Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0745811
Nº Convencional: JTRP00040885
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: INJÚRIA
Nº do Documento: RP200712190745811
Data do Acordão: 12/19/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 293 - FLS 154.
Área Temática: .
Sumário: A expressão “és um palhaço”, ainda que proferida para manifestar desconsideração, não é ofensiva da honra ou consideração do visado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2ª secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

1.
B………., assistente nos autos, deduziu acusação contra a arguida C………., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punível pelo art. 181º, nº 1, do Código Penal.
A arguida requereu a abertura de instrução e a final foi proferida decisão de não pronúncia.

2.
Inconformado o assistente interpôs recurso da decisão proferida e apresentou as seguintes conclusões:
«1) A expressão: “és um palhaço» é injuriosa;
2) A expressão é pois, OBJECTIVAMENTE, ofensiva de honra e consideração de alguém;
3) E, é objectivamente ofensiva independentemente do contexto em que é proferida;
4) O termo palhaço tem uma carga negativa, aliás no contexto em que foi proferida indubitavelmente mais carga negativa tinha;
5) A expressão reflecte o desrespeito de quem a proferiu, a Recorrida, a quem o impropério se dirigiu, o Recorrente;
6) As palavras tem hoje significados diferentes, mas a utilização da expressão “palhaço” usada em sentido pejorativo ou depreciativo é objectivamente injuriosa;
7) Dos autos não resulta que a Recorrida tenha utilizado a expressão és um palhaço dirigindo-se ao Recorrente com outro sentido que não um sentido depreciativo;
8) Nem o contexto de uma discussão pode diminuir o carácter pejorativo ou permitir que a mesma seja proferida com um ânimo menos injurioso;
9) Não resulta dos autos que a Recorrida, ao proferir semelhante expressão, pretendesse elogiar o Recorrente;
10) A Recorrida ao dirigir-se ao Recorrente e ao referir-se a ele como sendo um palhaço, quis, sim, atingi-lo no seu brio, na sua honra, auto estima e consideração pessoal;
11) E tal expressão é objectivamente injuriosa independentemente do contexto, clima ou circunstâncias em que é proferida;
12) Assim, praticou a Recorrida uma crime de injúria p.p. no art. 181º, nº1 do C.P.
13) Na decisão em apreço ao não pronunciar-se a Recorrida pela prática de tal crime, e ao decidir-se não submete-la a julgamento violou o disposto no art. 181º do C.P. e art. 308º do CPP.
14) Deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído pela prolação de um despacho de pronúncia, tudo em ordem a submeter a Recorrida a julgamento pelas prática de um crime de injúria p.p. no art. 181º do C.P., seguindo-se os posteriores e devidos termos processuais».

3.
O recurso foi admitido.

4.
O Sr. Procurador da República junto do tribunal recorrido respondeu defendendo a manutenção do decidido, isto apesar de, anteriormente, ter acompanhado a acusação deduzida.

Nesta Relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no mesmo sentido, de ser negado provimento ao recurso.

No cumprimento do nº 2 do art. 417º do C.P.P., nada mais foi acrescentado.

