Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2698/12.8TBPVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: INSOLVÊNCIA
HERANÇA
HERDEIROS LEGITIMÁRIOS
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP201307102698/12.8TBPVZ-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 2º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
Sumário: Os herdeiros legitimários, por não revestirem a qualidade dos legitimados a requerer a insolvência do devedor, de acordo com o critério do art. 20º do CIRE, não têm legitimidade para requerer a insolvência da herança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Insolv-Leg-2698/12.8TBPVZ-A.P1-749/13TRP
Trib Jud Povoa de Varzim-2ºJ Cv
Proc. 2698/12.8TBPVZ
Proc. 749/13-TRP
Recorente: B…
Recorrido Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de C…
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Soares Oliveira
Ana Paula Carvalho
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção – 3ª Cível)

I. Relatório F…, solteiros, maiores, residentes na Rua …, nº .., ….-… … vieram requerer a insolvência da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C…, que faleceu em 03.02.2012, no estado de divorciado, residente que foi na Rua …, nº .., freguesia …, Póvoa de Varzim.
Alegaram para o efeito, que são filhos do falecido C… e seus únicos herdeiros. A herança do “de cujus” é constituída por direitos, bens móveis e passivo, pelo que ao tomarem conhecimento da existência de uma divida a particulares, sob condição suspensiva não aceitaram a herança e uma vez que o activo é manifestamente inferior ao passivo, vieram requerer a insolvência da herança.
Mais referem que o activo da herança é constituído pelo direito e acção na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do pai do de cujus G…, que integra um imóvel urbano e dois veículos automóveis.
Referem, por fim, que a herança do de cujus encontra-se impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas, assistindo aos requerentes enquanto herdeiros legitimários o direito de pedir a declaração de insolvência da herança íliquida e individa aberta por óbito de C….
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Procedeu-se à citação da requerida na pessoa do Ministério Público.
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Não foi deduzida oposição.
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Realizou-se o julgamento, com observância do legal formalismo.
O despacho que contém as respostas à matéria de facto, consta de fls. 90-92.

Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:

“IV – Decisão:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgando pela procedência da pretensão dos requerentes, decido declarar a insolvência da requerida, Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por óbito de C….
(…)”.
Os credores B… e mulher H…, credores da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C… veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou o recorrente formulou as seguintes conclusões:
1 – Por sentença de 4 de Março de 2013, foi pela Mª Juiz “a quo” declarada a insolvência da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C….
2 – Os ora recorrentes eram credores do dito C… e, agora, portanto da herança ilíquida e indivisa aberta pelo seu decesso, radicando aí a sua legitimidade para a interposição do presente recurso.
3 – Afigura-se aos recorrentes inexistir legitimidade por parte dos requerentes F… e D… para requererem a insolvência que requereram.
4 – E isto tendo em conta, essencialmente, o facto de terem referido expressamente que repudiavam a herança de seu pai, precisamente o mesmo C…, e a Mª Juiz “a quo” ter considerado tal questão como matéria assente.
5 – De qualquer forma, entende-se que na alínea G) da matéria assente sempre deveria a Mª Juiz “a quo” ter já considerado que o quinhão do falecido C… (mais propriamente, “in casu” a herança por ele deixada) era constituido por um valor correspondente a metade do valor do imóvel em causa e não apenas considerar o que considerou.
6 – E isso já resulta claramente do que consta dos autos: quando se deu o falecimento do C…, já havia falecido o pai deste, mantendo-se viva a mãe, pelo que o C… era titular de um direito e acção à herança por morte de seu pai; após a morte do C…, faleceu a sua mãe, ficando a representar o C…, nesta última herança, os filhos deste, precisamente, o F… e a D….
7 - Ora, embora em direito de representação, o certo é que, na herança aberta por óbito da mãe do C…, o F… e a D… são colocados no lugar que caberia a seu pai, o mesmo C…, caso este não tivesse falecido em momento anterior.
8 – Como tal, da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do C… – e, portanto, da massa insolvente – sempre deveria fazer parte tanto o direito e acção à herança por morte do pai do C…, como o direito e acção à herança por óbito da mãe do mesmo C….
9 – A que acresce que ficou contratualmente estipulado que o vencimento da dívida a favor dos ora recorrentes ocorreria precisamente com a morte da mãe do C… e da ora recorrente H… (vide escritura pública junta aos autos), o que bem demonstra que pretendiam todos os contratantes (credores e devedor) que todo o património hereditário pudesse responder por tal dívida.
10 – Como tal, sempre se deveria ordenar a alteração da alínea G) da matéria assente, em conformidade com o agora explanado.
11 – Seja como for, o essencial do presente recurso prende-se com a ilegitimidade activa dos requerentes da insolvência.
12 – Não se vislumbra dos autos qualquer escritura pública de repúdio da herança; todavia, a Mª Juiz “a quo” levou à alínea I) da matéria assente e ao texto posterior da sentença que os requerentes do processo não aceitaram a herança de seu pai.
