Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3138/06.7TBMTS.P1
Nº Convencional: JTRP00042433
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
INCAPACIDADE GERAL PARA O TRBALHO DE 25%
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP200903313138/06.7TBMTS.P1
Data do Acordão: 03/31/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 305 - FLS. 242.
Área Temática: .
Legislação Nacional: PORTARIA N° 377/2008 DE 26 DE MAIO.
Sumário: I Na determinação da perda da capacidade de ganho, deve ser considerada como perda a 100% a existência de uma incapacidade permanente que, embora fixada em 25% para o trabalho em geral, se traduza, relativamente à ofendida, na absoluta incapacidade de exercer a sua profissão específica e quando não tenha condições para se reconverter a outra actividade profissional.
II — A Portaria n° 377/2008 de 26 de Maio, em consagração do previsto no D.-L. n° 291/2007 de 21 de Agosto, consagrou tabelas que não visam a fixação definitiva de valores indemnizatórios, mas, nos termos do n°3 do art° 39° D.-L. n° 291/2007 de 21 de Agosto, estabelecer um conjunto de regras e princípios que permitam agilizar a apresentação de propostas razoáveis por parte das entidades seguradoras.
III — Ainda que a vida activa se deva considerar prolongar-se até aos 70 anos, deve ser indemnizada a perda da capacidade de ganho, ou capacidade de trabalho, quanto àquelas das tarefas, trabalhos e actividades que se desenvolvem até ao final da vida efectiva provável da lesada e que envolverão esforço necessariamente superior.
IV — Tendo a lesada 54 anos de idade, à data da prolação da sentença de 1º instância, uma incapacidade geral para o trabalho de 25% e uma incapacidade total para o seu trabalho habitual, justifica-se a atribuição de uma indemnização à Autora de € 80 000, a título de perda de capacidade de ganho futuro, € 40 000, quanto ao auxílio futuro de uma terceira pessoa para serviços domésticos, e uma quantia de €45 000, a título de dano não patrimonial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: • Rec. – 3138-06.7TBMTS.P1 Relator – Vieira e Cunha. Decisão de 1ª Instância de 8/7/08.
Adjuntos – Des. Mª das Dores Eiró e Des. Proença Costa


Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo ordinário nº3138/06.7TBMTS, do 3º Juízo Cível da comarca de Matosinhos.
Autora – B……………..
Ré – C………….., S.A.

Pedido
Que a Ré seja condenada a pagar à Autora a quantia de € 362.488,32, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, bem como da indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença.
Tese da Autora
No dia 23/12/05, cerca das 8H. e 50m., a Autora atravessava a via pública na passadeira existente na Rua Nova do Seixo, frente ao nº 99 de polícia, atento o sentido de marcha Padrão da Légua-Circunvalação, quando foi embatida pelo veículo ligeiro de mercadorias Opel Corsa, matrícula ..-..-VV, propriedade da sociedade Unirent, que o alugou à sociedade comercial D…………, entidade patronal do tripulante E………..; o proprietário havia transferido a respectiva responsabilidade infortunística devida pela circulação do veículo para a Ré; o veículo circulava a alta velocidade e com o respectivo condutor completamente distraído.
Do acidente resultaram elevados danos patrimoniais e não patrimoniais, cujo valor computa no montante peticionado.
Tese do Réu
O acidente ficou a dever-se à imprevidência da Autora.
Impugna, por desconhecimento, a natureza e extensão dos danos invocados.
Sentença
Na sentença proferida pelo Mmº Juiz “a quo”, a acção foi julgada parcialmente procedente e a Ré condenada a pagar ao A. a quantia global de € 153.518, acrescida de juros de mora, a contar da sentença e até efectivo pagamento.

Conclusões do Recurso de Apelação da Autora (resenha):
1ª – A prova produzida, pericial e testemunhal, implica uma resposta diversa ao quesito 29º da Base Instrutória e, por conseguinte, uma decisão que relegue para execução de sentença os montantes que a mesma vai despender no futuro com medicação analgésica e ansiolítica; a resposta não provado deve passar a “provado que, em consequência das lesões sequelas derivadas do acidente dos autos, a Autora depende de medicação analgésica e ansiolítica, tendo de suportar os inerentes custos dessa medicação”, sob pena de violação do disposto no artº 515º C.P.Civ., e tendo em conta o depoimento das testemunhas F…………. e G………… e o relatório pericial dos autos.
