Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6319/11.8IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: CRIME FISCAL
NOTIFICAÇÃO
PESSOA COLECTIVA
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RP201402266319/11.8IDPRT.P1
Data do Acordão: 02/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A notificação do agente enquanto representante da pessoa coletiva, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, não dispensa a sua notificação pessoal enquanto responsável singular pelos factos de que é acusado.
II – A omissão dessa notificação constitui uma irregularidade de conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato praticado (e por isso, não se pode ter como sanada), suscetível de constituir fundamento para recurso da sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 6319/11.8IDPRT.P1
Origem: 3º Juízo Criminal de Matosinhos

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Para julgamento em processo comum com intervenção de tribunal singular, o Ministério Público acusou os arguidos
-B..., divorciado, nascido a 18/7/1968 em ..., Vila Nova de Famalicão, filho de C... e de D..., titular do Bilhete de Identidade n° ......., residente na ..., n° .., ..., Vila Nova de Famalicão;
-E..., divorciado, desempregado, nascido a 20/8/1960, em ..., Vila Nova de Famalicão, filho de F... e de G..., titular do Bilhete de Identidade n° ......., residente na Rua ..., ..., R/C, Dto., ...;
-"H..., Lda., com o NIPC n° ........., com sede fiscal na Rua ..., ...., BI, sala ..., Matosinhos, colectada pela actividade de comércio por grosso de vestuário e de acessórios.
Imputando-lhes a prática de factos que, em seu entender, integrariam a coautoria de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos artigos 6º, nº 1, 7º, nº 3, 8º e 105º, nº 1 e nº 5, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pelo artigo 1º da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho (infra, abreviadamente, RGIT), sendo a sociedade comercial arguida responsabilizada nos termos do artigo 7º desse Regime Geral.
A final da audiência de julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu:
1. Condenar o arguido, E..., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal simples, previsto e punível pelo artigo 105° n° l do RGIT, na pena de 140 dias de multa à taxa diária de € 6.00, no montante global de € 840,00;
2. Condenar o arguido, B..., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal simples, previsto e punível pelo artigo 105° n° l do RGIT, na pena de 10 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano;
3. Condenar a sociedade arguida, H.... Lda., pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal simples, previsto e punível pelo artigo 105° n°l do RGIT, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de € 10.00. no montante global de € 1800,00.
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Irresignado com o decidido, veio o arguido B... interpor recurso, cuja motivação condensou nas seguintes conclusões:
«I - Não é possível estabelecer uma relação de causa-efeito entre a conduta imputada ao recorrente em todos os pontos da fundamentação da matéria de facto provada, da sentença recorrida, pelo que, o Tribunal a quo incorreu em erro notório de apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.°, nº 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal, e, nesta parte, deveria ter absolvido o ora recorrente.
II- O recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal simples contra a Fazenda Nacional, p. e p. pela disposição do artigo 105.°, nºs 1 e 5 do RGIT, na pena de dez meses de prisão, suspensa pelo período de um ano.
III-O recurso tem, também, por objeto a reapreciação da prova gravada.
IV-Sofre, a douta sentença recorrida, de erro de julgamento, porque, devia dar como provados factos alegados pelo arguido e não contraditados, e que como tal, deveriam ser considerados assentes, nomeadamente os depoimentos dos Técnicos da Inspeção Tributária sem olvidar os documentos constantes dos autos, por resultar da prova produzida em julgamento.
V-Como a douta sentença devia dar como não provados os factos com base no depoimento das testemunhas (funcionários da arguida) por contraditórios, vagos, imprecisos e não credíveis.
VI- O recorrente B…, entende terem sido incorretamente julgados os factos dados como provados, designadamente: Que exerceu de "facto" a gerência da arguida e empresa “H…, LDA"; Que o arguido foi notificado a fls. 100 dos autos, para cumprimento da al. b) do nº 4 do artigo 105.° do RGIT;
VII- Como entende ter sido aplicado incorretamente o direito: Quanto às questões de direito - Extinção do direito de queixa em virtude da mesma ter sido para além dos seis meses, violação do nº 1 do artigo 115 do Cód. Penal; E, em virtude da falta de notificação do recorrente para o cumprimento do al. b) nº 4 do artigo105.° do RGIT, deve revogada a sua constituição de arguido e medidas preventivas TIR.