13 – Ora, não é possível o repudiante de uma herança – tendo em conta que o repúdio retroage à data da abertura da sucessão – vir requerer a insolvência dessa mesma herança.
14 – Só quem ficasse no lugar de que repudia é que poderia vir requerer essa insolvência; e, no caso dos autos, até seria a própria credora, aqui recorrente, já que, não tendo os repudiantes descendentes, funcionaria o direito de acrescer, de que é titular a mesma recorrente mulher, uma vez que era a única irmã do falecido C… e, portanto, a restante única herdeira do pai G… e da mãe I….
15 - Repudiando a herança, e, por via disso, não sendo a ela chamados, e ficando no seu lugar outrém – “in casu”, precisamente a aqui recorrente mulher – está vedado aos repudiantes requerer a insolvência da herança aberta por óbito de seu pai, por manifesta ilegitimidade activa.
16 – E essa legitimidade não encontra eco em qualquer um dos arts. 18º a 20º do CIRE.
17 – Há, pois, ilegitimidade processual por parte dos requerentes do processo de insolvência, solução que decorre, aliás, do próprio desenho com que esses requerentes configuram o seu petitório (eles próprios declaram não aceiar a herança de seu pai).
18 – Deveria, pois, a Mª Juiz “a quo” ter proferido uma decisão de absolvição da instância e num uma decisão de declaração de insolvência.
19 - Assim sendo, ao decidir como decidiu, violou claramente a sentença sob recurso o disposto nos artigos 18º a 21º e 46º, nº 1 do CIRE, nos arts. 26º, 493º, nº 2 e 494º, alínea e) do Código de Processo Civil e no artº 2.097º do Código Civil.
20 - Consideram os ora apelantes, com todas as considerações que fizeram ao longo destas conclusões, ter cumprido a exigência vertida na alínea b) do nº 2 do artº.685º-A do C. P. C..Terminam por pedir a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue verificada a excepção dilatória de ilegitimidade activa por parte dos requerentes F… e D…, e que, em consequência, conclua pela absolvição da instância, devendo, ser dado sem efeito tudo o que posteriormente ocorreu nos autos, tudo com as consequências legais e caso a acção deva prosseguir deveria ordenar-se que passasse a constar da alínea G) da matéria assente os factos que acima se referiram nas conclusões 5ª a 10ª destas alegações de recurso.
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Os requerentes vieram apresentar contra-alegações nas quais formularam as seguintes conclusões:
1ª)A douta sentença a quo, que declarou como Insolvente a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por óbito de C…, não merece qualquer reparo;
2ª)Resulta admitido, e por isso provado, que sempre o valor da herança ilíquida e indivisa, no seu activo seria INFERIOR ao valor do passivo;
3ª)Pelo que, logo se verificaria uma situação de insolvência nos termos da al.b) nº1 do art.2 e nºs 1 e 2 do art.3, todos do CIRE, seguindo assim, por força do art.1361 do C.P.C., o processo de inventário, a sua tramitação como processo de insolvência;
4ª)Com tais fundamentos entendem os Apelados estarem reunidos os requisitos legais, para que, o Tribunal ad quem face aplicação do disposto no art.705 do C.P.C.;
5ª)Para fundamentarem a ocorrência da excepção processual da (i)legitimidade, os Apelantes introduzem uma questão de direito nova, sustentada em matéria de facto, que não consta dos autos, sendo que, nem uma, nem outra, foram apreciadas na decisão recorrida, nem se trata de matéria de facto ou de direito que seja de conhecimento oficioso, para que o Tribunal ad quem possa sobre a mesma pronunciar-se, neste recurso;
6ª)Tal matéria de facto ou de direito a existir, tal como os Apelantes a configuram, mas que de todo em todo se não concede, só poderia fundamentar uma Oposição de Embargos, nos termos dos arts 40 e 41 do CIRE que não em sede do presente recurso, interposto ao abrigo e termos dos arts 14 e 42 do CIRE;
7ª)Na construção jurídica dos Apelantes sobre o direito de representação, estamos, salvo melhor e douta opinião, com uma bizarra interpretação da aplicação do direito de representação;
8ª)Os Apelantes confundem a génese do instituto da representação previsto nos arts 2039 e 2042 do C.C.com a do direito de transmissão;
9ª)Entre as relações jurídicas patrimoniais, que integram o acervo hereditário do falecido C…, existem não só relações jurídicas patrimoniais de natureza positiva (activo), mas também de natureza negativa (passivo);