2ª – Os factos provados justificam que a compensação pelo dano não patrimonial, a indemnização pelo dano patrimonial futuro (IPP) e a indemnização pela dependência de terceira pessoa sejam consideravelmente superiores.
3ª – A Portaria nº 377/08 de 26 de Maio não tem como objectivo colocar de lado a equidade e a análise do caso concreto, a efectuar pelo julgador.
4ª – A Autora ficou totalmente incapaz para o exercício da única profissão que sabia executar (empregada doméstica) e dependente de terceira pessoa.
5ª – Devem ser arbitrados € 50 000, a título de danos não patrimoniais.
6ª – A título de incapacidade de ganho, e visto que a Autora ficou totalmente incapaz para o exercício da única profissão que sabia executar, deve ser arbitrado montante não inferior a € 120 000.
7ª – No que se reporta à assistência de uma terceira pessoa, o montante indemnizatório deverá ascender a € 70 000.
8ª – A sentença em crise não levou em conta as perdas patrimoniais que a Autora suportou de € 1 205,20, em sessões de fisioterapia, e € 66,92, em medicamentos e fraldas.

Conclusões do Recurso de Apelação da Ré
1ª – Deve ser alterada a resposta ao artº 32º da Base Instrutória – artº 690º-A nº1 al.a) C.P.Civ. – para “provado”, pois a travessia da faixa de rodagem, resulta da prova produzida, foi efectuada pela Autora por forma inadvertida e sem cuidado.
2ª – A Autora não estava a atravessar a faixa de rodagem na passadeira, mas a três metros daquela, em violação do artº 101º nºs 3 e 5 C.Est.
3ª – A Autora decidiu atravessar a via por entre os carros e quando o trânsito começava a andar.
4ª – Ao decidir como fez, o tribunal “a quo” violou o disposto nos artºs 349º, 350º e 351º C.Civ., para ale´m do disposto nos artºs 483ºss., 496º, 562ºss. e 473ºss. C.Civ.
5ª – O valor de € 45 000, fixado a título de indemnização pelo dano moral é excessivo, não devendo fixar-se em mais de € 30 000.
6ª – Também o valor de € 62 000 a título de indemnização pela incapacidade parcial para o trabalho peca pelo excesso – uma vez que a IPP foi avaliada em percentagem e não em pontos, não pode o tribunal socorrer-se da tabela constante do Anexo III da Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio; o montante indemnizatório não deveria, a este título, ser superior a € 40 000.
7ª – Acresce que sempre deveria a sentença ter descontado o valor já pago à Autora por força da decisão proferida no procedimento cautelar de arbitramento de reparação provisória – € 22 935, sendo € 695 x 33 meses.

A Apelante Autora produziu as respectivas contra-alegações, no recurso em que é apelada, pugnando pela improcedência das pretensões da contraparte.

Factos Apurados em 1ª Instância
No dia 23 de Dezembro de 2005, cerca das 8h e 50m, na Rua Nova do Seixo, atento o sentido de marcha Padrão da Légua/Circunvalação, a autora, B………….., foi atropelada quando atravessava a referida via da direita para a esquerda, pelo veículo ligeiro de mercadorias, marca Opel, modelo Corsa, matricula ..-..-VV; (facto A)
O VV circulava na via referida em A), pela hemi-faixa de rodagem direita; (facto B)
O veículo VV é propriedade da H………….S.A. e era conduzido por E…………..; (facto C)
A via referida em A) configura uma recta plana, com 8,10 metros de largura, com visibilidade não inferior a 100 metros e possui uma passagem para peões; (facto D)
A passagem de peões referida em D) encontra-se assinalada por um sinal vertical H7 e A16a, conforme doc. n.ºs 102 a 104 do apenso dos presentes autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido; (facto E)
Atento o sentido de marcha do VV e referido em A) encontra-se sinalizada a proibição de circular a mais de 40 Km/hora, conforme doc. n.º 100 e 101 do apenso dos presentes autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido; (facto F)
A via referida em A) é ladeada por casas e prédios de habitação, lojas, cafés, restaurantes, farmácia, agências bancárias, bomba de gasolina e paragens de transportes públicos; (facto G)
Aquando do ocorrido em A), era de dia, não chovia e o piso estava seco; (facto H)
Posteriormente ao atropelamento referido em A) a autora foi transportada de ambulância para o Hospital Pedro Hispano, mas às 12h 30m do dia referido em A) foi transferida de emergência para o Hospital de Santo António no Porto; (facto I)