5.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
*
*

FACTOS PROVADOS

6.
Dos autos resultam os seguintes factos, com relevo para a questão a decidir:
1º - B………. e C………. viveram em união de facto, durante cerca de 2 anos e meio, e têm um filho em comum.
2º - Em 6-12-2005 B………. apresentou queixa contra C………. por esta, em 5-8-2005, no infantário “D……….”, sito na rua ………., ………., Maia, frequentado pelo filho de ambos, o ter abordado dizendo “és um palhaço”. Também disse que ela dava maus tratos aos filhos e que a filha E………. era uma desgraçada nas suas mãos.
3º - Em 20-4-2006 o assistente foi ouvido em declarações e disse:
«… no dia 5 de Agosto, quando se deslocou ao infantário, foi-lhe pela proprietária desta recusada a entrega do filho, pois … não tinha ordens da mãe, contudo … fazia-se acompanhar de uma acta da conferência de pais … constando poderes para ir buscar o menor ao citado infantário, documento este que foi exibido à referida proprietária e a um agente da P.S.P. …
Que permanecendo ainda no local, surgiu ali subitamente a sua ex-companheira onde, após diálogo com esta e exibindo o referido documento na presença da citada proprietária e também do agente de autoridade F………. … esta profere a seguinte expressão “és um palhaço” recusando ainda a entrega do filho, o que aconteceu, argumentando que tratava mal os filhos e que a sua filha era uma desgraçada em suas mãos, filha esta de 8 anos de idade e de uma outra relação do participante …»
4º - Em 26-4-2006 a arguida foi ouvida em declarações e disse que:
«viveu com o denunciante cerca de 2 anos e meio, existindo dessa relação um filho menor de idade de 3 anos … Relativamente aos factos denunciados disse que efectivamente naquele dia existiu uma discussão entre ambas as partes … Indagada disse ainda que existem vários processos em tribunal entre ambas as partes, desconhecendo a depoente se no decorrer da discussão em causa proferiu as palavras que o denunciante diz …».
5º - Em 7-6-2006 foi ouvido F………., que declarou:
«… no dia 5 de Agosto de 2005 foi chamado ao local e uma vez aí ouviu a arguida C………. a dizer ao ofendido que “ele era um palhaço”. Já no local soube da existência do litígio entre ambos … devido ao facto de a arguida não querer entregar o filho ao pai, conforme foi estipulado pelo tribunal … Refere que já foi chamado por diversas vezes ao infantário pelo assunto a que se referem os presentes com os mesmos intervenientes …».
6º - Em 7-6-2006 foi ouvida G……….., que declarou que:
«… que apenas presenciou uma discussão entre ambos não se recordando de momento das expressões proferidas. Refere que a relação entre o casal é muito complicada …».
7º - Em 4-9-2006 o assistente deduziu acusação contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punível pelo art. 181º, nº 1, do Código Penal, nos seguintes termos:
«1. No dia 5 de Agosto de 2005, cerca das 17 horas, no interior do infantário denominado “D……….”, sito na rua ………., ………., Maia, a arguida C………., visando ofender e vexar, como aliás ofendeu e vexou, o bom nome, honra, consideração e boa reputação de que goza o assistente no meio social em que reside, na presença de diversas pessoas, disse-lhe, em voz alta e para quem quis ouvir, “és um palhaço”.
2. A arguida referiu ainda que o assistente dava maus tratos aos filhos e que a filha deste, E………., era uma desgraçada nas mãos do aqui assistente.