10ª)A condição da verificação do vencimento do direito de crédito dos Apelantes estava exactamente dependente da ocorrência da morte da mãe deles I…;
11ª)Conhecendo tal factualidade, outra solução não restou aos Requerentes/Apelados, enquanto herdeiros legitimários do falecido seu pai C…, que não fosse a de aguardar pelo decurso do tempo, para que ocorresse a verificação da condição de que dependia o vencimento, ou seja, a morte da mãe daquele I…, sua avó paterna;
12ª)Cumprindo aos Requerentes/Apelados chamar a Juízo todos credores do seu falecido pai, que decesso deste, passaram a ser credores da Herança dele, comunicando-lhes em simultâneo a recusa da Aceitação da Herança por parte deles, enquanto herdeiros legitimários, ou seja, repudiando-a;
13ª)Entre o óbito do Autor da Herança, aquele C…, em 3 de Fevereiro de 2012, e a data da verificação da condição que determinou o vencimento imediato da dívida dos Credores/Apelantes, com a ocorrência em 28 de Outubro de 2012, do óbito daquela I…, mãe daquele filho devedor e da filha credora, ficou aquela Herança no estado de Herança Jacente, porquanto aberta, mas ainda não aceite nem declarada vaga para o Estado, nos termos do art.2046 do C.C.;
14ª)E sem que os Requerentes/Apelados, enquanto herdeiros legitimários tivessem sequer que praticar quaisquer actos de administração nos termos do art.2047 do C.C.;
15ª) Não há, nem podia haver qualquer confusão, entre os direitos de natureza jurídica patrimonial de natureza activa ou passiva da Herança, e cuja insolvência foi peticionada, já que, tal pedido consubstancia uma forma de alienação da Herança e portanto integra uma forma legal de repúdio, nos termos e para efeitos do disposto no art.2063 do C.C.;
16ª)Tendo a acção sido intentada em 7 de Dezembro de 2012, foi a mesma atempadamente apresentada em Juízo, nos termos dos arts 18 e 6 do CIRE, para cujo pedido os Requerentes/Apelados sempre estariam legitimados, ainda que, no âmbito do mero exercício dos poderes de administração da Herança Jacente, por força do disposto no art.2047 do C.C.,pela sua qualidade de herdeiros;
17ª)Os Apelantes querem à força ver incluído na Herança insolvente o direito e acção que aquele C…, falecido em 3 de Fevereiro de 2012, teria??? na herança da mãe, a dita I…, falecida posteriormente àquele em 28 de Outubro de 2012, facto que é de todo impossível, face à natureza do direito de representação de que beneficiam os Requerentes/Apelados na qualidade de netos daquela, nos termos do art.2042 do C.C.;
18ª)Os Requerentes/Apelados enquanto netos da falecida I…, sua avó, ocorrido em 28 de Outubro de 2012, ingressam directamente na classe de sucessíveis da mesma, em substituição, do seu pré-falecido pai C…, ocorrido em 3 de Fevereiro 2012;
19ª)Em paridade com a sua tia I…, também filha daquela, face ao pré falecimento do filho daquela, o pai deles;
20ª)O repúdio da Herança Aberta por óbito de C…, não engloba nas relações patrimoniais compreendidas no acervo hereditário do mesmo, quaisquer bens ou direitos contidos na Herança, aberta posteriormente, por óbito da mãe dele, a dita I…, onde os Requerentes/Apelados ingressam como herdeiros directos da mesma, por causa do direito de representação a que alude o art.2042 do C.C. e ainda o art.2138 do C.C..
Terminam por pedir a improcedência da apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 685º- A CPC.
As questões a decidir:
- alteração da decisão da matéria de facto, que consta do ponto 7 dos factos provados;
- legitimidade dos requerentes.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1. Os Requerentes. D… e F…, são filhos e os únicos herdeiros do falecido C…, seu pai, como resulta dos Assentos de Nascimento respectivamente n° 2656 do ano de 2009 e nº 9972 do ano de 2008 (alínea A) – Petição Inicial).
2. O pai dos Requerentes, C..., faleceu no dia 3 de Fevereiro de 2012, no estado de divorciado e com última residência na Rua …, nº…, da freguesia …, Póvoa de Varzim (alínea B) – Petição Inicial),
3. Por contrato de confissão de dívida datado de 16-01-2004, titulado pela referida Escritura do 1 Cartório da Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, a fls 15 do L E- 316, a obrigação de pagamento da mesma dependia do óbito da mãe do falecida, e a avó dos Requerentes. I… (alínea C) – Petição Inicial).
4. Óbito esse que veio a ocorrer no passado dia 28 de Outubro de 2012 e averbado na Conservatória de Registo Civil sob o nº 754 do no 2012 (alínea D) – Petição Inicial).