Em consequência do ocorrido em A) a autora sofreu dores, desgosto por ter passado o Natal e Fim de Ano hospitalizada e longe dos seus filhos e marido; (facto J)
Entre H………… S.A. e a Ré – C…………., foi celebrado um acordo escrito mediante o qual a segunda se compromete a pagar a terceiros os danos emergentes da circulação do VV, em vigor à data dos factos e titulado pela apólice n.º 0001216683, conforme instrumento de fls. 139 do apenso dos presentes autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido; (facto L)
A Ré, no procedimento cautelar para arbitramento de reparação provisória, foi condenada no Proc. n.º 1266/06.8 TBMTS, que correu os seus termos no 5º Juízo Cível da Comarca de Matosinhos, a pagar à autora a quantia de 695,00 € por mês a título de reparação provisória do dano; (facto M)
A autora nasceu no dia 17 de Março de 1954; (fls. 83 dos autos em apenso)
Por contrato datado de 31 de Maio de 2005, e denominado de “aluguer de veículo automóvel sem condutor e/ou prestação de serviços n.º 20050501042, a “D………….” contratou o aluguer do veículo automóvel de matrícula ..-..-VV, até 31 de Janeiro de 2008; (quesito 1º)
Entre E………… e “D……………, Lda” foi celebrado contrato de trabalho, em 9 de Julho de 1999 , com horário de trabalho desde as 08h00 até às 17h00, com descanso diário entre as 12h00 e as 13h00, de segunda a sexta-feira, sendo que, na data e hora do acidente descrito em A), estava a cumprir as indicações que lhe foram transmitidas nesse dia pela sua entidade patronal; (quesito 2º)
O acidente ocorreu em frente ao jardim da casa com o n.º 99; (quesito 4º)
O condutor do VV não se apercebeu que a autora tinha iniciado a travessia da passagem para peões; (quesito 6º)
Em consequência a autora caiu na via, à frente do VV, a distância não concretamente apurada, tendo ficado prostrada na via, deixando uma mancha de sangue na mesma; (quesitos 8º e 37º)
A autora permaneceu no Hospital de Santo António no Porto até ao dia 6/1/2006; (quesito 9º)
Em consequência do atropelamento referido em A) a autora esteve em coma durante 6 dias no Hospital de Santo António; (quesito 10º)
No dia 6 de Janeiro de 2006 a autora foi transferida do Hospital de Santo António para o Hospital Pedro Hispano, onde permaneceu internada até ao dia 23 de Janeiro de 2006; (quesito 11º)
A autora apresentou incapacidade temporária geral total de 31 dias e temporária geral parcial de 421 dias; (quesito 12º)
Após a saída do hospital a autora dependeu de terceira pessoa para ir à casa de banho, fazer a sua higiene pessoal, vestir-se, despir-se, cozinhar, comer e/ou beber pela sua própria mão, deslocar-se dentro de casa, tomar a sua medicação, entrar ou sair de casa, fazer as compras para a casa e cuidar do seu filho menor; (quesito 13º)
A autora não conseguia andar, permanecer de pé, correr, pegar em pesos, apanhar um objecto do chão, subir e descer escadas, andar de transportes públicos; (quesito 14º)
A autora continua, desde a data da alta hospitalar, a ser levada ao colo para a casa de banho, e a necessitar de ser acompanhada quando sai à rua; (quesito 16º)
Os factos descritos nos quesitos 13º, 14º e 16º perduraram nos períodos de tempo fixados no quesito 12º e de acordo com as limitações aí descritas, sendo que, presentemente, necessita sempre de ser acompanhada quando sai à rua; (quesitos 13º, 14º e 16º)
A autora teve de usar fraldas durante, pelo menos, um ano; (quesito 15º)
A autora continua a sofrer de dores e a necessitar de medicação analgésica e ansiolítica; (quesito 17º);
A autora frequentou programa de reabilitação funcional na Unidade de Saúde Local de Matosinhos, com sessões diárias de fisioterapia, o que ocorreu até ao dia 22 de Junho de 2006, tendo suportado a quantia de 1205, 20 €; (quesito 18º)
A autora à data do atropelamento referido em A) era uma pessoa alegre, saudável, enérgica, trabalhadora, activa e dinâmica; (quesito 19º)
Hoje a autora é uma pessoa triste, angustiada, nervosa e revoltada; (quesito 20º)
Antes do atropelamento referido em A) a autora trabalhava como empregada doméstica em, pelo menos, duas casas particulares, onde auferia a quantia mensal de 495 €; (quesito 21º)