3. As expressões proferidas pela arguida e dirigidas ao assistente foram ouvidas por diversas pessoas que se encontravam no local e as mesmas são objectivamente e subjectivamente ofensivas.
4. A arguida agiu sempre livre e com perfeita consciência de que a sua conduta era proibida por lei».
8º - O assistente deduziu, também, pedido de indemnização civil.
9º - O Ministério Público acompanhou a acusação.
10º - A arguida requereu a abertura de instrução.
11º - No âmbito da instrução foi ouvido H………., pai da arguida, que declarou que:
«… não ouviu a arguida proferir as expressões … Refere que permaneceu no local enquando durou a discussão».
12º - Em 27-5-2007 foi proferida decisão instrutória, cujo conteúdo é o seguinte:
«Nos presentes autos, B………. deduziu acusação particular contra a arguida C………., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1, do CP.
… A prolação de despacho de pronúncia depende da existência de indícios suficientes, obtidos através do inquérito e da instrução, de se terem verificado os pressupostos exigidos para aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança … Os indícios são suficientes quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança …
Em todo o caso, a instrução deve respeitar o objecto do processo definido na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, de tal modo que é nula a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento para abertura de instrução, conforme decorre do disposto no art. 309º. Nº 1, do CPP.
Do crime de injúria
O assistente deduz acusação particular contra a arguida, imputando-lhe, de relevante, que, no dia 05.08.2005, no infantário do filho, dirigiu-se ao assistente e disse:
1º - “És um palhaço”;
2º - que o assistente dava maus-tratos aos seus filhos e que a filha do assistente era uma desgraçada nas mãos dele.
Tendo por base este comportamento objectivo, o assistente imputa à arguida a prática do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1, do CP.
Dos factos indiciados
Em face da prova produzida nos autos, mais concretamente da conjugação das declarações coincidentes do assistente (a fls. 38) e da testemunha F………. (agente da PSP que presenciou a discussão entre o assistente e a arguida no dia e local em causa, o qual foi inquirido a fls. 56, corroborando a participação que o próprio elaborou na altura, e que se encontra a fls. 4), mostram-se suficientemente indiciados os factos descritos em 1º dos supra referidos como imputados à arguida, sendo certo que não foi produzida qualquer prova relevante susceptível de o infirmar, para além de que a própria arguida (fls. 51) e as testemunhas presenciais G………. (inquirida a fls. 57) e H………. (inquirido a fls. 230) confirmam a existência de uma discussão.
Pelo contrário, quanto aos factos vertidos sob o referido ponto 2º dos imputados à arguida, os autos não contêm indícios suficientes, considerando que, sobre esta matéria, para além das declarações do assistente, não foi produzida qualquer prova, sendo que nenhuma testemunha referiu ter presenciado/ouvido a arguida proferir aquelas expressões. Nesta parte, inclusive no sentido de infirmar as declarações do assistente, importa notar que, a testemunha F………. (o dito agente da PSP) apenas referiu ter ouvido a expressão “és um palhaço”, seja logo aquando da elaboração da participação de fls. 4, seja aquando das declarações de fls. 56, sendo certo que é o próprio assistente que afirma que esta testemunha esteve presente durante a discussão. Além disso, nenhuma outra testemunha inquirida afirmou recordar-se de ter ouvido as expressões referidas supra sob o ponto 2º das imputadas à arguida.
Do enquadramento jurídico
Em conformidade com o disposto no art. 181º do CP, comete o crime de injúria “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
Para efeitos de tutela penal, cujo fundamento se busca na protecção do direito fundamental ao bom nome e reputação constitucionalmente consagrado no art. 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a honra traduz-se num bem jurídico multiforme, que mistura uma concepção fáctica, subjectiva e objectiva, com uma concepção normativa, pessoal e social, incluindo, desta forma, por um lado, o valor e dignidade pessoal e interior de cada indivíduo, e, por outro, a sua integração e consideração na comunidade em que se insere. Ou seja, a honra deve ser entendida como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana (cfr. art. lº da CRP) e, nessa medida, como um conceito normativo, cuja concretização não dispensará a convocação de uma dimensão fáctica ou existencial do homem enquanto ser social.
No caso do crime de injúria, prevê-se que a imputação de factos e a simples direcção de palavras a outrem podem traduzir uma forma de ofensa da honra e consideração do visado.
Em todo o caso, a ordem jurídica acolhe os direitos ao bom nome e reputação de forma harmonizada e convergente, de tal modo que, entre outros, devem ser excluídos do seu âmbito de protecção os conteúdos que possam considerar-se de plano constitucionalmente inadmissível, mesmo quando não ressalvados na sua definição literal.
De igual modo, nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações susceptíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Por conseguinte, atentos os múltiplos factores que concorrem para a identificação das condutas ofensivas da honra, apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efectivamente, comportam uma carga ofensiva da honra de um indivíduo. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstância envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.
Dos factos indiciados e do Direito
Revertendo ao caso dos autos, desde já se adianta que não se vislumbra que a conduta suficientemente indiciada da arguida assuma dignidade penal, na perspectiva de ter proferido qualquer expressão ou imputação criminalmente relevante adequada a ofender a honra e consideração do assistente.
Concretizando, conforme supra referido, para se aferir da potencialidade ofensiva da honra de determinadas expressões ou imputações, importa, entre o mais, avaliar o contexto em que aquelas se inserem, quando é certo até existirem expressões que, de forma isolada e desgarrada do contexto, são adequadas a ofender a honra e consideração do visado, sendo que, no entanto, essas mesmas expressões ou imputações, se enquadradas num contexto do qual resulte um significado ou uma conotação diferente, podem perder aquela carga ofensiva.
Ora, a conduta indiciada da arguida, ainda que possa ter incomodado o visado e que seja adequada a tal, não assume a gravidade suficiente para merecer a tutela do direito penal, tanto mais quando a mesma é assumida no âmbito de uma “discussão”.
Importa, desde logo, ter em conta que a expressão “palhaço”, quando utilizada numa discussão, não tem subjacente qualquer significado literal preciso (e muito menos ofensivo), sendo utilizada como uma palavra meramente incomodativa, e apenas porque foi adoptada pela sociedade como tal, independentemente do seu significado. Aliás, o significado objectivo da palavra “palhaço” em nada se confunde com actividade ou personagem socialmente censurável ou com característica ofensiva da honra e consideração das pessoas que exercem aquela actividade ou assumem a aquela personagem. No fundo, a utilização comum da expressão “palhaço” com conotação depreciativa tem “apenas” subjacente a ideia de que o autor da expressão não tem consideração pela actuação do visado, sem que isso signifique a imputação de qualquer facto a este ou que traduza uma palavra verdadeiramente ofensiva, traduzindo antes uma expressão indelicada e incomodativa.
Além disso, verifica-se que a expressão indiciada foi utilizada no âmbito de uma discussão entre o assistente e a arguida e mesmo num forte quadro litigioso (conforme o comprovam, não só as declarações já supra referidas, mas também a constatação da existência de outros processos judiciais que opõem os envolvidos, conforme resulta de fls. 94 a 108), revelando-se, neste quadro, essencialmente uma expressão de grosseria e de deselegância por parte do seu agente.
Por conseguinte, tendo em conta os considerandos supra referidos sobre a conflitualidade entre os membros de uma comunidade e sobre a necessidade de intervenção do Direito, verifica-se que a expressão suficientemente indiciada não tem, quanto mais não seja no circunstancialismo referido, a virtualidade de assumir dignidade suficiente para merecer a tutela penal, na medida em que não é adequada a atingir o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Em suma, conclui-se que, em face dos elementos probatórios existentes nos autos, apreciados criticamente e conjugados com os juízos de experiência comum, se verificam indícios insuficientes em ordem a submeter a causa a julgamento, pela prática do crime de injúria por que vinha a arguida acusada, devendo a arguida ser não pronunciada.
Decisão.
Face ao exposto, ao abrigo do disposto nos arts. 307º e 308º, nº 1, do C.P.P., decide-se não pronunciar a arguida C………., pela prática do crime injúria, p. e p. pelo art. 181º do CP, por que vinha acusada».
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DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente – art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2 do mesmo Código.