5 À data do óbito foram relacionados junto das Finanças como constituindo os bens que compunham o ativo da herança: a) Direito de acção na Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por óbito do pai G…., falecido em 15 de Novembro de 1989, cujos bens são os constantes da Certidão do Processo de Imposto Sucessório nº 17.143, passada pelo Serviço de Finanças da Póvoa de Varzim, cfr. teor de fls. 24 a 27 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais: b) Um veículo ligeiro de passageiros, Marca Renault, Modelo …, do ano 1996, com a matrícula ..-..-HC, sem qualquer valor comercial, cuja existência é desconhecida; c) Um veículo ligeiro de passageiros, Marca Ford, Modelo …, com a matricula ..-..-HJ, cuja existência desconhecida (alínea E) – Petição Inicial);
6. Do activo mencionado em 5) alínea a) faziam parte os seguintes bens: duas mil e quinhentos e cinquenta e quatro acções, cedidas à J… na operação de compra da K…; o imóvel descrito junto das Finanças sob o artigo matricial nº 50 sito no …, inscrito na matriz 1956 foi alienado por Expropriação ao Municipio …, e encontra-se inscrito actualmente a seu favor, conforme teor do documento de fls. 31 cujo teor se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais (alínea F) – Petição Inicial);
7. O único imóvel que constitui o acervo hereditário correspondente a casa de habitação com quintal sito na Rua …, nº …, … inscrito na matriz sob o artigo 899 tem o valor patrimonial de € 65 610,00, tendo o falecido C… titular do quinhão no valor de € 10.935,00 (alínea G) – Petição Inicial).
8. São credores da herança no montante de € 76.431,78 B… e mulher H…, residentes na Rua …, nº …, …, Póvoa de Varzim (alínea H) – Petição Inicial).
9. Os Requerentes não aceitam a herança por óbito dos pais (alínea I) – Petição Inicial).
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Factos não provados:
- Não os há.
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3. O direito
- Da alteração da decisão do ponto 7 dos factos provados –
Nas conclusões de recurso sob os pontos 5 a 10 insurge-se a apelante contra a decisão da matéria de facto, sob o ponto 7 dos factos provados, por considerar que na matéria assente se devia consignar que o quinhão do falecido C… era constituído por um valor correspondente a metade do valor do imóvel em causa e não apenas o que ficou consignado.
Nos termos do art. 712º/1 a) CPC a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
“Se do processo constarem todos os elementos de prova, que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 685º-B, a decisão com base neles proferida.”
O art. 685º-B CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2. No caso referido na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do nº2 do art. 522º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
3. Na hipótese prevista no número anterior, incumbe ao recorrido, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
(…)
O art. 522º-C/2 CPC (na redacção do DL 303/2007 de 24/08) determina:
“Quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, devem ser assinalados na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos.”
No caso concreto, indicou os pontos de facto impugnados, - ponto 7 dos factos provados - bem como, o documento em que fundamenta a impugnação, sendo certo que para além da prova documental, nenhuma outra prova foi produzida sobre os factos.
Verifica-se, assim, nos termos do art. 712º/1 CPC e do art. 685º-B do mesmo diploma, na redacção do DL 303/2007 de 24/08, que estão reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto, quanto ao concreto ponto 7 dos factos provados.
Com efeito, resulta da previsão do art. 712º/b) CPC, que mesmo a titulo oficioso, pode o tribunal da Relação alterar a decisão da matéria de facto: “ Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas. “
Como refere Abrantes Geraldes: “Abarcam-se neste segmento as situações em que constem do processo elementos que, por si só, determinem uma decisão diversa e cujo valor probatório seja insusceptível de ser afectado ou perturbado pela análise de outros meios probatórios, como ocorre quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força probatória plena de certo meio de prova”[1].
No ponto 7 dos factos provados consignou-se:
“7. O único imóvel que constitui o acervo hereditário correspondente a casa de habitação com quintal sito na Rua …, nº …, … inscrito na matriz sob o artigo 899 tem o valor patrimonial de € 65.610,00, tendo o falecido C… titular do quinhão no valor de € 10.935,00 (alínea G) – Petição Inicial)”.
A decisão da matéria em causa funda-se, como se refere no despacho de fundamentação, a fls. 90, na confissão de divida de fls. 19 e 20 e certidões de fls. 23 a 31 e a não dedução de qualquer oposição pela requerida, representada pelo Ministério Público.
Contudo, a alteração da decisão no sentido sugerido pelos apelantes, ou seja, no sentido da herança do “de cujus” ser composta por metade do valor do imóvel, não tem suporte no documento a que se reportam.
O documento em causa – escritura pública de confissão de divida -, consigna a confissão de divida e a data de vencimento. Faz prova plena das respectivas declarações, nos termos do art. 371º CC e desse documento nada se pode concluir a respeito do quinhão do “de cujus” no prédio urbano, que faz parte da herança aberta por óbito do seu pai.
O documento em causa, só por si, não constitui um elemento de prova, que justifique a alteração da decisão, já que não demonstra a verificação de erro na apreciação da prova.