A autora tem um filho nascido em 30 de Junho de 1996; (quesito 22º)
A autora encontra-se impossibilitada de exercer a actividade de empregada doméstica sendo que as sequelas de que a autora ficou a padecer são impeditivas do exercício da sua actividade profissional, tendo ficado a padecer de uma incapacidade permanente geral de 25%; (quesito 23º)
A autora paga a quantia mensal de 200 € a uma cunhada para lhe tratar de parte das lides domésticas, como limpeza e roupas; (quesito 24º)
Em consequência do atropelamento referido em A) a autora suportou, a título de despesas medicamentosas e fraldas, a quantia de 66,92 euros; (quesito 25º)
Em consequência do atropelamento referido em A) a autora sofreu hematoma extradural fronto-parietal esquerdo, fractura cominutiva do terço distal da tíbia esquerda, fractura do terço distal da clavícula e arcos costais ipsilaterais e escoriações; (quesito 26º)
A A. foi submetida a Raios-X, TAC e ecografias; (quesito 27º)
A autora foi submetida a uma cirurgia de craneotomia e drenagem de hematoma e encavilhamento endomedular da tíbia e tratamento conservador das lesões sofridas; (quesito 28º)
A Autora recebeu alta da consulta de ortopedia, em 20 de Março de 2007, data da consolidação médica das lesões sofridas (relatório de fls. 187 e 190); (quesito 29º)
No local referido em A) o condutor do VV seguia numa compacta fila de trânsito que ora parava, ora arrancava; (quesito 30º)
O condutor do VV apenas se apercebeu da presença da autora na faixa de rodagem quando o embate ocorreu; (quesito 31º);
O condutor do VV tinha iniciado a marcha do seu veículo quando se deu o embate; (quesito 33º)
Em face do facto descrito em 31º, o condutor do VV não conseguiu evitar o embate; (quesito 34º)

Fundamentos
Os recursos das Apelantes Autora e Ré comportam a apreciação das seguintes questões:
1ª – Conhecer na responsabilidade na eclosão do acidente e respectivos danos e apreciar a resposta ao artº 32º da Base Instrutória.
2ª – Saber se a decisão deveria ter relegado para execução de sentença os montantes a despender pela Autora com medicação analgésica e ansiolítica, com alteração da resposta dada ao artº 29º da Base Instrutória (para “provado”).
3ª – Apreciar o “quantum” indemnizatório quanto ao montante atribuído a título de danos não patrimoniais, dano patrimonial futuro pela perda da capacidade de ganho e dependência da assistência de uma terceira pessoa (incidentalmente, aludir à relevância do disposto na Portaria nº 377/08 de 26 de Maio e saber se os juros deveriam ter sido decididos contar a partir da citação).
4ª – Saber se a sentença deveria ter condenado a Ré nos montantes de € 1 205,20 (sessões de fisioterapia) e 66,92 (medicamentos e fraldas).
5ª – Saber se a sentença proferida deveria ter procedido ao desconto da quantia de € 22 935, entretanto pago pela Ré à Autora, a título de arbitramento de reparação provisória.
Passaremos a apreciar uma por uma tais questões.
I
Em matéria de alteração das respostas à factualidade controvertida, foi ouvido, na íntegra, o suporte áudio relativo à audiência de julgamento.
No quesito 32º perguntava-se se “a autora não se certificou que podia fazer a travessia da faixa de rodagem em segurança, sendo a aproximação do veículo VV visível”.
Foi respondido “não provado”, e bem, a nosso ver.
Em primeiro lugar, porque o utente normal das vias de trânsito sabe que a prioridade de passagem dos peões que já tenham iniciado a travessia da via, no local justamente atribuído a uma tal passagem, é absoluta – artº 103º C.Est.2002.
Em segundo lugar, porque, como se assinala no despacho recorrido, é do depoimento da própria testemunha E……… (condutor do veículo) que se extrai que o condutor inobservou o dever de previdência relativamente à passagem de peões nas passadeiras, pois que o acidente, segundo as suas palavras, terá ocorrido a dois metros do passeio, talvez a um metro e meio, sem que o depoente se tivesse apercebido do início da travessia.
Depois porque, é consensual, o trânsito, àquela hora elevado, não permitiria ao veículo circular a velocidade elevada, o que ainda mais descaracteriza a pretendida falta de cuidado da Autora, e faz impender sobre o tripulante do veículo a falta de cuidado com a travessia de peões.
