merece censura e deve manter-se.

3. Decisão
Em face do exposto, julgam improcedente o recurso e mantêm o despacho recorrido.
Vai cada um dos recorrentes condenado em 4 UC de taxa de justiça.

Porto, 12 de Março de 2008
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Jaime Paulo Tavares Valério

_______________________________
[1] cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada.
[2] cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol. I, 4º ed., pág. 415.
[3] cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol. I, 4º ed., pág. 515
[4] Ou seja, “todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação” – cfr. Idem, Ibidem, pág. 516
[5] Idem, Ibidem, pág. 519
[6] Já assim não sucede quanto à possibilidade de o assistente que seja advogado assumir o auto-patrocínio: a admiti-la, os Acs. RL 23/9/97, CJ. Ano XXII, t. IV, pág. 141 e 25/2/03, proc. nº 00104915; RP 28/4/04, proc. nº 0440016 e 13/4/05, proc. nº 0415806 e C. J., ano XXX, II, pág.215; a rejeitá-la os Acs. RL 17/2/98, proc. nº 0054045; 20/5/98, CJ., ano XXIII, pág. 147; 2/10/02, proc. nº 106093; 8/1/03, proc. nº 69213;12/2/04, proc. nº 9764/2003-9 e 20/10/06, C.J., 2006, V, 147.
[7] cfr. Comentário ao Código do Processo Penal Português, 1º vol., pág. 281 ss, Coimbra 1932
[8] cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1955, t. I, págs. 156-157
[9] cfr. Germano Marques da Silva, ob. cit., t. I, pág. 316.
[10] cfr., entre outros, os Acs. STJ, de 24/1/1939, in CoI. Of., 78, 15; 6/12/01, proc. nº 3347/01-5ª e 24/9/03, proc. nº 03P1112 (estes dois abordando a questão em relação a magistrados); 26/11/03, C.J. STJ, ano XI, t. 3, pág. 241; RP 29/5/91, proc. nº 55/91 (cit. por Maia Gonçalves no C.P.P. anot., 12ª ed., pág. 208); 12/6/91, proc. nº 0409757; 12/2/92, proc. nº 9150844; 10/2/93, C.J. ano XVIII, t. 1, pág. 249; 5/6/02, proc. nº 0240116; 7/6/06, proc. nº 0640507; 13/6/07, proc. nº 910/06.1TBCTR.C1; RL 13/12/89, CJ ano XIV, t. 5, pág. 157; 17/6/97, proc. nº 0003625, C.J. ano XXII, t. 3, pág. 158; 28/9/04, C.J. ano XXIX, t. 4, pág. 141; 14/3/07, proc. nº 1270/2007-3; RC 25/1/95, C.J. ano XX, t. 1, pág. 56; RG 3/5/04, proc. nº 390/04-2.
[11] cfr. Parecer CG da AO n.º E-21/1997, de 2 de Junho de 1999, de que se transcrevem as respectivas conclusões:
“1. É obrigatória a assistência de defensor, em regra advogado ou advogado estagiário, nos actos processuais referidos no art. 64º, nº 1, als. a) a g) do Código de Processo Penal.
2. O arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo, mas quando não o tiver feito, ser-lhe-á nomeado advogado ou advogado estagiário.
3. O defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido sem prejuízo de este os exercer pessoalmente o que pode a todo o momento fazer.
4. O defensor exerce também direitos que a lei lhe reserva pessoalmente, razão porque, para além das regras profissionais, legais e deontológicas que o regem, não pode confundir-se com o arguido que defende, nem cumular ambas as qualidades sob pena de incompatibilidade processual, subversão do sistema e violação da lei.
5. Por isso, o direito reconhecido aos advogados e advogados estagiários, bem como aos magistrados, de litigar em causa própria, não é válido em processo crime e impede a cumulação das qualidades de arguido e de seu defensor numa só pessoa, o que não viola qualquer regra legal internacional ou nacional, fundamental ou geral.”
[12] cfr. Ac. TC Nº 578/01 de 18/12/01 (D.R. II de 28/2/02).
[13] cfr. Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Anotada, 3ª ed., pág. 169.
[14] Especificamente neste sentido se pronunciaram os Acs RL 17/6/97, proc. nº 0003625, C.J. ano XXII, t. 3, pág. 158 e RP 7/6/06, proc. nº 0640507.