Acresce, que na análise da questão, os apelantes levam em consideração nos pontos 6 a 9 das conclusões de recurso – “ 6 – E isso já resulta claramente do que consta dos autos: quando se deu o falecimento do C…, já havia falecido o pai deste, mantendo-se viva a mãe, pelo que o C… era titular de um direito e acção à herança por morte de seu pai; após a morte do C…, faleceu a sua mãe, ficando a representar o C…, nesta última herança, os filhos deste, precisamente, o F… e a D…. 7 - Ora, embora em direito de representação, o certo é que, na herança aberta por óbito da mãe do C…, o F… e a D… são colocados no lugar que caberia a seu pai, o mesmo C…, caso este não tivesse falecido em momento anterior. 8 – Como tal, da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do C… – e, portanto, da massa insolvente – sempre deveria fazer parte tanto o direito e acção à herança por morte do pai do C…, como o direito e acção à herança por óbito da mãe do mesmo C…. 9 – A que acresce que ficou contratualmente estipulado que o vencimento da dívida a favor dos ora recorrentes ocorreria precisamente com a morte da mãe do C… e da ora recorrente H… (vide escritura pública junta aos autos), o que bem demonstra que pretendiam todos os contratantes (credores e devedor) que todo o património hereditário pudesse responder por tal dívida.” -, um conjunto de factos que não se mostram alegados e suscitam questões que não foram apreciadas pelo juiz do tribunal “a quo” e é a partir da respectiva análise que justificam e sugerem a alteração da decisão.
Contudo, perante os documentos que constam dos autos somos levados a concluir que o quinhão hereditário do “de cujus” não integra o direito à herança aberta por óbito da mãe, porque o “de cujus” faleceu em data anterior. Daqui resulta que à herança da mãe e avó dos requerentes, apenas são chamados por direito de representação os requerentes, correspondendo o seu quinhão ao quinhão do pai (art. 2039º e 2044º CC).
Os documentos que constam dos autos também não permitem concluir que os apelantes são juntamente com os filhos do “de cujus” os únicos herdeiros da mãe do “de cujus” e que foi intenção dos subscritores da escritura pública de reconhecimento de divida, que todo o imóvel responda pelo pagamento da divida.
Desta forma, não resulta do documento indicado pelos apelantes, nem ainda, dos demais documentos juntos aos autos, demonstrado o erro na apreciação da prova, que justifique a alteração da decisão da matéria de facto, improcedendo, as conclusões de recurso, sob os pontos 5 a 10.
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- Da legitimidade dos requerentes da insolvência -
Nas conclusões de recurso sob os pontos 1 a 4 e 11 a 20 suscitam os apelantes a ilegitimidade dos requerentes para promover os termos do processo de insolvência. Argumentam para o efeito, que se os requerentes repudiaram a herança do de cujus não podem invocar a qualidade de herdeiros legitimários para requerer o processo, sendo certo que tal legitimidade não tem fundamento nos art. 18º a 20º do CIRE.
Na sentença, o juiz do tribunal “a quo” reconheceu fundado o pedido dos requerentes, referindo, como se passa a transcrever:
“Pois bem, no caso dos autos a requerida herança, devidamente representada nos autos pelo Ministério Público, encontra-se jacente e apesar de aberta foi repudiada pelos únicos herdeiros, não foi declarada vaga e não foi aceite pelos credores nos termos previstos nos art. 2152º, 606º, 2067º e 2046º do Código Civil. Não deduziu qualquer oposição e não foi colocado em causa o crédito e o passivo.
Por outro lado, atentando nos factos que ficaram provados dúvidas não subsistem que os mesmos integram a provisão das al. a) e b) do nº1 do art. 20º do CIRE e cremos também essa mesma factualidade é ainda passível de integrar a previsão da alínea e) desse mesmo dispositivo legal”.
A questão que nos cumpre apreciar consiste, pois, em saber se os requerentes, na qualidade de filhos do “de cujus” e por isso, na qualidade de herdeiros legitimários, têm legitimidade para requerer a insolvência da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C…, pai dos requerentes (art. 20º da petição inicial).
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A questão da excepção de ilegitimidade não foi analisada pelo juiz do tribunal “a quo” e sobre a mesma não foi proferido despacho, com trânsito em julgado. Por se tratar de excepção de conhecimento oficioso e apesar de não ter sido suscitada pelas partes nos articulados, pode o tribunal “ad quem” tomar conhecimento da mesma em via de recurso, como decorre do art. 288º/1 d), 493º/2, 494/e), 495º CPC, ex vi, do art. 17º do CIRE (DL 53/2004 de 18/03, na redacção do DL 200/2004 de 18/08, DL 282/2007 de 07/08 e da Lei 16/2012 de 20/04).
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O presente processo de insolvência foi instaurado em data posterior à entrada em vigor das alterações introduzidas ao Código da Insolvência e Recuperação de Empresas pela Lei 16/2012 de 20/04, sendo pois este o regime a aplicar no caso dos autos e ao qual se fará alusão, sob a designação: “CIRE”(DL 53/2004 de 18/03, na redacção do DL 200/2004 de 18/08, DL 282/2007 de 07/08 e da Lei 16/2012 de 20/04).