Finalmente, porque não vale esgrimir com o facto de o acidente se ter verificado em cima da passadeira ou ligeiramente à frente desta, porque o acidente de que nos ocupamos ocorreu ou dentro da passadeira ou na zona em que era previsível a um condutor avisado que se dirigissem peões para travessia, independentemente de o fazerem no rigoroso local da passadeira ou um pouco à frente – de resto, também se não provou que o VV se haja imobilizado no exacto local do acidente, sendo certo que a participação policial situa a imobilização do veículo a três metros da passadeira, e sabe-se como a travagem, por menor que seja a velocidade, não é instantânea, independentemente dos rastos de travagem existirem, ou não, no local.
De resto, as consequências do acidente, designadamente ao nível da cabeça da sinistrada e a queda para a direita do veículo (dois metros à frente, segundo o condutor E…………), o respectivo estado de inconsciência imediato ao acidente, não indiciam que o VV seguisse “quase parado” ou a velocidade compatível com uma fila de trânsito, em suave pára-arranca, como poderá resultar de uma leitura indevida ou apressada da resposta ao quesito 30º (isto pese embora poder o condutor ter engatada a 1ª velocidade, segundo declarou, e se aceita), caso esse em que as consequências seriam seguramente menores.
Mantém-se assim a resposta antes dada ao quesito 32º.
Quanto ao quesito 29º, nele se perguntava se “a autora irá necessitar de ser submetida a novas intervenções cirúrgicas, sessões de fisioterapia, tratamentos e medicamentos, tendo de suportar as inerentes despesas”.
Foi respondido “provado que a Autora recebeu alta da consulta de ortopedia, em 20 de Março de 2007, data da consolidação médica das lesões sofridas (relatório de fls. 187 e 190)”.
Pretende-se agora que a resposta seja “provado que, em consequência das lesões derivadas do acidente dos autos, a autora depende de medicação analgésica e ansiolítica, tendo de suportar os inerentes custos dessa medicação”.
Pensamos que a resposta dada se mostra conscienciosa e reflecte o bem fundado da perícia médico-legal dos autos, posto que não foram produzidos depoimentos testemunhais conclusivos, a esse propósito (nem sequer o depoimento do marido da Autora).
E, se bem se observar, a pretensão da Autora encontra-se já consagrada na resposta ao quesito 17º, não objecto de impugnação por qualquer das partes (do seguinte teor – “provado que a Autora continua a sofrer de dores e a necessitar de medicação analgésica e ansiolítica”).
Como assim, mantemos na íntegra, também a resposta dada em 1ª instância ao quesito 29º.
II
Segundo a lei portuguesa, o dano patrimonial é representado pela diferença entre a situação real actual da vítima e a situação hipotética em que se encontraria, caso não houvesse sofrido o dano – artº 566º nº2 CCiv.
Na fixação da indemnização pode o Tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (liquidação em execução de sentença).
Entre os danos futuros figuram, no caso dos autos, os danos patrimoniais derivados para a Autora da necessidade de apoio, em todos os actos de vida diária, de uma terceira pessoa, contratada e remunerada para o efeito.
Incidindo este dano sobre a necessidade de aquisição ou produção de rendimentos, por parte do lesada, pode ser ressarcido atribuindo um capital a pagar de imediato e antecipadamente, mas que, por um lado, produza rendimentos, por outro, se venha a esgotar no final da vida da lesada (“vida da lesada”, e não apenas a respectiva “vida activa”, pois o acompanhamento referido se manterá durante toda a vida da lesada, consoante apurado no processo).
O cálculo do dano não pode dispensar o recurso à equidade, conforme disposto no artº 566º nº3 CCiv. A ser de outro modo, tratar-se-ia no caso de um puro problema técnico-contabilístico que os tribunais não concorreriam para resolver.
Todavia, justifica-se que se parta de uma base técnico-contabilística, para após corrigir o capital obtido, fazendo apelo à fundamental equidade.
Para tal, deve figurar-se o id quod plerumque accidit – a duração normal previsível de vida (tomando por base a expectativa média de vida das mulheres em Portugal, pelos dados mais recentes – 78 anos), a idade da Autora, à data da proposição da acção (56 anos), e a flutuação do valor do dinheiro, tendo em conta o tempo durante o qual o capital entregue deveria ser despendido (até ao final da vida da lesada) – ut S.T.J. 25/6/02 Col.II-128; desta forma, meras tabelas financeiras só por si não logram aproximar-se da realidade indemnizatória e necessitam de ser corrigidas, para mais ou para menos, em função de eventos que, sendo previsíveis, encontram nas fórmulas matemáticas uma tradução redutora (note-se que, sendo a equidade o critério legal, o Tribunal não está de todo reduzido à expressão indemnizatória das fórmulas matemáticas – S.T.J. 11/3/97 Bol.465-537 – mas pode recorrer a elas como fórmula de valor meramente auxiliar – S.T.J. 25/6/02 cit.).