VIII- A arguida H…, LDA foi gerida apenas por um gerente de facto o arguido, E…; este, detinha todo o "modus operandi" da empresa.
IX- Em estreita ligação com os trabalhadores, dando ordens de comercialização e na produção, no sentido de receber de clientes em dinheiro, ou levantando os cheques que lhe eram endossados junto da banca.
X- Tudo era realizado, pelo gerente H…, dava ordens para a emissão das faturas aos clientes, nas compras aos fornecedores. Todas as operações eram feitas com a Certidão Comercial em mão para prova da sua Gerência de facto e de direito.
XI- Em virtude do aqui recorrente B…, se encontrar na Suíça a trabalhar, desconhecendo por completo, que a empresa arguida tivesse atividade ou qualquer exercício industrial ou comercial.
XII- Em virtude da necessidade de obter rendimentos para sustento da sua família teve que emigrar para Suíça desde 01/02/2010 até 31/1212012, respetivamente, (cfr. doc. nº 353 e ss junto aos autos).
XIII- Nunca soube o aqui recorrente, de qualquer dívida da sociedade para com o fisco, nomeadamente, a falta de entrega à Fazenda Nacional das quantias recebidas a título de IVA pela sociedade de que era acionista, mormente as quantias constantes da acusação.
XIV- O arguido (B…) desconhecia a existência de qualquer débito da referida sociedade para com as Finanças Públicas, pois sempre confiou na pessoa que tinha ficado com a sociedade (E…) e que liderava a escrita comercial, as relações com o Fisco, Segurança Social, Pessoal, Clientes e Fornecedores.
XV- No concernente a toda a descrição factual entre os arguidos, destaca-se o seguinte: No ano de 2008, ambos os arguidos, constituíram a sociedade comercial, com a designação social de "H…, Lda.", NIPC ………, com sede na Rua …, …, .., …, V. N. Famalicão, sendo ambos os únicos sócios e também os gerentes da mesma, sendo necessária a intervenção conjunta dos dois para obrigar a sociedade, conforme certidão de matrícula junta aos autos durante o inquérito).
XVI- Logo após a sua constituição, os sócios desentenderam-se e acordaram não prosseguir com a atividade da sociedade e, por isso, encerrar a sociedade. O arguido ficou convencido de que tal tinha sido feito, crendo que a sociedade não se encontra em atividade.
XVII- No ano de 2009 o arguido (E…) tinha comunicado ao arguido (B…) a sua renúncia à gerência, o que também o deixou descansado, por entender que era manifestação de que aquele estava completamente desvinculado da sociedade.
XVIII- Não obstante agora se tenha constatado que só em Março de 2011 o arguido (E…) tenha registado a dita renúncia, embora se faça a menção à data de 25 de Março de 2009, (cfr. doc. nº 232 a 236 e 242 a 281 junto aos autos).
XIX- Entretanto, no dia 25 de Janeiro de 2011, ao arguido (B…), na sequência de notificação a este destinada na qualidade de legal representante da co-arguida, dirigiu-se à Direção de Finanças de Braga, precisamente aos serviços de Inspeção Tributária, para prestar declarações no âmbito de uma ação inspetiva externa, (cfr. doc. nº 36 junto aos autos).
XX- Nessa ocasião, ficou a saber, através dos Inspetores Tributários, que, não só a sociedade coarguida se encontrava em atividade, como tinha muitas dívidas perante as Finanças e Segurança Social.
XXI- Após ter descoberto que o arguido (E…) tinha mantido e prosseguido a atividade da sociedade e que ele tinha falsificado a sua assinatura em diversos documentos referentes à atividade da sociedade, desconhecendo se haveria mais documentos em que a sua assinatura tenha sido falsificada, e temendo as repercussões e todos os problemas, constrangimentos e responsabilidades que daí lhe poderiam advir sem que tivesse culpa, procurou o arguido (E…) para obter justificações e para tentar salvaguardar-se.