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Passando a apreciar da ilegitimidade activa.
O processo de insolvência, conforme decorre do art. 1º do CIRE, é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
Não se trata de um processo de partes, pois apenas se visa a satisfação do interesse dos credores, o que demanda a aplicação criteriosa do regime previsto no Código de Processo Civil, ainda, que a título subsidiário, no que respeita à verificação dos pressupostos processuais[2].
Desta forma, ao proceder-se à aplicação subsidiária do regime previsto no Código de Processo Civil, atenta a especificidade deste tipo de processo e o fim que visa alcançar, não tem aplicação o regime previsto para os processos de jurisdição voluntária, também configurado como processo sem partes.
Os princípios que orientam este tipo de processuais não são compatíveis com a natureza e fim do processo de insolvência, pois o processo de jurisdição voluntária visa a regulamentação anómala de interesses, mas que não são litígios, a decisão é proferida seguindo critérios de equidade e uma vez proferida pode ser objecto de revisão, face à alteração das circunstâncias do caso concreto[3].
Desta forma, na apreciação dos pressupostos processuais seguem-se os critérios previstos no CIRE e subsidiariamente, o regime do processo civil declarativo comum (art. 17º CIRE).
Em sede de legitimidade do requerente, não há que fazer apelo à regra geral do art. 26º/1 CPC, por remissão do art. 17º CIRE, porque a lei, nos art. 18º a 20º do CIRE, determina de forma taxativa quem está legitimado a requerer a insolvência.
Atribui-se legitimidade ao devedor, ou ao seu representante legal, quando se trate de incapaz (art. 18º, 19ºe art. 6º/1 b) do CIRE). No caso do devedor não ser pessoa singular, a legitimidade recai sobre o órgão social incumbido da sua administração ou sobre a entidade incumbida da sua administração ou liquidação do património em causa (art. 19º e art. 6º/1 a) CIRE).
O art. 20º do CIRE confere, ainda, legitimidade para requerer a insolvência do devedor, aqueles que forem responsáveis legalmente pelas suas dividas, qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do crédito e o Ministério Público em representação das entidades cujos interesses lhes estão legalmente confiados.
Nestas condições, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado.
A lei não exige que o credor logo na apresentação da petição prove definitivamente perante o requerido, ser seu credor.
A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade “ad causam” para deduzir o pedido de insolvência, que apenas respeita ao preenchimento de um pressuposto processual positivo e, portanto, a uma excepção dilatória imprópria[4].
O responsável legal pelas dívidas do devedor, como decorre do art. 6º/2 CIRE, são as pessoas que nos termos da lei, respondam pessoal e ilimitadamente pela generalidade das dívidas do insolvente, ainda que, a título subsidiário.
Enquadram-se nesta categoria o sócio de sociedade de responsabilidade ilimitada; pessoa que responda pelas dividas do património autónomo; sócio de sociedade unipessoal que viole o princípio da separação de patrimónios, gerente que viole culposamente norma de protecção dos credores da sociedade (art. 78 CSC) ou responda por danos causados no exercício das suas funções (art. 79º CSC)[5].
O credor condicional, pressupõe que é titular de um crédito sob condição resolutiva ou suspensiva, tal como se mostra previsto no art.50º CIRE.
De acordo com o art. 296º/2 CIRE a lei confere, ainda, legitimidade ao administrador da insolvência estrangeiro, no caso de instauração de processo secundário de insolvência.
Porém, como observa, Menezes Leitão: “estes só podem requerer a insolvência se se verificar algum dos factos índice referidos no art. 20º/1, sendo ainda necessário, nos termos gerais, que tenham interesse na respectiva declaração”[6].
Maria do Rosário Epifânio refere-se a “requisitos de natureza objectiva e requisitos de natureza subjectiva”[7].
A mera qualidade das pessoas ou entidades legitimidades – credor, responsável legal, Ministério Público e Administrador da Insolvência - é insuficiente para justificar a legitimidade, porquanto só podem requerer a insolvência mediante a alegação dos factos – índice. Da mesma forma, a verificação das situações enunciadas no art.20º /1 não atribui legitimidade para requerer a insolvência do devedor, sendo necessário que quem a requer assuma alguma das qualidades previstas no preceito. Tratam-se, pois, de requisitos cumulativos.
Nestes casos, o requerente da insolvência “na petição deve justificar a origem, natureza e montante do seu crédito”, como decorre do art. 25º do CIRE.
No caso concreto, como alegam na petição, os requerentes na qualidade de herdeiros legitimários, filhos do falecido C… vieram requerer a insolvência da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C….
Com efeito, como decorre do art. 2º/1 b) CIRE pode ser objecto do processo de insolvência, a herança jacente.
