Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0811671
Nº Convencional: JTRP00041295
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: DISPENSA DE PENA
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP200804230811671
Data do Acordão: 04/23/2008
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 525 - FLS. 124.
Área Temática: .
Sumário: No caso de arquivamento de inquérito, ao abrigo do disposto no art. 280º, n.º1, do CPP, o assistente não pode requerer a abertura de instrução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 1671/08

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Em inquérito a correr termos na comarca de Lousada, relativamente a um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artº 143º, nº 1, do CP, o MP, com o entendimento de que, por se verificarem os pressupostos de dispensa da pena, o processo devia ser arquivado nos termos do artº 280º, nº 1, do CPP, mandou apresentar os autos ao senhor juiz de instrução.
Tendo este concordado com o arquivamento proposto, o MP proferiu despacho de arquivamento ao abrigo daquele preceito.
A assistente requereu a abertura de instrução.
Esse requerimento foi rejeitado, por se ter entendido estar-se perante uma situação de inadmissibilidade legal da instrução, de acordo com o artº 287º, nº 3, do CPP.

A assistente interpôs recurso, sustentando, em síntese, na sua motivação que o caso não é de inadmissibilidade legal da instrução.
O MP responde, defendendo a improcedência do recurso.
O recurso foi admitido.
Nesta instância, o senhor procurador-geral-adjunto apôs visto no processo.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Tendo o relator ficado vencido, coube ao juiz-adjunto a elaboração do acórdão.

Fundamentação:
A questão a decidir é só uma: saber se, no caso de arquivamento do inquérito ao abrigo do artº 280º, nº 1, do CPP, o assistente pode requerer a abertura de instrução.
Entende-se que não.
O requerimento de abertura de instrução é uma das formas possíveis de o assistente reagir contra o despacho do MP de arquivamento do inquérito, visando, através da decisão de um juiz, submeter a causa a julgamento.
Mas, quando o inquérito é arquivado ao abrigo do artº 280º, nº 1, não há apenas um despacho do MP, pois se interpõe a decisão de um juiz – a de concordância com o arquivamento. Como diz Germano Marques da Silva, a concordância do juiz traduz «uma verdadeira decisão sobre a legalidade e adequação do arquivamento» (Curso de Processo Penal, III, 1994, página 105).
E a decisão que pode ser comprovada com a realização da instrução só pode ser a do MP; nunca a de um juiz. O artº 286º fala da comprovação judicial de uma decisão que, por definição, não pode ser judicial. Como parece evidente, não tem sentido falar na comprovação judicial de uma decisão judicial.
Aliás, o arquivamento do inquérito ao abrigo do artº 280º, nº 1, só sendo realidade com a concordância do juiz de instrução, já tem a sua própria comprovação judicial, consubstanciada precisamente nessa concordância.
Questão que pode ser discutida, mas não aqui, por ser estranha ao objecto do recurso, é a de saber se, em face do disposto no nº 3 do artº 280º (A decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação), essa comprovação judicial – a decisão do juiz de instrução de concordar com o arquivamento – é ou não susceptível de recurso, meio mais comum para obter a modificação ou revogação de uma decisão judicial.
E dessa afirmação de não impugnabilidade retira-se mais um argumento de que este tipo de arquivamento não pode ser posto em causa pela abertura de instrução.
É com fundamento nessa norma que Paulo Pinto de Albuquerque afirma ser no caso inadmissível a abertura de instrução (Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, página 715).
Com base em critérios de racionalidade e economia processual, o legislador considera que, se se pode ver logo na fase do inquérito que, pela ocorrência de determinadas circunstâncias, não se torna necessário aplicar uma pena ao autor do crime indiciado, não se justifica o prosseguimento do processo. E tem como adquirida essa desnecessidade da pena, quando, em casos bem balizados, é afirmada por duas autoridades judiciárias – o MP e o juiz de instrução.
Conclui-se, assim, que a decisão de arquivamento do inquérito que pode ser comprovada judicialmente através da instrução é apenas a proferida ao abrigo do artº 277º do CPP.

Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso.
A assistente vai condenada a pagar 2 UCs de taxa de justiça.

Porto, 23 de Abril de 2008
Manuel Joaquim Braz
José Ferreira Correia de Paiva (vencido, conforme declaração em anexo)
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DECLARAÇÃO DE VOTO

RECURSO 1671/08-1.ª, do Tribunal da RELAÇÃO do PORTO

Instrç. ……/04.6GALSD-1.º, do Tribunal Judicial de LOUSADA
Face à argumentação que sustenta a “motivação”, outra solução não vemos que não seja a manutenção do arquivamento do procedimento criminal, uma vez que o MP, que é quem detém, nos termos dos art. 48.º e 53.º-n.ºs 1 e 2-b) e c), do CPP, a iniciativa penal, sendo o assistente mero colaborador, nos termos do art. 69.º-n.º1, assim o propôs, sob a concordância do juiz.
Porém, ainda que pelo art. 287.º se restringe a “instrução”, logo começando por retirar a sua obrigatoriedade, como existia no CPP 29, sendo hoje, expressamente facultativa – art. 286.º-n.º2, tal só é possível se se verificarem as hipóteses previstas nas als. a) e b) do art. 287.º. E nesta última, para o assistente, só quando o MP “não tiver deduzido acusação”. Além do tipo de actos que podem ser objecto da instrução propriamente dita, em obediência ao disposto no art. 291.º-n.ºs 1 e 2. Onde se chega ao ponto de prescrever a irrecorribilidade de certas decisões sobre a admissão de provas.
Ora, no caso, de facto, não houve acusação. O que deve entender-se para os casos em que o MP não deduziu acusação por considerar que os factos não integram a prática dum crime ou que não há prova. Ou seja, para os casos referidos no invocado Ac. L, de 12/12/2007: “comprovação judicial da decisão de arquivamento do inquérito proferida pelo MP nos termos do art. 277.º”. Que são elencados nos n.ºs: “1- … prova bastante de se não ter verificado o crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento”; 2- … se não tiver sido possível … obter indícios suficientes da «verificação» de crime ou de «quem» foram os agentes”. Ora, não foi o que aconteceu. Pelo contrário, o MP concluiu pela existência de provas sobre a prática de crime e de quem foram os seus agentes e, de tal maneira, que tem como “certo” que as aí Arguidas seriam condenadas, pelo que se fala em dispensa de «pena».
Ainda que o despacho do MP, que está na base da decisão recorrida, seja de “arquivamento”, não tem a categoria como tal, mas, sim, é uma “consequência”, ou seja, o que se decide, porque foi essa a opção, foi a “dispensa de pena”. Daí que não estejamos perante o “arquivamento” do procedimento criminal, esse, sim, nos termos do art. 277.º-n.ºs 1 e 2. Por isso, não poderia haver lugar à “intervenção hierárquica”, que é regulada pelo art. 278.º- inserido imediatamente após o art. 277.º - e não houve.
De igual modo, não tinha que providenciar pela “reabertura do inquérito” – pelas mesmas razões do anterior instituto.
“Nem recorreu do despacho judicial de concordância ao arquivamento por dispensa de pena…” – mas não é proibida a impugnação? O MP não a defende?
Quando se alega que pode ocorrer contradição, por parte do JIC, esta pode perfeitamente justificar-se porque, entretanto, foram desenvolvidas as provas oferecidas na instrução.
Além de que são decisões algo diferentes: a decisão “instrutória”, que tem por alternativa, a pronúncia/não pronúncia e a da “dispensa de pena”, em que o juízo é mais especificamente sobre a verificação dos requisitos dessa mesma dispensa.
Por outro lado, “a instrução visa a «comprovação» judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. E é o que a Assistente pretende. Por isso, não vemos como coarctá-la desse “direito”.
“O vício que a Recorrente assaca à decisão do MP - o da insuficiência de inquérito - … todas as diligências não passam de mera repetição de tudo aquilo que já havia sido feito durante o inquérito…”. Seja, mas isso é questão a decidir em sede de deferimento ou não das diligências requeridas. Por isso, a lei restringiu o indeferimento com o citado n.º3 do art. 287.º: “O requerimento (de abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”. Diz-se: “Quanto a esta última, o legislador não elencou taxativamente todas as situações que preenchem tal pressuposto, mas as mesmas têm que resultar da lei”. E como é que “resulta”? A inadmissibilidade está definida nas acima als. a) e b). Onde não se exclui a presente situação. Como também está correcto o que se “motiva”: “A ratio legis (deste n.° 3) é a da restrição máxima dos casos de rejeição do requerimento de abertura da instrução”.
O “duplo grau de jurisdição”, em matéria penal, consubstancia, sem dúvida, uma das mais importantes garantias de defesa do arguido, pelo que o legislador constitucional optou por, na Revisão Constitucional, pela Lei Constitucional 1/97, o consagrar expressamente entre as garantias de defesa. Assim, o n.º 1 do art. 32.°, da CRP, na parte final, prevê: «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».
Sendo o direito ao recurso um direito fundamental do arguido - previsto no Título II, sob a epígrafe «Direitos, Liberdades e Garantias», da Parte I, com a epígrafe «Direitos e Deveres Fundamentais» -, só poderá ser restringido nos termos previstos no n.° 2 do art. 18.°: ou seja, na medida do «necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Ora, o que, de alguma forma, constitui coarctar esse mesmo direito é o caso de não admitir a instrução em sede de arquivamento, por dispensa de pena, já que este sofre das limitações que vimos destacando.