XXII- Nesse momento, o arguido (E…) admitiu que, após um período em que, efetivamente, a sociedade não manteve qualquer atividade, tinha prosseguido sozinho com a atividade da sociedade, mas aceitou assinar uma declaração em que assume todas as responsabilidades da sociedade coarguida, (cfr. doc. nº 159 e 160 junto aos autos).
XXIII- Celebra com este, em 08.03.2011, um contrato de cessão de quotas, através do qual o arguido (B…) lhe vendia a sua quota, e, o arguido (E…) declarou exonerá-lo de toda e qualquer responsabilidade no passivo na sociedade até àquela data.
XXIV- No mesmo dia, o arguido (E…) subscreveu documento em que declara que tinha assumido as funções de gerente de facto da coarguida desde a sua constituição, mais assumia serem da sua inteira responsabilidade, até esse dia, os atos de decisão de pagamentos ao Estado e todas as decisões e transações comerciais, (cfr. doc. nº 150 e ss junto aos autos).
XXV- Na mesma ocasião, o recorrente solicitou ao TOC (Técnico Oficial de Contas) da coarguida, I…, que emitisse uma declaração atestando que ele não tinha praticado quaisquer atos de gerência em relação à coarguida, tendo assinado uma declaração que atesta que, a partir de Dezembro de 2008, nunca mais teve contacto com o arguido (B…), (cfr. doc. nº 112 junto aos autos).
XXVI- Sabendo também que prejudicava o arguido (B…), a quem podiam vir a ser imputados atos de gerência sem que os tivesse praticado, e, consequentemente, imputando-se-lhe responsabilidades, enquanto, como sócio e gerente da sociedade, não foi tido nem achado nas decisões/atos subjacentes aos documentos em que o arguido (E…) imitou a sua assinatura.
XXVII- Ao imitar a assinatura do arguido (B…) naqueles documentos, o arguido (E…) criou a aparência de que aquele continuava a praticar atos de gestão na sociedade, o que não era verdade, e que a sociedade assim se vinculava ao teor que constava naqueles documentos, e que as decisões deles decorrentes tinham sido tomadas e aprovadas por ambos, fazendo o arguido (E…) crer enganosamente à Administração Tributária.
XXVIII- Na verdade, o Tribunal de 1ª Instância não procedeu, o que, só por manifesto lapso se admite, a um exame criterioso do acervo probatório constante dos autos, pois se o tivesse feito teria dado como provados os factos acima referidos, quanto ao arguido, B…, pelo que este não exerceu de facto a gerência da arguida H…, Lda..
XXIX- Os documentos juntos aos autos, bem como as declarações dos arguidos, dos Inspetores da Direção de Finanças de Braga, e os depoimentos das testemunhas (trabalhadores da empresa arguida, contraditórios e instrumentalizados), conjugados e analisados de forma crítica, de acordo com regras de experiência e senso comuns, impunham um juízo diverso da matéria de facto e, consequentemente, decisão diferente da recorrida.
XXX- Em primeiro lugar, deixemos os depoimentos testemunhais falarem por si. O depoimento da Inspetora Tributária, J…, que foi o instrutor do relatório, sessão de 28/02/2013, minutos 10:11:50 a 10:34:42. Esta testemunha, à pergunta:
P: Quem exerceu de facto a gerência:
R: Apenas o sócio e gerente E….
P: Porquê?
R: Porque nunca falamos com o sócio e gerente B….
P: Somente por esse facto?
R: Não. Também pelos documentos juntos aos autos e do nosso conhecimento, nomeadamente, Declaração de responsabilidade do sócio e gerente E… dizendo que é ele o único responsável pela empresa desde 2008 até aos dias de hoje, como Declaração do TOC em que nunca viu o Gerente B… e que é apenas responsável o Gerente E… e por fim a cessão de quotas em 2011, em que mais uma vez o Gerente E… alega ser o único responsável, como cessionário da quota do Gerente B….
P: Sabe de mais razões pelo que o Gerente B… não é responsável pela gerência da empresa H…, Lda.?
R: Foi trabalhar para na Suíça desde 2008.
XXXI- Também no depoimento do Inspetor Tributário K…, que foi o instrutor do relatório, sessão de 28/02/2013, minutos 10:34:45 a 10:55:23. Esta testemunha, à pergunta:
P: Quem exerceu de facto a gerência:
R: Apenas o sócio e gerente E….
P: Porquê?
R: Porque nunca falámos com o sócio e gerente B…, por se encontrar a trabalhar na Suíça desde 2008.
P: Conhece os documentos juntos ao processo, nomeadamente as declarações do TOC e do senhor E…?
R: Sim, uma declaração do TOC em como o Gerente B… não é responsável pelas dívidas da empresa.
P: E tem conhecimento de mais cartas?
R: Sim, do próprio Gerente E…, em que assume toda a responsabilidade pelas dívidas da empresa desde 2008 até 2011 e que diz que o Gerente B… não tem culpa nem é responsável pelas dívidas fiscais
XXXII- Os depoimentos de todos os trabalhadores da arguida que provado ficou que se encontravam em conluio com o arguido E…, todos foram contraditórios, imprecisos, [por] falta de objetividade e clareza, à pergunta, na sessão de 15/03/2013, minutos, 05:11:23 a 34:42:06:
P: Alguma vez viram o senhor B… na empresa?
R: De vez em quando.
P: E o que fazia o senhor B…?
Dava ordens.
P: E que ordens?
R:Não sei, não me lembro.
XXXIII- Todas as testemunhas, trabalhadores da arguida/empresa, foram evasivas, e, como consabido, estas testemunhas foram arroladas pelo Ministério Público, referiram que o arguido E… estava na produção ia à fábrica, acrescentando que o arguido B… dava a volta à fábrica de vez em quando.
XXXIV-Não se consegue perceber a sentença recorrida, quando se diz, que: "foi possível esclarecer, sem qualquer dúvida, a real intervenção dos arguidos, como gerentes de facto, no âmbito da organização e gestão da vida da sociedade, especificadamente na tomada de decisões quanto à entrega ou não entrega do dinheiro à Administração Tributária".
XXXV- Atento o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência e discussão de julgamento, não restam dúvidas, quanto à não participação ativa do arguido B… na vida da sociedade, sendo, este, apenas o seu administrador de direito.
XXXVI- As testemunhas foram claras quando referiram que quem dava a cara pela empresa era o arguido E…, e que se encontrava diariamente e deslocava à fábrica e filial da sociedade arguida com maior ou menor frequência.
XXXVII- Estes depoimentos deviam merecer da parte do Tribunal maior cuidado na sua apreciação, valoração e avaliação.
XXXVIII- Ficou inequivocamente demonstrado nos autos e em julgamento que o arguido E… era o responsável pelas decisões da vida da sociedade, a quem se atribuía o exercício das funções de administrador, sendo identificado como tal por todos quantos lidavam com a sociedade arguida.
XXXIX- E que o arguido B…, apesar de gerente de direito, nunca praticou qualquer ato de gerência de facto, pela ou em nome da sociedade arguida H…, Lda.
XL- Da prova produzida em sede de audiência e a constante dos autos nunca poderá resultar a dúvida quanto à responsabilidade jurídico-penal do arguido E….
XLI- Porém, no concernente a essas dúvidas, são evidentes quanto ao arguido B…, pelo que se impõe, quanto a este, o instituto jurídico "in dubio pro reo".
XLII- Assim, a prova produzida em audiência de julgamento não permitia dar como provada, como foi, a matéria referida como factos provados nos pontos 3, 5, 7, 8, 9 e 10 da sua Fundamentação.
XLIII- São pontos essenciais da matéria de facto que foram incorreta e erroneamente apreciados, o que redundou numa deficiente apreciação da prova e na injusta condenação do arguido pela prática do crime previsto e punido no artigo 105.°, nº 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias.
XLIV- Assim, o douto Tribunal "a quo" julgou incorretamente os pontos de facto referidos supra enunciados (cfr. artigo 412º, nº 3, al. a) do CPP).
XLV-A prova produzida impunha uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal "a quo" (artigo 412.°, nº 3, al. b) do CPP).
XLVI- Impunham que o douto Tribunal "a quo" tivesse dado como provados os pontos de facto ora em crise.
XLVII- Também foi dada como provada, a fls. 100 dos autos, a notificação ao arguido aqui recorrente para cumprimento da al. b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, [prazo de] pagamento por mais 30 dias da dívida exequenda e acrescidos.
XLVIII- Com todo o respeito pelas partes e Tribunal, que é muito, não se encontra notificado o arguido e aqui recorrente a fls. 100, apenas temos que, em 20/09/2011, foi efetuado pedido ao Chefe do Serviço de Finanças de Vila Nova de Famalicão para que providencie a notificação pessoal de B…, a fim de ser interrogado e constituído arguido no presente processo de inquérito (cfr. fls. 100 dos autos).
XLIX- Sendo obrigatória a notificação pessoal do arguido e aqui recorrente B…, e ela não tendo existido, não podia ser constituído arguido, acusado, como lhe ter sido aplicado o TIR, como condenado.
L- A exigência prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, introduzida pela Lei n° 53-A/2006, de 29/12, não constituindo um elemento integrante do tipo de ilícito do crime de abuso de confiança fiscal, não implica descriminalização.
LI- Em consequência, e tendo sido cumprida a respetiva obrigação de declaração, devia o arguido ter sido notificado pessoalmente nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT) o que não aconteceu.»
Terminou este arguido as suas alegações pedindo a revogação, em conformidade, “das decisões e da fundamentação da douta sentença” nos termos que propugnou, absolvendo-o.
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Também o arguido E... se não conformou com o decidido na referida sentença, interpondo, por sua vez, recurso, cuja motivação condensou nas seguintes conclusões:
1) o Tribunal "a quo" formou a sua convicção na conjugação, concatenada, dos seguintes meios de prova:
- Declarações dos arguidos;
- Depoimentos das testemunhas distribuídos por dois grupos, a saber:
-Trabalhadores da sociedade arguida
- Inspetores tributários
- E prova documental. (cfr. página. 5 da sentença)
2) O Tribunal deu grande relevo ao depoimento das testemunhas, trabalhadoras da empresa e "mais importante do que isso" (cfr. sentença pago 8) "reconheceram o arguido B… como gerente efetivo" da empresa.
3) A questão em reexame no presente recurso prende-se com a reapreciação dos factos e da fundamentação de facto, relativa aos três argumentos aduzidos pelo tribunal de 1ª instância (cfr. itens 7, 8 e 9 supra) pelos quais permitiu o Juiz, na sua convicção, colocar o arguido E…, no centro decisório da gerência, da sociedade arguida.
4) No que à matéria de facto diz respeito, este recurso demonstrará que as regras de experiência (artigo 127º do Código de Processo Penal) impunham uma decisão diversa, relativamente ao arguido E…, no que tange à matéria de facto.
5) Os factos ao diante descritos como provados, onde figura o sujeito plural, do enunciado linguística, "arguidos", deveria figurar o sujeito "arguido singular B…", apenas e tão-só.
6) Pelas transcrições efetuadas, implica a conclusão, através dos depoimentos credíveis – nas palavras do Tribunal "a quo" – que o único gerente, nos períodos tributários em causa, nos presentes autos, era o arguido B….
7) O tribunal recorrido deveria ter relevado o documento junto aos autos a fls. 446, relativo ao arquivamento do processo executivo fiscal, por reversão, contra o arguido E….
8) Ressalta daquele documento que:
Despacho: "de acordo com a informação que antecede, e as provas documentais juntas aos autos, verifica-se que o contribuinte E… – ……… – deixou de exercer o cargo de gerente em 25.03.2009, por renúncia, tendo esta sido registada na respetiva Conservatória.
Sendo que o período da dívida é posterior à data antes referida, determino que se proceda à exclusão do referido contribuinte do presente projeto de reversão."
9) Desse documento, de par com a certidão comercial, junta aos autos, só se poderá extrair a seguinte conclusão: presume-se que o arguido E…, deixou de ser gerente efetivo da sociedade arguida, antes dos períodos tributários em crise nos presentes autos.
10) A presunção não foi ilidida, por nenhum meio de prova, bem pelo contrário: materializou-se e confirmou-se.
11) O arguido E… não entende – nem a comunidade em geral – como foi possível a decisão do tribunal colocar uma vontade no arguido que ele nunca teve.
12) O arguido E… quis renunciar, para não ser responsabilizado pelos maus destinos da sociedade conduzida pelo outro arguido B….
13) O tribunal recorrido ainda fundou a sua convicção na declaração de fls. 427, para implicar o arguido E… em responsabilidade criminal decorrente dos atos de gerência.
14) A aludida declaração terá de ser sempre concatenada com os depoimentos das testemunhas.
15) E certo é que as testemunhas com credibilidade para o Tribunal "a quo", conforme supra explanamos, foram inequívocas a imputar, em exclusivo, os atos de gerência ao coarguido B….
16) O tribunal recorrido não poderia ter concluído que o arguido B… "repartia funções de administração".
17) E, ao contrário da convicção formada pelo tribunal "a quo", mandam as regras de experiência comum concluir que é verosímil que um gerente queira, pouco depois de assumir a gerência, "assumir a posição de mero trabalhador da empresa", sem que tal fosse entendido como uma "despromoção" (cfr. último parágrafo da página 9 da sentença).
18) O arguido E…, quando viu o rumo desastroso que a sociedade estava a trilhar, sob a orientação do outro gerente, e também arguido, B…, decidiu renunciar à gerência, conforme se encontra documentado nos autos, renúncia essa que se presume face a certidão do registo comercial.
19) Nesta conformidade, face às regras de experiência comum e do ónus probatório, só há uma conclusão a extrair:
- O Tribunal da Relação está em condições de modificar a decisão da matéria de facto dos itens da fundamentação da sentença.
20) Nos itens da fundamentação supra enunciados, onde figura o sujeito plural "arguidos", deverá constar apenas o sujeito singular "arguido B…".
21) O arguido E… deverá ser totalmente excluído da responsabilidade dos atos de gerência, relativamente à sociedade arguida nestes autos.
22) Não tendo exercido quaisquer atos de gerência, nos períodos tributários, em causa no presente processo, o arguido E…, deverá ser absolvido, na íntegra, da prática do crime de abuso de confiança fiscal, pela qual foi condenado, em la instância.
Finalizou este arguido as suas alegações requerendo a modificação da decisão de facto de acordo com o que propugna nos itens 39° e 40° da sua motivação, implicando tal modificação a revogação da decisão de lª instância por outra que o absolva, integralmente, da condenação que lhe foi aplicada.
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Na 1ª instância, o Ministério Público apresentou resposta em que defendeu a improcedência de ambos os recursos.
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Já nesta 2ª instância, porém, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer suscitando a questão prévia da falta de notificação do arguido B…, na qualidade de responsável singular, para o efeito previsto no artigo 105º nº 4, alínea b), do RGIT, concluindo no sentido de que, na procedência da questão prévia suscitada – e sem se conhecer, por ora, das demais questões objeto de ambos os recursos – se solicite à administração fiscal que proceda à notificação do referido arguido nos termos e para os efeitos do disposto naquele preceito legal, devolvendo-se, para tanto, os autos ao tribunal do julgamento.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Nas conclusões de recurso de ambos os arguidos suscitam-se, fundamentalmente, questões relacionadas com a alegadamente errada decisão da matéria de facto (seja no âmbito dos vícios decisórios previstos no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, quer no âmbito mais alargado de erros de julgamento, impugnáveis nos termos dos nºs 3 e 4 do artigo 412º do mesmo diploma).
No caso concreto, porém, importa começar por abordar a questão prévia que – não obstante a respetiva substância ter sido, no essencial, alegada pelo arguido B… – foi expressamente suscitada no parecer do Ministério Público, no pressuposto de que seria do conhecimento oficioso.
Na verdade, a proceder tal questão prévia, não há lugar à apreciação das restantes questões suscitadas nos recursos dos arguidos.
No que tange à questão prévia, estão, fundamentalmente, em causa os factos assentes no item nº 7 da factualidade dada como provada, com o seguinte teor: “Os arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, nº 4, alínea b) do RGIT, em 15/9/2011, não tendo pago o montante em dívida referido em 4)”. Mais especificamente, é posta em crise a prova do facto (dado como assente na sentença recorrida) constituído pela notificação individual do arguido B… para proceder ao pagamento das prestações tributárias em dívida no prazo de 30 dias.
A prova documental com base na qual o tribunal recorrido deu como provada a aludida notificação dos três arguidos é constituída pelo termo de notificação constante de folha 100, o qual comprova que, em 15/9/2011, o arguido E… foi notificado "por si e em representação da sociedade H…, Lda.,....nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artigo 105° do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT)".
Na motivação probatória desta decisão de facto, o tribunal a quo explanou as razões por que entendeu estar efetuada a referida notificação na pessoa dos dois arguidos/pessoas singulares, da seguinte forma: «... da notificação dirigida ao arguido E…, por si e na qualidade de representante da sociedade arguida (cfr. fls. 100) nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º nº 4, alínea b) do RGIT, retira-se que igualmente se encontra notificado, para aquele efeito, não só aquele arguido e a sociedade arguida, mas também o arguido B…, gerente e igualmente representante da sociedade, nos termos do disposto no artigo 6° daquele diploma, de acordo com o qual o preenchimento dos pressupostos de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal na pessoas da sociedade representada também se estende aos respetivos representantes».
Entendemos, porém, que tal fundamentação “mista” (no sentido em que conjuga a prova documental com uma ilação jurídica) – para além da incorreção técnica inerente à mistura de uma questão de facto com uma conclusão jurídica – não se mostra, a nosso ver, consentânea com o que é certificado nem com o direito aplicável.
Assim, por um lado, a matéria de facto que se deve ter como efetivamente provada corresponde tão só ao teor literal do que se mostra certificado, isto é: “O arguido E… foi notificado por si e em representação da sociedade H…, Lda., nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artigo 105° do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT)”.
Por outro lado, a melhor doutrina vem entendendo que os destinatários da notificação prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT deverão ser os arguidos, enquanto pessoas singulares individualmente responsáveis e, se for caso disso, em representação da pessoa coletiva que também seja arguida [2].
É que, conquanto a lei preveja a responsabilidade criminal fiscal cumulativa da empresa infratora e dos respetivos corpos sociais (mesmo nos crimes omissivos, como o abuso de confiança fiscal), nos termos dos artigos 6º e 7º do RGIT, a vontade da pessoa coletiva não se confunde com a vontade dos titulares dos seus órgãos, não obstante terem sido os seus corpos diretivos que determinaram a vontade desta.
Este é, também, tanto quanto alcançamos, o entendimento da jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
Assim, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Maio de 2009, proferido no processo nº 142/05.66IDPRT.Pl [3], decidiu-se que “Sendo arguidos a sociedade e o gerente, a notificação deste, na qualidade de representante legal daquela, para o efeito previsto no artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, não dispensa a mesma notificação em seu nome pessoal, pois são diversas as qualidades em que intervém no processo”.
Aliás, o mesmo Tribunal da Relação do Porto já anteriormente havia reconhecido aquela dissociação de papéis, quando, no acórdão de 26 de Março de 2008, proferido no recurso nº 0716952 [4], decidiu que “A notificação do arguido (gerente na data da prática dos factos) para efetuar o pagamento das quantias em dívida, nos termos do artigo 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, numa altura em que já tinha sido declarada a falência da sociedade (notificada na pessoa do liquidatário), não impede o arguido de fazer o pagamento pelo qual também é responsável”.
Mais recentemente e de forma totalmente clara e explícita, o acórdão de 30 de Maio de 2012 deste mesmo Tribunal, proferido no processo 7593/04.ITDPRT.P3 [5], reiterou expressamente tal entendimento, ao ponderar que «A notificação do agente enquanto representante da pessoa coletiva, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.°, n° 4, al. b), do RGIT, não dispensa a sua notificação pessoal enquanto responsável singular pelos factos de que é acusado.»
Como se evidencia, o arguido B… não foi realmente notificado, enquanto agente autónomo do crime por que foi acusado, para os efeitos do dispositivo legal em causa.
Mas qual a consequência jurídica de tal omissão?
Uma vez que, entre nós, vigora o princípio da legalidade em matéria de nulidades, só constituem nulidades as expressamente previstas na lei, sendo todos os demais atos ilegais considerados meramente irregulares.
Se a regra é a do conhecimento das irregularidades a requerimento do interessado – do titular do interesse protegido pela norma violada, nos termos do artigo 123º, nº 1, Código de Processo Penal – é evidente que a mesma não foi arguida no prazo previsto na 2ª parte do mesmo preceito.
No entanto, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado [6].
Ora, como o arguido B… foi condenado no pressuposto – expresso na fundamentação de Direito – da verificação, para além do mais, da referida condição objetiva de punibilidade, é patente que se encontra afetado o valor da sentença condenatória.
Assim, a irregularidade, quando afete o valor do ato, poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para tal ato, enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo [7].
É, de resto, esta a posição defendida no já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Maio de 2009, quando aí se expende: «A falta de notificação dos arguidos em nome pessoal, nos termos e para os efeitos do artigo 105º nº 4 al. b) do RGIT, constitui, em nosso entender, uma irregularidade. O Tribunal pode ordenar, oficiosamente, a reparação da irregularidade em causa, no momento em que da mesma tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado (cfr. artigo 123°/2 do Código de Processo Penal)».
Estamos, então, perante uma irregularidade do conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato praticado – que, por isso, não se pode ter como sanada – e que podia constituir, como constituiu, fundamento para recurso da sentença.
A declaração desta irregularidade – que afeta o valor do ato praticado, e que implica a sua repetição de acordo com a letra, a “ratio” e as finalidades ínsitas na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT – prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, pelo que haverá que ordenar a baixa do processo à 1ª instância.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido B… e procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público nesta 2ª instância e – sem se conhecer, por agora, das demais questões objeto de ambos os recursos – ordenar a devolução dos autos ao tribunal do julgamento, onde se solicitará à administração fiscal que proceda à notificação do arguido B…, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105° do RGIT, seguindo-se a realização dos demais atos que se mostrem afetados pela irregularidade em causa.
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Sem custas.
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Porto, 26 de fevereiro de 2014
Vítor Morgado
Raul Esteves
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[1] Tal decorre, desde logo, de uma interpretação conjugada do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Neste sentido, ver Paulo Marques, na sua monografia Crime de abuso de confiança fiscal – Problemas do atual direito penal tributário, Coimbra Editora, 2ª edição, Abril de 2012, páginas 145-148, cuja exposição, em boa medida, acompanharemos.
[3] Relatado por Melo Lima, acedível, designadamente, em www.dgsi.pt.
[4] Relatado por Manuel Braz, acedível em www.dgsi.pt.
[5] Relatado por Airisa Caldinho, acedível em www.dgsi.pt.
[6] Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, volume II, 5ª edição, página 131, refere: “Parece que há que distinguir entre a validade do ato e o seu valor; o ato será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destinava”.
[7] Ver Germano Marques, obra e local citados.