Assim, nesta ordem de ideias, diversas decisões jurisprudenciais recorreram a fórmulas matemáticas que explicitaram no respectivo texto (veja-se, S.T.J. 4/2/93 Col.I-128, S.T.J. 5/5/94 Col.II-86 ou Ac.R.C. 4/4/95 Col.II-23).
Mais recentemente, a Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, em consagração do anteriormente previsto designadamente no D.-L. nº 291/2007 de 21 de Agosto, consagrou tabelas que, como salienta o preâmbulo do diploma, “não visam a fixação definitiva de valores indemnizatórios, mas, nos termos do nº3 do artº 39º D.-L. nº 291/2007 de 21 de Agosto, estabelecer um conjunto de regras e princípios que permitam agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando ainda que a autoridade de supervisão possa avaliar, com grande objectividade, a razoabilidade das propostas apresentadas”.
Neste particular, pensamos de particular actualidade a doutrina do Ac.S.T.J. 28/10/92 Bol.420/544, no sentido de que “na determinação da perda da capacidade de ganho, deve ser considerada como perda a 100% a existência de uma incapacidade permanente que, embora fixada em 65% para o trabalho em geral, se traduza na perda de um braço, relativamente a ofendido que, com ela, fique absolutamente incapacitado de exercer a sua profissão específica e não tenha condições para se reconverter a outra actividade profissional”.
Esse é precisamente o caso dos autos, por via, designadamente, do que decorre da resposta ao quesito 23º.
Vejamos assim.
À data da sentença, possuía a Autora 54 anos de idade – nascida em 17/3/54, sentença de 8/7/2008.
Ora, multiplicando o salário anual comprovado da Autora (€ 495 x 12 meses, no total de € 5 940), pelo coeficiente equivalente a 16 anos de vida activa, constante do anexo III da Portaria citada (12,988887), obtém-se o total de € 77 154.
Poderemos recorrer também aos coeficientes de capitalização pensados para uma actualização (taxa de juro) de 4%, compensada porém, a favor da Autora, pela consideração do incremento médio da renda vitalícia de 2%, v.g., por progressões profissionais ou por aumentos directamente originados na inflação (coeficientes adoptados como simples instrumento de trabalho – Mauro Sella, La Quantificazione dei Danni da Sinistri Stradali, Turim, 2005, § 22.b).
Consideraremos o salário total provado (anual) de € 5 940.
Tal valor multiplicado por 11,652, que, nos aludidos coeficientes se reporta 16 anos em que o capital se deverá esgotar, perfaz o total de € 69 212,90.
Igualmente se poderá repristinar o critério achado nos Ac.R.P. 20/5/82 Col.III-209 e Ac.R.C. 13/7/82 Col.IV-48: multiplicando a quantia anual de € 5 940 pelo número de anos (16) que faltariam à lesada para atingir a idade limite da vida activa, atingiríamos € 95 040.
Diminuindo essa quantia de 1/3 do produto da mesma, atingiríamos a quantia de cerca de € 63 360.
Mas diminuído de ¼, já o referido montante atingiria € 71 280.
Olhemos agora à fórmula matemática sugerida pelo Ac.S.T.J. 5/5/94 Col. II-86.
A fórmula a utilizar como elemento de trabalho será:
N -N
C = P x ((1/i-(1 + i)/((1 + i) x i)) + P x (1 + i)
onde C será o capital a depositar, P a prestação a pagar anualmente, i a taxa de juro e N o número de anos em que a prestação se manterá.
Ou ainda à fórmula matemática sugerida pelo Ac.R.C. 4/4/95 Col.II/23, que, partindo da fórmula anterior, complementa-a com estoutra:
i = ( 1 + r / 1 + k ) - 1
em que r representa a taxa de juro nominal líquida das aplicações financeiras (na actualidade, 4% líquidos máximos, média estimada, face à liberalização do mercado financeiro, e sobretudo se considerarmos aplicações que se irão consumindo necessariamente com o tempo) e k a taxa anual de crescimento da prestação a pagar no primeiro ano (englobando a inflação – 2%).