Por via dessa delimitação a questão a decidir por este Tribunal da Relação do Porto reside em saber se a arguida cometeu, ou não, o crime pelo qual foi acusada: se chamar «palhaço» é, ou não, ofensivo da honra e consideração de um cidadão.
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Dispõe o art. 286º, nº 1, do C.P.P. que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» e no seu termo o juiz profere despacho de pronúncia se «tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança …» (art. 308º, nº 1, do C.P.P.).
Assim, a pronúncia ou a não pronúncia dependem de terem sido recolhidos, ou não, indícios suficientes da prática, pelo arguido, de factos relativamente aos quais exista uma forte possibilidade de ele vir a ser condenado. Os indícios serão suficientes quando a probabilidade de condenação for maior do que a de absolvição, quando esta seja uma probabilidade razoável e séria, e não remota.
No entanto «na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada … uma pena ou uma medida de segurança …» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª ed., pág. 179).

O assistente acusou a arguida de, em 5 de Agosto de 2005, lhe ter dito, em voz alta e para quem quis ouvir, “és um palhaço”, que ele dava maus tratos aos filhos e que a filha deste era uma desgraçada nas mãos do pai.

Vejamos os factos.
Dos elementos recolhidos ao longo da instrução resulta que a arguida disse para o arguido «és um palhaço». Para além de ela não ter negado que tal tenha sucedido, o assistente disse que isso tinha sucedido e a testemunha F………., agente da autoridade que foi ao local aquando da discussão havida entre aqueles, confirmou-o.
Ao invés, já não resulta da prova que a arguida também tenha dito, nas mesmas circunstâncias de tempo e local e referindo-se ao assistente, que ele dava maus tratos aos filhos e que a filha era uma desgraçada nas mãos do pai.