A este respeito Menezes Leitão refere “que a declaração de insolvência da herança jacente não será, em princípi, de interesse para os herdeiros, dado que têm sempre a possibilidade de a repudiar (art. 2062º CC), mas poderá ser requerida por qualquer credor da herança em ordem a controlar a sua liquidação”[8].
Os requerentes, contudo, não justificam a sua legitimidade para promover o processo de insolvência contra a herança, já que não se apresentam a requerer a insolvência em representação da herança, sendo certo que o mero facto de assumirem a qualidade de herdeiros legitimários não lhes atribui legitimidade, face ao critério previsto no art. 20º do CIRE.
Os apelantes consideram, aliás, que pelo facto dos requerentes repudirem a herança, estão impedidos de instaurar o processo.
Com efeito, como decorre do art. 2062º/1 CC, considera-se como não chamado o sucessível que repudia a herança.
Contudo, a respeito da qualidade da intervenção dos requerentes, cumpre referir que na petição os requerentes não alegaram, nem resulta dos factos provados, que repudiaram a herança aberta por óbito de falecido C…, contrariamente ao afirmado no despacho recorrido.
Dispõe o art. 2062º CC que considera-se como não chamado o sucessível que repudia a herança. Os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão, ou seja, à data do óbito.
O repúdio está sujeito à forma exigida para a alienação da herança, o que significa que está sujeito a escritura pública, se existirem bens cuja alienação deva ser feita por essa forma e fora desse caso, deve constar de documento particular – art. 2063º e 2126º CC.
De acordo com o disposto no artigo. 80º/2/e) Código Notariado o repúdio de herança de que façam parte imóveis está sujeito a escritura pública.
Os requerentes alegaram que a herança é constituída por direitos – direito à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do pai do “de cujus”, a qual é constituída por acções e um imóvel - e bens móveis.
O repúdio estaria sujeito a escritura pública, porque a herança é constituída por um direito que incide sobre bens imóveis.
Os requerentes não juntaram a escritura pública, que formaliza o repúdio. Mas admitindo que não fosse necessário tal formalidade, decorre dos autos que os requerentes não juntaram documento particular com o mesmo fim.
A declaração de não aceitação consignada na petição e tal como resulta dos factos provados, não tem a virtualidade de provar o repúdio, que constitui um acto unilateral, que se expressa numa declaração de vontade de repudiar a herança, sujeito a forma. Acresce que sendo um acto pessoal, tem que constar de documento assinado pelo próprio[9]. A declaração consignada na petição inicial e vertida nos factos provados não reveste essa natureza, quando além do mais a petição foi assinada apenas pelo mandatário das partes, sem poderes especiais para a prática do acto.
Não resulta, assim, demonstrado nos autos o repúdio da herança aberta por óbito de C….
A mera qualidade de herdeiros legitimários não atribui legitimidade, porque os requerentes não figuram como credores da herança, já que não reclamam o pagamento de qualquer crédito, não indicam a origem, natureza emontante do crédito.
Apesar de assumirem a qualidade de herdeiros legitimários não são legal e pessoalmente responsáveis pelas dividas do insolvente, nos termos previstos no art. 6º/2 CIRE. Mesmo na herança aceita pura e simplesmente, a responsabilidade pelos encargos não excede o valor dos bens herdados, ainda que recaia sobre o herdeiro o ónus de provar que na herança não existem valores suficientes para cumprimento dos encargos (art. 2071º CC )[10]. Contudo, o processo de insolvência não visa tal fim.
Na sucessão mortis causa opera-se uma substituição na posição jurídica[11], passando os herdeiros a ocupar a posição do “ de cujus” nas relações jurídicas e por isso, se reconhece legitimidade para em representação da herança, apresentarem a herança à insolvência.
A mera alegação dos factos-índice, não atribui só por si legitimidade ao requerente para promover o processo de insolvência da herança, pois, como se referiu os requisitos são cumulativos e no caso concreto, os herdeiros não preenchem os requisitos de natureza subjectiva, por não se enquadrarem no âmbito dos legitimados, tal como decorre do art. 20º/1 CIRE.
Desta forma, conclui-se que os requerentes não fundamentaram a respectiva legitimidade para instaurar o presente processo de insolvência, sendo pois parte ilegítima.
Defendem, os apelados que por analogia com a situação prevista no art. 1361º CPC assiste aos herdeiros o direito de requerer a insolvência, porque caso fosse instaurado o processo de inventário, mantinha-se a situação de insolvência, dada a insuficiência do activo para satisfazer o passivo, sendo certo que em conferência os apelados não aprovariam o passivo, o que lhes concedia o direito de requerer a insolvência no processo de inventário.
Com efeito, decorre da previsão do art. 1361º CPC, que quando se verifique a situação de insolvência da herança, seguir-se-ão, a requerimento de algum credor ou por deliberação de todos os interessados, os termos do processo de falência que se mostrem adequados, aproveitando-se, sempre que possível, o processado.
Esta norma, prevê a possibilidade do processo de inventário prosseguir como processo de insolvência, mas para que isso ocorra a lei estabelece como requisitos: a instauração de processo de inventário, a situação de insolvência da herança e o requerimento de algum credor ou deliberação de todos os interessados. Não basta, pois, o interesse isolado de um interessado, que não seja credor. O requerimento tem que ser formulado por todos os interessados (onde se incluem os credores).
Não há entre o processo de inventário e o processo de insolvência, qualquer paralelismo e por isso, esta norma tem carácter excepcional, o que justifica o regime especial previsto para promover os termos do processo.
Não se pode pretender, por isso, transpor esse regime para o processo de insolvência e justificar a legitimidade dos requerentes com esse fundamento. Acresce que ainda que assim se interpretasse, por analogia, nunca estariam reunidos os pressupostos a que se alude no preceito, porque no caso, o processo de insolvência não foi requerido por deliberação de todos os interessados, já que os apelantes, credores, não se associaram aos requerentes e os requerentes, como já se deixou dito, não figuram como credores da herança.
Referem, ainda, os apelados que na qualidade de herdeiros legitimários, ao abrigo do art. 2047º CC, no exercício dos poderes de administração estão legitimados a instaurar a presente acção.
Com efeito, o art. 2047º/1 CC atribui ao sucessível chamado à herança, que não aceitou ou repudiou a herança, a faculdade de providenciar pela administração dos bens se do retardamento das providências puderem resultar prejuízos.
Na petição, os requerentes não justificam o exercício do direito com tal fundamento, sendo certo que o processo de insolvência não se destina a adoptar providências que acautelem eventuais prejuízos para os bens da herança, mas sim a obter liquidação dos bens com vista a garantir o pagamento aos credores.
Conclui-se, assim, que os fundamentos invocados pelos requerentes não justificam a legitimidade para requerer a insolvência, procedendo, nesta parte, as conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 4 e 11 a 20, ainda que por motivos não inteiramente coincidentes com os argumentos apresentados pelos apelantes.
Prejudicado fica a apreciação das conclusões de recurso sob o ponto 8, quanto aos bens que devem compor a massa insolvente (art. 660º/2 ex vi art. 713º/2 CPC).
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Nos termos do art. 304º CIRE as custas da acção e da apelação são suportadas pelos requerentes/apelados.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e nessa conformidade, julgam-se os requerentes parte ilegítima, absolvendo-se a requerida da instância e desta forma, determina-se o arquivamento do processo.
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Custas, na acção e apelação, são suportadas pelos requerentes/apelados.
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Porto, 10.07.2013
(processei e revi – art. 138º/5 CPC)
Ana Paula Pereira de Amorim
José Alfredo de Vasconcelos Soares de Oliveira
Ana Paula Vasques de Carvalho
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[1] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 2ª edição, revista e actualizada, Coimbra, Edições Almedina, SA, 2008, pag. 274.
[2] Cfr. ISABEL ALEXANDRE “ O Processo de Insolvência: Pressupostos Processuais, Tramitação, Medidas Cautelares e Impugnação da Sentença” in THEMIS – NOVO DIREITO DA INSOLVÊNCIA - Edição Especial, 2005, pag.52-53.
[3] Cfr. ISABEL ALEXANDRE “ O Processo de Insolvência: Pressupostos Processuais, Tramitação, Medidas Cautelares e Impugnação da Sentença” in THEMIS – NOVO DIREITO DA INSOLVÊNCIA, pag.57-58.
[4] Ac. Rel. Porto 26.01.2010 - Proc. 97/09.8TYVNG.P1 – endereço electrónico: www.dgsi.pt
[5] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “ Pressupostos Objectivos e Subjectivos da Insolvência” in THEMIS – NOVO DIREITO DA INSOLVÊNCIA - Edição Especial, 2005, pag.17.
[6] LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO Direito da Insolvência, 4ª edição, Coimbra, Almedina, 2012,pag. 135.
[7] MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO “Os credores e o processo de insolvência” in LUÍS COUTO GONÇALVES, WLADIMIR BRITO, MÁRIO FERREIRA MONTE et al Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Hörster, Coimbra, Almedina, 2012, pag. 693-723.
[8] LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO Direito da Insolvência, ob. cit., pag. 84.
[9] JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO Direito Civil Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, Lda. pag.396, 399-400.
[10] Cfr. LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO Direito da Insolvência, ob. cit., pag. 85.
[11] Cfr. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO Direito Civil Sucessões Coimbra, Coimbra Editora, Lda, S/D, pag.426.
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SUMÁRIO (art. 73°/7 CPC):
I. Os herdeiros legitimários, por não revestirem a qualidade dos legitimados a requerer a insolvência do devedor, de acordo com o critério do art. 20º do CIRE, não têm legitimidade para requerer a insolvência da herança.

Ana Paula Pereira de Amorim