Pela aplicação da dita fórmula do S.T.J. é certo que chegaríamos ao resultado de € 67 031,62, figurando 16 anos para o pagamento de capital.
Tudo considerado, ponderando que sempre haveria que acrescer tal montante daqueloutro a que se refere a fórmula do Ac.R.C. 4/4/95 cit., considerando as prestações à Segurança Social (ignoradas, mas que sempre acrescerão aos encargos da lesada), e considerando, sobre o mais, a esperança de vida da Autora, que pode cifrar-se, para o sexo feminino, em 78 anos, na actualidade, considerando que, mesmo na situação de pensionista, existem, na normalidade da vida, trabalhos e actividades que se desenvolvem e que envolverão esforço necessariamente superior (cf. Mauro Sella, op. cit., § 14.4), temos como mais equilibradamente ressarcindo o prejuízo da Autora a quantia de € 80 000, necessariamente arredondada.
Quanto ao auxílio de uma terceira pessoa para serviços domésticos, e seguindo os mesmos critérios quantitativos e equitativos já supra referenciados, fixamos a quantia em dívida à Autora no montante de € 40 000.
III
Pronunciando-nos agora sobre o dano não patrimonial.
O cálculo respectivo não pode dispensar o recurso à equidade, conforme disposto nos artºs 496º nº3 e 566º nº3 CCiv.
Na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição” (Meneses Cordeiro, O Direito, 122º/272).
Sublinha-se, a propósito da equidade, que:
a) opera, dentro da aplicação do Direito, como um mecanismo de adaptação da lei geral às circunstâncias do caso concreto;
b) só o juiz, e não a lei em abstracto, poderá adaptar a própria lei ao caso concreto;
c) a equidade opera não apenas a respeito de normas jurídicas, mas também no momento de apreciar a prova dos factos (Al. Nieto, El Arbitrio Judicial, Barcelona, 2000, pgs. 234 e 235).
O artº 496º nº3 C.Civ. manda fixar o montante da indemnização pelo dano não patrimonial por forma equitativa, tendo em conta as circunstâncias referidas no artº 494º CCiv., ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, mais levando em conta, em todo o caso, quer os padrões geralmente adoptados na jurisprudência, quer as flutuações do valor da moeda (por todos, S.T.J. 25/6/02 Col.II/128).
Poderemos dizer de outro modo que, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto.
Não poderão todavia deixar de ser equacionados os factores de ponderação do dano levados em conta na sentença em crise, designadamente os demais factos apurados nos autos, pela gravidade que assumiram.
Afigurar-se-ia útil reelencar os factos provados, conforme supra, não fora a respectiva veemência se impor a qualquer repetição.
Ou seja, seguindo uma classificação doutrinal, meramente auxiliar de um raciocínio sobre os padecimentos morais, os autos patenteiam um dano elevado na vertente do “dano moral”, propriamente dito, não tanto com base na incapacidade permanente (25%), mas antes na vertente do “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – grau 5, em 7), na vertente do dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais, a incapacidade para o desempenho da actividade profissional de empregada doméstica que sempre desempenhou; o prejuízo sexual – fixável num grau 3 em 5) e na vertente do dano estético (cicatrizes cirúrgicas visíveis no crâneo, nas pernas e outras, classificáveis num grau 3 em 7), para além das importantes limitações funcionais, que tornam a Autora dependente de terceiro, designadamente para tratar da lida da sua própria casa.
Tais danos consubstanciam-se numa considerável lesão sofrida pela Autora na sua integridade física (as dores físicas e as lesões determinantes da referida incapacidade) e psíquica (os sofrimentos e abalos psicológicos).
Para referirmos apenas alguns exemplos jurisprudenciais recentes, o Ac.S.T.J. 9/12/04 Col.III/137, considerou-se que, para um indivíduo de cerca de 60 anos, portador que ficou de I.P.P. de 50%, era adequada indemnização de € 32 430.
O Ac.S.T.J. 12/7/01 Col.III/27 considerou que “sofrendo o autor lesões por agressão réus a soco, pontapé, navalha e disparo com arma de fogo, que lhe determinaram 175 dias de doença com incapacidade para o trabalho (...), incapacidade total para a vida militar (era 1º cabo pára-quedista), incapacidade para a actividade escolar e prática de exercícios violentos, quando era atleta federado e com títulos nacionais e ibéricos, com 22 anos de idade, deve a indemnização por danos não patrimoniais ser fixada em 8.000.000$00”.