Portanto, a arguida chamou palhaço ao assistente.

Quanto à susceptibilidade de os factos apurados integrarem um ilícito criminal, diz-se na decisão recorrida que não obstante a ordem jurídica acolher os direitos ao bom nome e reputação, a verdade é que nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, devendo distinguir-se estas situações daquelas que apenas revelarão indelicadeza, grosseria ou má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado e que não legitimam, por isso, a intervenção do direito, que deve ficar reservado para os casos em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.

Nos termos do nº 1 do art. 181º do Código Penal que «quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias».
Com esta previsão a lei pretende tutelar o bem jurídico honra, entendido como um bem jurídico complexo, que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, pág. 607). Protege-se a própria dignidade pessoal e o sentimento daquilo que «os outros pensam e vêm em si, independentemente de corresponder à verdade, dando, assim, cumprimento ao estipulado na nossa Lei Fundamental que tutela autonomamente a inviolabilidade da integridade moral das pessoas e a sua consideração social, mediante o reconhecimento a todos do direito ao bom nome e reputação» (Oliveira Mendes, “O Direito à Honra e a sua Tutela Penal”, pág. 20 e segs.).
O crime pode consistir na ofensa à honra e/ou na ofensa à consideração: a honra corporiza a essência da personalidade humana, corresponde ao mínimo de condições de natureza moral essenciais para o sentimento de auto estima, equivalente à dignidade da pessoa humana, a consideração é o conjunto de requisitos necessários a qualquer pessoa para merecer o respeito público. É o «património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros» - Simas Santos/Leal Henriques, Código Penal Anotado, 3ª Edição, p. 469.

Mas, e como bem diz a decisão recorrida, nem todo o comportamento incorrecto de um indivíduo merece tutela penal, devendo distinguir-se as situações que integram um ilícito penal daquelas outras que serão indelicadas, grosseiras ou reveladoras de má educação do agente mas que, não obstante, não configuram qualquer ilícito.

A palavra palhaço é, como muitas ou, quiçá, como todas as palavras, polissémica. Quando a usamos podemo-nos estar a referir ao comediante cuja intenção é divertir o público através de comportamento e maneirismos ridículos, mas também poderemos querer desconsiderar a pessoa visada com ela.
Mas nestes casos, de pluralidade de sentidos, não temos que acolher o significado atribuído pelo visado só porque este se considerou ofendido: isto será assim quando resulte inequivocamente dos factos.
Mesmo entendendo-se que a arguida pretendeu manifestar a sua desconsideração pelo assistente, a verdade é que ela não tem que ter consideração por ele, não tem que dizer que a tem e pode, claro está, dizer que não tem.
Face a isto poderemos objectar nos seguintes termos: ao invés de chamar palhaço a arguida deveria dizer «não tenho consideração por ti». Assim era inequívoco para todos não haver crime.

Mas aqui teremos que entrar com um dado já adquirido, pacífico nos dias de hoje: a par de uma valência subjectiva-individual os direitos fundamentais têm uma dimensão objectiva: «os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade como valores ou fins que esta se propõe prosseguir …» - Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, pág. 144 e segs., citado num estudo sobre os Limites do Direito de Defesa, de Figueiredo Dias e Costa Andrade.
A expressão usada, mesmo concedendo que o assistente se considerou ofendido, não atinge, sequer, o limiar da relevância penal. E mesmo concordando com a pergunta/afirmação do assistente, quando refere que «com toda a certeza não há ninguém que não se considere injuriado por lhe apelidarem palhaço, a não ser provavelmente os palhaços» nem por isso a expressão adquire dignidade penal: é subjectivamente relevante mas não é suficiente para despoletar a intervenção do direito, porque não é socialmente relevante.
«O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função» - acórdão deste relação de 12-6-2002, recurso 332 /02.

Pelo exposto improcedem todas as conclusões do recurso.
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DISPOSITIVO

Pelos fundamentos expostos:
I - Nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
II - Fixa-se em 4 Ucs de taxa de justiça devida.

Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária.

Porto, 2007-12-19
Olga Maria dos Santos Maurício
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
Artur Manuel da Silva Oliveira