Como também o seu processamento, tal como é definido e regulado pelo art. 280.º, não permite a intervenção, prévia, das partes particulares – arguidos e assistentes. Com efeito, nem sequer o Assistente é notificado do despacho que propõe ao Juiz o arquivamento. Só assim não acontece quando já houver acusação – ver n.º 2.
Com a agravante de que há um juízo de “verificação” sobre direito substantivo (previsto no art. 143.º-n.º3, do CP), o qual a Assistente pretende não seja dado como definitivo.
Porque está, de certa forma, relacionado com esta problemática, não será despiciendo recordar o que decidimos na Reclamaç. 947/03-4.ª, do TRP, em que o assistente reclamava do despacho que não admitira o recurso, por inadmissível, do despacho de “concordância com o arquivamento, por dispensa da pena, do processo de inquérito preconizado pelo MP:
“Como então o Assistente nada possa opor? E não recorrer? Quando a lei, no que versa aos seus poderes, não faz restrições – art. 69.º-n.º2-c).
É certo que o art. 280.º-n.º3 afasta a «impugnação». Todavia, não deixa de ser sintomática a conversão do “recurso” que o Projecto continha.
Nem poderia ser de outra maneira (admitir o recurso – onde o MP se opunha!), sob pena de evidente contradição, uma vez que a lei faculta a abertura da instrução. E, no caso vertente, não só se admitiu a constituição de assistente – se nada pode fazer como é que se admitiu, praticando, por acto inútil, um acto proibido por lei? – como também há um pedido de abertura de instrução. E nem sequer a lei consente que se tenha adiado a decisão sobre um tal requerimento, sem prejuízo do que se viesse a decidir no recurso. Mas, se se entende que não há lugar a recurso, então também se deveria ter decidido, desde logo, que a instrução não era admissível, por o processo-crime se encontrar encerrado, pelo despacho de arquivamento, ainda que «por dispensa de pena»”.
Se bem que seja a Assistente quem questiona, o certo é que a instrução está relacionada com o direito de “não ser submetido a julgamento”, que o TC, no Ac. 610/96, analisa: “A atribuição da referida faculdade processual ao arguido pressupõe, por seu turno, que se tutela um interesse em não se ser submetido a julgamento. (...) a protecção do interesse em não se ser submetido a julgamento é a função última da própria fase instrutória (...)”.
Há outros afloramentos do reconhecimento desse direito, nomeadamente, nos arts. 407.°-n.º 1-i) e 408.°-n.º 1-b), pois o único fundamento para o regime de subida e de efeito do recurso do despacho de pronúncia aí consagrado - subida imediata e com efeito suspensivo do processo - é precisamente o de salvaguardar o direito de o arguido não ser sujeito a julgamento sem que tenha havido uma efectiva comprovação judicial da verificação de indícios suficientes da prática de um crime.
Ora, sendo a Assistente também Arguida, tudo está relacionado com a prossecução do procedimento criminal, tanto mais que a Assistente pretende que se defina que, além de não ter sido ela quem deu início e causa à agressão, da mesma ela se exclui, enquanto conclui que, da sua parte, não se verifica a “retorsão” prevista na al. b) do n.º3 do art. 143.º, do CP.
A presente questão não a vemos tratada especificamente. De qualquer maneira, GERMANO M. da SILVA, em “Curso de Processo Penal” – III, pgs. 101 e sgs., diz: “... a decisão de arquivar ou suspender o inquérito e de acusar é da «competência» do MP, embora possa ser um acto «complexo», conjunto do MP e do juiz de instrução, nalgumas das modalidades de arquivamento” – fls. 101. Ora, se a decisão não é do juiz, falece o argumento da impossibilidade de instrução por uma anterior tomada de posição pelo juiz.
Ainda G: M. S.: “O assistente pode impugnar o despacho de arquivamento ... por duas vias: recurso e instrução” – fls. 120. Não é esta para estes casos? Não se especifica a exclusão. Se bem que, adiante: “Se, porém, tiver havido concordância do juiz, o meio para a impugnação pelo assistente deverá ser o «recurso», porquanto o juiz de instrução já se pronunciou.
Mas há dois (2) pontos que não logramos ultrapassar sem a abertura de instrução. Em 1.º lugar, a Assistente, no caso, é também arguida e, com a instrução, ela pretende que, como tal, não seja considerada – não obsta sustentar-se, porque só academicamente, que, com o arquivamento, continua a vingar a presunção de inocência. E, quando se afirma – e di-lo também G. M. S. (fls. 104) – que a decisão de arquivamento não implica qualquer decisão de «fundo», como é que não se consente que a Assistente ofereça provas para, precisamente, infirmar os juízos dos factos que contra si (são os que “ficam”) foram formulados?
Em 2.º lugar, porque a Assistente combate o arquivamento com base, precisamente, na prestação de “novas” provas, não só a “Reclamação Hierárquica”, como também e, muito especialmente, o Recurso não poderiam proceder, uma vez que essas mesmas provas nem sequer foram prestadas, pelo que não poderiam ser apreciadas, mantendo-se, portanto, o sentido da decisão de arquivamento.
Pelo que, em nosso entender, deveria ser admitido o requerimento de “abertura de instrução” por parte da Assistente.

José Ferreira Correia de Paiva