O Ac.S.T.J. 20/11/03 Col.III/149 ponderou que “tendo a Autora ficado em estado de coma e com gravíssimas lesões por todo o corpo e sido submetida a diversas intervenções cirúrgicas, com tratamentos prolongados, e ficando ela com profundas e desfigurantes cicatrizes por todo o corpo e, devido às sequelas de que ficou a padecer, completamente impossibilitada de exercer a sua profissão, será ajustada a verba de Esc. 7.500.000$00 (€ 37 409,84) como compensação dos danos não patrimoniais sofridos”.
Os exemplos doutrinários e jurisprudenciais supra, acrescendo as circunstâncias do caso concreto, mostram que a indemnização pelo dano não patrimonial do Autor, que foi fixado, na sentença recorrida, em € 45 000 se houve dentro dos parâmetros habitualmente utilizados em decisões judiciais, merecendo assim integral adesão.
IV
Quanto à questão do momento a partir do qual se devem passar a contar os juros de mora, a partir do momento da decisão proferida em 1ª instância, não oferece qualquer reparo o teor da decisão recorrida, que recolhe a lei e a melhor doutrina – cf. artº 566º nº2 2ª parte C.Civ., Ac.JurispªS.T.J. 4/2002 in D.R. Is. 27/6/02, e, entre outros, Calvão da Silva, Revista Decana, 134º/112, em anotação concordante ao Ac.S.T.J. 1/3/01 (relator: Neves Ribeiro) – posto que, quer na decisão recorrida, quer na data do presente acórdão, sempre nos reportamos à data da sentença.
Todavia, já apresenta fundamento o recurso quanto ao dano emergente resultante do pagamento de sessões de fisioterapia (€ 1 205,20 – q. 18º) e do pagamento de medicamentos e fraldas (€ 66,92 – q. 25º); apresenta também fundamento o mesmo recurso, no que concerne o pedido de liquidação em execução de sentença quanto a despesas medicamentosas futuras, com base na resposta dada ao quesito 17º.
Também tem razão a Recorrente seguradora quanto ao pagamento das quantias a título de arbitramento de reparação provisória – tais quantias devem ser abatidas na indemnização global (cf. artº 403º nº3 C.P.Civ. e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma, IV/§ 48.6).

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – Na determinação da perda da capacidade de ganho, deve ser considerada como perda a 100% a existência de uma incapacidade permanente que, embora fixada em 25% para o trabalho em geral, se traduza, relativamente à ofendida, na absoluta incapacidade de exercer a sua profissão específica e quando não tenha condições para se reconverter a outra actividade profissional.
II – A Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, em consagração do previsto no D.-L. nº 291/2007 de 21 de Agosto, consagrou tabelas que não visam a fixação definitiva de valores indemnizatórios, mas, nos termos do nº3 do artº 39º D.-L. nº 291/2007 de 21 de Agosto, estabelecer um conjunto de regras e princípios que permitam agilizar a apresentação de propostas razoáveis por parte das entidades seguradoras.
III – Ainda que a vida activa se deva considerar prolongar-se até aos 70 anos, deve ser indemnizada a perda da capacidade de ganho, ou capacidade de trabalho, quanto àquelas das tarefas, trabalhos e actividades que se desenvolvem até ao final da vida efectiva provável da lesada e que envolverão esforço necessariamente superior.
IV – Tendo a lesada 54 anos de idade, à data da prolação da sentença de 1ª instância, uma incapacidade geral para o trabalho de 25% e uma incapacidade total para o seu trabalho habitual, justifica-se a atribuição de uma indemnização à Autora de € 80 000, a título de perda de capacidade de ganho futuro, € 40 000, quanto ao auxílio futuro de uma terceira pessoa para serviços domésticos, e uma quantia de € 45 000, a título de dano não patrimonial.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar parcialmente procedentes, por provados, os recursos interpostos pela Autora e pela Ré Tranquilidade e condenar agora a Ré a pagar à Autora o montante global de € 181 617,12, sem prejuízo da condenação da Ré em juros já decidida, quantia essa acrescida da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença relativa a medicação analgésica e ansiolítica, total esse ao qual deverá ser deduzida a totalidade da quantia entretanto paga pela Ré à Autora, a título de arbitramento de reparação provisória.
Custas em ambas as instâncias por Autora e Ré, na proporção de vencido e sem prejuízo do Apoio Judiciário concedido.

Porto, 31/III/09
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa