Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0641683
Nº Convencional: JTRP00039434
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: PROVAS
PROIBIÇÃO DE PROVA
EXAMES
Nº do Documento: RP200609130641683
Data do Acordão: 09/13/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 229 - FLS. 69.
Área Temática: .
Sumário: Não constitui prova proibida o resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido, no inquérito, por decisão do Ministério Público.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal da Relação do Porto:

I – Relatório:

I – 1.) Inconformados com o despacho proferido a fls. 1068 a 1078 nos autos com o NUIPC …../00.0JAPRT, em que a Sr.ª Juiz de Instrução Criminal do Porto julgou “improcedente a nulidade invocada e consequente proibição da valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido B…….. e ainda a efectuar ao restantes arguidos (em que se incluem os ora impetrantes), e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo Exm.º Magistrado do Mº.P.º titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal”, recorrem os arguidos C…… e D…… para esta Relação, sustentando em seu apoio as seguintes conclusões:

1.ª - No direito português vigente, por falta de lei expressa, só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de ADN;

2.ª - Uma vez que os recorrentes manifestaram a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita, é manifestamente ilegal e até criminalmente ilícita a sua realização coactiva, por manifesta falta do indispensável suporte legal - lacuna essa que o intérprete e aplicador da lei não estão, por si, legitimados a colmatar; questão que devia conhecer, e sobre a qual o tribunal recorrido não se pronunciou sendo portanto tal despacho nulo nos termos do art. 379.º, n.º1, al. c), do C.P.P.

3.ª - Dever-se-ia ter reconhecido e declarado a ilegalidade de tal mandado e posterior despacho quanto à sobredita colheita, nos termos em que está configurada com todas as legais consequências, a começar pela proibição absoluta de valoração da(s) prova(s) assim obtida(s) por em manifesta violação do disposto, entre outros, no art. 25.º, n.º 1, da CRP;

4.ª - Decidindo de forma diversa, o Exm.º Juíz a quo violou, entre outras, as normas contidas nos art.ºs 25.º, 26.º, n.º 1, e 32º, n.º 8, todos da CRP, o art. 8.º da CEDH, o art. 12.º da DUDH, o art. 17.º do PIDCP e os art.ºs 126.º, n.º 1 e 2 al.ªs a) e c) e 3, bem como o art. 172.º, n.º 1, ambos do C.P.P.;

5.ª - De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade a norma do art. 172.º, n.º 1, do C.P.P., interpretada no sentido de possibilitar ao M.º P.º ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;

6.ª - Da mesma forma que seria igualmente inconstitucional a norma do art. 126.º, n.ºs 1, 2 al.ªs a) e c) e 3, do C.P.P, quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita efectuada nos moldes descritos na conclusão anterior.

7.ª - É que dada ser esta matéria das restrições aos direitos, liberdades e garantias está sujeita à reserva de lei formal e material,

8.ª - Ou seja os direitos, liberdades e garantias não podem ser restringidos senão por via de lei;

9.ª - E só podem ser regulados por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei governamental autorizado por aquele órgão legislativo, nos termos dos artigos 167.º e 168.º, n.º 1, al. b), da CRP.

10.ª - Garantindo-se assim que os direitos, liberdades e garantias não ficam à disposição do poder regulamentar da administração e que o seu regime há-de ser definido pelo próprio órgão representativo, e não pelo governo, e muito menos pelas entidades públicas dotadas de poder de auto-regulação;

11.ª - Ou seja, nesta matéria não há lugar para regulamentos autónomos ou interpretações extensivas ou inventivas (art. 115.º CRP).

12.ª - Porque se inserem tais questões no âmbito consagrado nos preceitos constitucionais relativos a direitos, liberdades e garantias.

13.ª - São inconstitucionais as leis e despachos - dentro do qual o recorrido é - que infrinjam os ditos preceitos constitucionais, 18.º, 19.º, 29.º, 168.º, n.º 1, 282.º, n.º 3, todos da C.R.P.

14.ª - O que se requer seja superiormente declarado.

I – 2.) Na sua resposta, o Digno magistrado do Ministério Público após ter suscitado a questão prévia da admissibilidade do recurso, alinhou por seu turno as seguintes conclusões:

1.ª - A intervenção do juiz de instrução, na fase de inquérito, está circunscrita ao taxativamente fixado nas normas dos art. 268.º e 269.º, ambos do CPP.

2.ª - Assim, na fase de inquérito, não compete o juiz conhecer de nulidades suscitadas, quer pelo arguido, quer pelo assistente.

3.ª - Sendo o Ministério Público, na fase de inquérito, livre de realizar quaisquer diligências de prova, com vista ao exercício da acção penal e orientadas segundo o princípio da legalidade, a decisão que tomar sobre o curso da investigação não é passível de ser sindicada durante o inquérito pelo juiz, sob pena de vulneração dos princípios da oficialidade e do acusatório.

4.ª - Não sendo os actos do Ministério Público susceptíveis de recurso e não podendo o juiz apreciar, durante o inquérito, a legalidade do corpo de diligências que compõem o inquérito, nem o arguido nem o assistente têm legitimidade para recorrer do despacho judicial que indevidamente se pronunciou sobre a legalidade da actividade investigatória desenvolvida pelo Ministério Público.

5.ª - Neste termos, o presente recurso não é legalmente admissível, e a circunstância de ter sido admitido não vincula o Tribunal ad quem, que dele não deverá tomar conhecimento - art. 414.º n.ºs 2 e 3 e 420.º n.º 2, ambos do CPP.

6.ª - Os exames representam providências cautelares para que se fixe em auto os vestígios e os indícios ou se permita ao tribunal a observação directa dos factos que relevem em matéria de prova, podendo ter como objecto pessoas, coisas ou locais.

7.ª - Constituindo os exames, meio de obtenção de prova, o arguido, mesmo sendo sujeito processual, dotado de direitos e deveres, é, também, objecto de investigação, pelo que é obrigado a eles sujeitar-se, sem necessidade da sua concordância prévia.

8.ª - A recolha de saliva através de zaragatoa bucal não implica qualquer ofensa à integridade física do agente (arguido), visto que não acarreta qualquer prejuízo significativo no seu bem-estar físico, nem põe em causa o normal funcionamento das suas funções corporais.

9.ª - De qualquer forma, ainda que se perfectibilizasse ofensa à integridade física do sujeito submetido a tal exame, a restrição da protecção de tal direito estaria justificada pela necessidade de concretização do ius puniendi do Estado.

10.ª - O art. 263.º, n.º 1, do CPP, que atribui competência ao Ministério Público para a direcção do inquérito, não está ferido de inconstitucionalidade.

11.ª - No âmbito do inquérito, na prossecução do interesse público da segurança e investigação criminal eficaz o MP procede, dentro do quadro da legalidade e objectividade, às diligências adequadas à decisão sobre o exercício da acção penal e soluções alternativas.

12.ª - A determinação, na fase de inquérito, de realização de recolha de amostras biológicas - zaragatoa bucal - aos arguidos, para comparação com outros vestígios biológicos, é da competência do MP e constitui, simultaneamente, diligencia fundamental e imprescindível para a descoberta do (s) agente (s) do dos crimes em investigação - duplo homicídio doloso - pelo que não se revela desajustada e desproporcionada com a finalidade da investigação.

13.ª - Em consequência, o exame em questão é meio legal de prova e pode ser valorado como tal.

14.ª - O despacho judicial que julgou simultaneamente julgou inverificada a alegada nulidade do despacho do MP e a consequente não proibição de valoração como prova, do predito exame e seu resultado, não vulnerou o disposto nos art. 25.º, 26.º n.º 1 e 32.º n.º 8, da CRP; as normas dos art. 126.° n.ºs 1 e 2, als. a) a c) e n.º 3 e 172.° n.º 1, estes do CPP.

15.ª - Tal despacho violou, isso sim, pelo menos, as normas dos art. 262.º n.º 1, 263.º n.ºs 1 e 2 e, a contrario, os art. 268.º e 269.º, todos do CPP.

16.ª – Termos em que se pede:

- que o Tribunal ad quem não tome conhecimento do recurso, por inexistência de fundamento legal para o mesmo;
- na pior das hipóteses, que confirme o despacho judicial «recorrido».

III – 1.) Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto, teve vista do processo.
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Seguiram-se os vistos dos Exm.ºs Sr.s Desembargadores que comparticipam na decisão.
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Teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir:

III – 2.) Deixando de lado aspectos colaterais ao real objecto do recurso, traduzidos, por exemplo, numa menos correcta identificação do despacho que se visa impugnar, a sua definição essencial incide na legalidade e constitucionalidade da decisão do Ministério Público, em inquérito, de sujeitar os recorrentes a “exame”, traduzido na recolha de saliva para definição do seu perfil genético e subsequente comparação com vestígios biológicos encontrados no local onde se verificou um determinado homicídio, a fim de assegurar o desenvolvimento da sua investigação.
Na respectiva resposta, introduz-se, no entanto, a questão da própria admissibilidade do recurso.

III – 2.) Vejamos no entanto, primeiro, as partes mais significativas do despacho de que se recorre:

“(…)
Respeitam os presentes autos à investigação, entre outros, da prática de factos susceptíveis de integrar dois crimes de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 c), f) e i) do Cód. Penal.
No local onde ocorreram os homicídios foram recolhidos vestígios biológicos, sendo eles ou alguns deles, pertencentes ao(s) autor(es) de tais crimes.
No decurso da investigação, em face da falta de testemunhas presenciais daqueles homicídios, decidiu o MºPº ordenar a prova por meio de exames à pessoa dos suspeitos entretanto constituídos como arguidos, com vista à colheita de vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente comparação com os dos vestígios biológicos encontrados no local dos crimes.
Verifica-se do exame dos autos que tais exames, já ordenados em Maio do corrente ano, não lograram efectuar-se nas datas sucessivamente fixadas para o efeito pelas mais diversas razões: ou porque os arguidos entenderam ser o despacho que o ordenou ilegível e apesar de posteriormente dactilografado o consideram ilegal e se recusaram submeter-se ao exame, ou porque a ele faltaram por motivo de doença, ou porque se encontravam ausentes e não era possível a sua notificação - cfr. fls. 638 a 640, 822, 838 a 948, 955 e 965 a 970.

Só em 20 de Setembro de 2005 se conseguiu efectuar o predito exame apenas ao arguido B……., o qual no acto, declarou não ser sua vontade sujeitar-se a tal exame, pese embora a fls. 974 tivesse afirmado “estar inteiramente disposto a submeter-se à prova de ADN".
Em 19 de Setembro de 2005, o mesmo arguido apresentou o requerimento de fls. 986 e segs., afirmando não se disponibilizar para colaborar ou permitir a pretendida colheita e invocando a ilegalidade da sua concretização por via coactiva.
Juntou ainda uma «opinião/consulta» subscrita pelo Exm. Sr. Prof. Manuel da Costa Andrade sobre a legalidade ou ilegalidade da imposição coactiva do arguido no processo penal à análise de ADN - cfr. fls. 992 a 996.
Os arguidos D……. e C…… no mesmo dia 19/9/2005 reiteraram o alegado pelo arguido B……. - cfr. fls.992 a 1026.
A fls. 1028 e segs. veio o arguido B……. requerer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade e consequente proibição absoluta de valoração da prova obtida através da sujeição coactiva do arguido à colheita da saliva através de zaragatoa realizada no I.M.L. do Porto efectuada no dia 20/9/2005.
A fls. 1000 e 1001, 1005 a 1007, vieram os arguidos D…… e C……, respectivamente, requer a este tribunal o reconhecimento e declaração da violação da legalidade do despacho do MOPO que ordenou a sujeição coactiva dos arguidos à colheita de amostra biológica para tipificação de ADN.
*
Por último, a fls. 1045 e segs. veio o arguido B…… reiterar o pedido efectuado a fls. l028 e segs. Requerendo ainda a este Tribunal que ordene a instauração de procedimento criminal contra todos os que ordenaram, efectuaram e colaboraram ou de qualquer forma participaram na colheita de saliva ao arguido, por entender ter sido praticado o crime p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1 do Cód. Penal.
Cumpre decidir.
Desde já começamos por adiantar que, pese embora o muito respeito que nos merece quem perfilha de opinião contrária, entendemos não assistir qualquer razão aos arguidos.
É consabido que o nosso processo penal é um processo de estrutura basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.
O art. 32º nº 5 da C.R.P. consagra como princípio fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que "o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório ", ao qual, é inerente o princípio do contraditório.
E no nº 1 do mesmo art. 32º da C.R.P. prescreve-se que "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa (...)".
O sistema de estrutura acusatória caracteriza-se (entre outros aspectos que para o caso dos autos não interessam chamar à colação) pela parificação do posicionamento jurídico entre a acusação e a defesa em todos os actos jurisdicionais, configurando-se o arguido como um sujeito processual que tem intervenção em todas as fases do processo, inclusive na fase do inquérito, embora nesta fase processual muito mais limitada do que na instrução e julgamento, porquanto o inquérito tem uma estrutura predominantemente inquisitória.
Conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias o "(...) Afirmar-se (...) que o arguido é sujeito e não objecto do processo significa (...) ter de assegurar àquele uma posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal”.
Isto significa que, se ao arguido, é imputado um conjunto de factos que podem originar responsabilidade por uma infracção penal, certo é também que lhe é garantido o contraditório, ou seja, a possibilidade de o arguido questionar ou negar esses factos e seu enquadramento jurídico.
Neste sentido decidiu o Ac. do Trib. Constitucional no Acórdão nº 172/92 de 6 de Maio dizendo: "O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo (...).
Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório (...) ".
Assim, porque o direito processual penal é direito constitucional aplicado, no C.P.P. existem normas que garantem ao arguido esta paridade de posicionamento com o M.ºPº, para poder elidir ou enfraquecer as provas recolhidas oficiosamente pela acusação e pelos órgãos de polícia criminal, não obstante estas entidades se orientarem apenas para a descoberta da verdade, instruindo a favor e contra o suspeito.
Aliás, afirma o Prof. Manuel da Costa Andrade que "(...) o Ministério Público é entre nós pacificamente encarado como um órgão da administração da justiça cuja actuação deve subordinar-se a estritos critérios de legalidade e objectividade. E a que, nos termos do nº 1 do arfo 53º do CPP, cabe «colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade".
E citando o Prof. Figueiredo Dias, transcreve um pequeno trecho do seu estudo"Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal", in O Novo Código do Processo Penal, CEJ, pág. 25: "Dada a condicional intenção de verdade e justiça (...) que preside à intervenção do Ministério Público no processo penal, torna-se claro que a sua atitude não é a de interessado na acusação, antes obedece a critérios de estrita legalidade e objectividade".
Dispõe o art. 272º nº 1 do C.P.P.:
"Correndo inquérito contra pessoa determinada, é obrigatório interrogá-la como arguido. Cessa a obrigatoriedade quando não for possível a notificação".
E o art. 58º nº 1 a) do C.P.P. estabelece:
"(...) é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal".
Por sua vez o art. 61º nº 1 do C.P.P. enumera (embora não exaustivamente), um conjunto de direitos de que o arguido goza.
Ao impor, a lei, o interrogatório do suspeito como arguido, pretende o dar-se a este conhecimento imediato da existência do processo contra si instaurado, para que o arguido fique em condições de, tempestiva e mais eficazmente, tomar posição sobre os fados que lhe são imputados e requerer a realização das diligências que se lhe afigurem necessárias - art. 61.º nº 1 f) do C.P.P.
Por outro lado, e do ponto de vista do titular da acção penal, o dar-se conhecimento ao arguido de que contra ele corre um inquérito, deve ser feito tão cedo quanto possível, pois pode suceder que o arguido forneça elementos de prova para o processo que facilitem o esclarecimento da notícia do crime, nomeadamente apresentando provas que permitam excluir, desde logo, a sua eventual responsabilidade, evitando-se dessa forma um inquérito inútil.
Neste sentido decidiu ainda o Ac. da R.P. de 12/6/2002, no proc. Nº 362/02, afirmando que "(…) Consequência da estrutura acusatória do processo penal - art. 32º nº 5 da C.R.P. - é o princípio da igualdade de oportunidades ou igualdade de armas. O processo deve estar estruturado em termos que permitam que a acusação e a defesa disponham de idênticas possibilidades para intervir no processo, para demonstrarem perante o tribunal a validade das suas alegações".
Por isso todas as exposições, memoriais e requerimentos do arguido devem ser sempre integrados nos autos - cfr. art. 98º nº 1 do C.P.P. - embora os requerimentos de diligências não sejam vinculativos para o MºPº, que só ordena a realização das que entender necessárias - art. 267.º do C.P.P.
Porém, entende o arguido B…… que a realização coactiva do exame para colheita de saliva por forma a determinar o seu perfil genético a que foi sujeito, "integra a prática do crime p. e p. pelo art. 143.º nº 1 do C.P.P. por todos os que o ordenaram, o realizaram e nele de qualquer forma participaram" e os restantes arguidos, a declaração de nulidade do despacho do MºP.º que determinou a realização de idêntico exame a eles referente.
É certo que a C.R.P. estabelece no art. 25º nº 1 que "A integridade moral e física das pessoas é inviolável".
Por sua vez o art. 32º nº 8 da Lei fundamental prescreve que "São nulas todas as provas obtidas mediante (...) ofensa da integridade física ou moral da pessoa (…)".
De acordo com tais normas, dispõe o art. 126º do C.P.P.:
"1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante (…) ofensa da integridade física ou moral das pessoas”
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de (...), ofensas corporais (...);
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei, (...) "
A partir das normas que se acabam de citar, cabe a interpretação de que a utilização do arguido enquanto meio de prova no processo penal, está sempre limitada pelo integral respeito pela decisão da sua vontade, ao longo de todo o processo penal, e, no que para o caso dos autos interessa, também na fase do inquérito, pelo que, os arguidos ao não terem dado consentimento para a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, tem como consequência a proibição da valoração como prova, do resultado obtido através da sua análise, nos termos do art. 126º n.ºs 1 e 2 a) e c).
Em anotação ao estabelecido no nº 8 do art. 32º da C.R.P. dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros(s) que “ O que há de novo no nº 8 não é a proibição do uso de meios proibidos na obtenção dos elementos de prova mas essencialmente a utilização das provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas (...); seria intolerável que para realizar a justiça no caso fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei”.
Porém, com todo o respeito por quem sufraga opinião contrária, em nossa muito modesta opinião, não é aquela a interpretação que o legislador pretendeu fazer-se quando incluiu no C.P.P. a norma do art. 172 nº 1 que, à primeira vista, parece contradizer o preceituado no art. 126º nºs 1 e 2 a) e c).
De acordo com o C.P.P., o arguido para além dos direitos e deveres consagrados de forma não exaustiva no art. 61º do C.P.P., tem, como todas as pessoas em geral, o dever de colaboração com as autoridades judiciárias para a realização da justiça nomeadamente o dever de se submetera exame – arts. 171 e segs. do C.P.P.
O exame tem por fim fixar documental mente ou permitir a observação directa pelo tribunal de factos relevantes em matéria probatória.
A perícia, por sua vez, consiste num meio de prova em que a percepção ou a apreciação dos factos recolhidos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos - art. 151.º do C.P.P.
Como faz notar o Sr. Prof. Figueiredo Dias, o facto de o arguido ser considerado um sujeito do processo penal "(...) não quer dizer que o arguido não possa, em determinados termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, ser objecto de medidas coactivas e constituir ele próprio um meio de prova. Quer dizer sim, que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de qualquer forma de auto-incriminação, e que, pelo contrário, todos os actos processuais do arguido deverão ser expressão da sua livre personalidade".
Mas haverá que interpretar "cum grano salís" esta afirmação do insigne Professor.
De acordo com a sua lição, o arguido pode constituir meio de prova autónomo no processo penal, quer em sentido material através das declarações que presta sobre os factos, quer em sentido formal na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames.
Nesta perspectiva, os exames têm uma dupla natureza:

- por um lado, "são meio de prova, enquanto neles se faça avultar o juízo que se emite sobre as qualidades ou características de uma pessoa, isto é, enquanto têm primacialmente em vista a sua mais ou menos acentuada natureza de «inspecção» ou «perícia»”;
- por outro lado, "como verdadeiro meio de coacção processual na medida em que a entidade competente que preside à fase processual em causa, pode tornar efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força ".
No actual C.P.P., de acordo com o disposto no art. 60º do C.P.P., “Desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais, sem prejuízo (…) da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei”.

Conforme estatui expressamente o art. 61º nº 3 do C.P.P.: "Recaem em especial sobre o arguido os deveres de sujeitar-se a diligências de prova (...) ordenadas e efectuadas por entidade competente", ou seja, a todas as que se entenderam como necessárias para a descoberta da verdade e a realização da justiça - sendo a regra a da atipicidade das diligências da prova - desde que não estejam proibidas por lei - cfr. art. 125º do C.P.P.
Daí que o arguido possa ter de submeter-se a exame e a perícia - arts. 151º a 171º do C.P.P. - como sucedeu no caso dos autos, ordenada pela autoridade judiciária competente que preside à respectiva fase processual, neste caso, o MºPº.
E tal obrigação vem expressamente prescrita e salvaguardada no art. 172.º nº 1 do C.P.P. “Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame (...) pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente" .
Mas esta sujeição do arguido a submeter-se a diligências de prova, só deverá ser coactivamente imposta, tal como se verifica quanto à aplicação da medida de coacção da prisão preventiva, quando a realização da Justiça não possa alcançar-se através de outras diligências, por forma a não contender-se com a decisão de vontade do arguido por ele livremente tomada e com o facto de a sua intervenção no processo representar um meio de defesa que lhe é atribuído no nosso processo penal.
Daí que o Sr. Prof. Figueiredo Dias tenha considerado o exame, e para o que interessa para o caso dos autos, mutatis mutandis também a subsequente perícia, como “um verdadeiro meio de coacção processual pelo que se o objecto for uma pessoa" (...) esta vê-se constrangida a sofrer ou a suportar uma actividade de investigação sobre si mesma (...) e por isso, as normas que os permitem não poderão de deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos tal como sucede com os restantes meios de coacção, maxime com a prisão preventiva: em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela, a excepção”.
No mesmo sentido afirma Maia Gonçalves que o que no art. 172º do C.P.P. “se dispõe sobre a possibilidade de a autoridade judiciária compelir alguém a sujeitar-se a qualquer exame ou a facultar coisa que deva ser examinada é um dispositivo geral, podendo portanto ser afastado pela aplicação de algum regime especial consagrado na lei. É o caso por exemplo, do condutor que recusa submeter-se à prova para detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias estupefacientes ou psicotrópicas” - cfr. arts. 156º e 157º nºs 1 e 4 do Cód. da Estrada alterado pelo D.L. nº 44/2005 de 25 de Fevereiro.
Para o caso dos autos, a lei não só não afasta a citada regra imposta pelo art. 172º nº 1 do C.P.P., como pelo contrário, estatuiu no art. 43 nº 1 do D.L. nº 11/98 de 24 de Janeiro que "Ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este for necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que seja ordenado pela autoridade judiciária competente nos termos da lei de processo”.
E no art 44º nº 1 do mesmo diploma prescreve que “Qualquer pessoa devidamente convocada pelo responsável do serviço do instituto (...) para a realização de uma perícia tem o dever de comparecer no dia, hora e local designados, sob pena das sanções previstas na lei do processo”.
Certo é, recordemos, que o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão ser ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão preventiva.
No caso sub judício, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e subsidariedade, porquanto não existem testemunhas presencias dos homicídios qualificados em investigação, de que foram vítimas E……. e F……. e, consequentemente, de meios probatórios que permitam a identificação dos seus autores.
Por conseguinte, sem necessidade de mais fundamento ou desenvolvimento, este Tribunal decide julgar improcedente a invocada nulidade e consequente proibição da valoração como prova, do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido B…… e ainda a efectuar aos restantes arguidos, e por conseguinte, ser legal o despacho proferido pelo Exmº Magistrado do MºPº titular do inquérito, que ordenou a realização dos preditos exames à saliva dos arguidos a colher através de zaragatoa bucal.
(…)»

III – 3.1.) Como vimos, o essencial das razões de discordância dos recorrentes tem como alvo “mediato” um despacho do Ministério Público proferido em inquérito a ordenar a realização de zaragatoa bucal para recolha de saliva, a que aqueles não aderiram, quer de facto, emprestando a sua disponibilidade para a respectiva realização, quer de direito, impugnando-a e contestando-a a diversos títulos.

Antes de podermos abordar essa temática, haverá no entanto que apreciar uma outra, atravessada a título prejudicial pelo Senhor magistrado que assegura a resposta ao recurso, já que de um modo mais radical consequência a sua não admissibilidade.

Na base desta posição, está o entendimento perfilhado em como tal despacho não é sindicável pelo juiz de instrução criminal, nos termos em que o foi, já que naquela fase de processo, “fora das situações previstas nos art.ºs 268.º e 269.º do Cód. Proc. Penal, o mesmo não pode conhecer da arguição de nulidades”, donde a respectiva decisão, por maioria de razão, não o dever ser a título de recurso.

Não sofre qualquer contestação, para o que não se torna necessário voltar a citar disposições legais já amiúde referidas nestes autos, que a fase de inquérito no nosso ordenamento processual, está cometido exclusivamente ao Ministério Público, que determinará as diligências reputadas pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não.
Sendo assim naquela fase o “dominus” do processo, como é habitual dizer-se, fácil será compreender que mantenha a iniciativa e o controlo dos actos por si determinados, mesmo numa perspectiva de legalidade, já que alia à sua autonomia como órgão de administração da justiça, uma orientação balizada exactamente por tal princípio (cfr. art. 221.º da CRP e art. 1.º do respectivo estatuto).

A articulação naquela mesma fase com a intervenção do juiz de instrução criminal, entidade que superintende a seguinte, caso requerida, mas que não deixa de naquela poder intervir, já que de acordo com art. 17.º do Cód. Proc. Penal e 59.º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, exerce as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, nos termos prescritos no referido Código, opera-se basicamente em torno dos art.ºs 268.º e 269.º do Cód. Proc. Penal.

Segundo o primeiro, que ostenta exactamente tal epígrafe:

“1. Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos artigos 177.º, n.º 3, 180.º, n.º 1, e 181.º;
d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do artigo 179.º, n.º 3;
e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.”

Os actos contemplados no preceito seguinte como sendo da sua competência exclusiva naquela fase, são os de ordenar ou autorizar:

a) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do art. 177.º;
b) Apreensões de correspondência, nos termos do art. 179.º, n.º 1;
c) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.º e 190.º;
d) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.

III – 3.2.) É claro que, na al. f) do n.º 1, daquele art. 268.º, cabem diversos actos dispersamente prevenidos no Código de Processo em que a intervenção daquele juiz é convocada. Assim, entre outras, a título meramente exemplificativo, a admissão de assistente (art. 68.º, n.º 3), a detenção perante falta injustificada (art. 116.º, n.º 2), as declarações para memória futura (art. 271.º) …
Em qualquer dos casos, a situação ora suscitada não encontra cabimento expresso em nenhum desses actos avulsos especialmente regulados.

Se percorremos as disposições reguladoras do meio de obtenção da prova - exames (art.ºs 171.º a 173.º do Cód. Proc. Penal) - não encontraremos aí, também, qualquer referência a uma autorização a conceder pelo juiz de instrução criminal.

Ora se a esta constatação juntarmos a estruturação acusatória do nosso processo, facilmente se alcançará a confirmação do acerto, em tese geral, da posição assumida pelo Sr. magistrado do Ministério Público.

Parafraseando o Prof. Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal Verbo, III Vol., pág.ª 81 “se a lei confia ao Ministério Público a direcção da investigação, permitindo-lhe dispor quais os actos que entenda necessários à realização da finalidade do inquérito, não se compreenderia que depois submetesse a actividade desenvolvida a fiscalização judicial. O que fica sujeito a fiscalização judicial é a decisão do Ministério Público no termo do inquérito”.
E como se opera?
Precisamente pela instrução, a fase cuja finalidade especifica é exercer tal controlo.

Confira-se, por exemplo, que de harmonia com o disposto no art. 308.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, antes de proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia, o “juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer”.
E nessa conformidade, tendo em vista a aí contemplar, designadamente, as nulidades arguidas no decurso do inquérito, a Jurisprudência autonomizou do art. 310.º do mesmo diploma, um recurso específico de tal segmento da decisão (Assento n.º 6/2000, de 19/01/2000, publicado no DR 1.ª Série, de 07/03/2000) a que inclusive atribuiu “subida imediata” de acordo com o Ac. do STJ n.º 7/204, publicado no DR I.ª Série de 02/12/2004.

Dito por outras palavras, havendo discordância sobre a legalidade de acto praticado na fase inquérito e influindo a mesma na decisão de acusação, deverá o requerente solicitar a abertura da instrução e aí fazer a invocação das razões que entenda pertinente contrapor-lhe.
É essa a sede própria, por exemplo, para discutir-se uma proibição de prova, e por isso mesmo, a sua influência pertinente na demonstração de facto ou factos que importem à responsabilização criminal, não o seu ajuizamento abstracto em função da prática de actos tidos por úteis ou inúteis, matéria de cujo conhecimento aquele obviamente está arredado.
É este o esquema que salvaguarda a separação das fases mencionadas e respeita a autonomia de funções das Magistraturas encarregadas da sua superintendência, em obediência a um quadro de intervenções legal e constitucionalmente bem definidas.

Ou seja, para resumir, na sistemática e coerência do modelo processual actual, não cabe a impugnação avulsa para o juiz de instrução criminal, acto a acto do Ministério Público em inquérito, com fundamento na sua eventual nulidade.

III – 3.3.) Mas se temos este entendimento como seguro para a generalidade das situações, ainda assim é possível encontrar um domínio de excepção onde será possível admitir (mais não seja para melhor poder testá-lo), uma intervenção pontual do juiz de instrução criminal sobre a legalidade das iniciativas processuais assumidas pelo Ministério Público no inquérito: a dos actos “necessários à salvaguarda dos seus direitos fundamentais”.

Tal como refere o Germano Marques da Silva na obra já citada, pág.ª 79/80 “(…) competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais. Para a prática de algum desses actos pode necessitar da intervenção do juiz, quer para os consentir, quer mesmo para os praticar mas só por sua promoção podem ter lugar (o que não é a situação dos autos), a menos que se trate de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais dos requerentes”.
(…)
“Mesmo na interpretação prevalecente e restritiva do art. 32.º, n.º 4, da Constituição é reservada à competência do juiz de instrução a prática dos actos de investigação, ainda que na fase processual do inquérito, que se prendam com os direitos fundamentais”.

Nesta conformidade, e tal como já se decidiu no recurso com o n.º 6541/05, de que este é simétrico, vamos admitir o recurso nesta base, já que também na mesma se situou a intervenção da Sr.ª Juiz de Instrução Criminal.

III – 3.4.) Como acima já deixamos sublinhado, discute-se no presente recurso, essencialmente, a legalidade e constitucionalidade da decisão que determina a submissão dos arguidos a sujeitar-se a exame (colheita de saliva através de zaragatoa bucal), para assegurar uma determinada investigação criminal conexa com dois homicídios de que não existe prova testemunhal, ainda que nesse sentido concorra a recusa daqueles em nela colaborarem voluntariamente.

Estatui o art. 171.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal “que por meio de exames das pessoas (…) inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido”, sendo que o preceito seguinte esclarece, que “se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.”

Não havendo dúvidas que na fase de inquérito tal autoridade é o Ministério Público (art.ºs 263.º, n.º 1 e 267.º do Cód. Proc. Penal) e que entre os deveres específicos decorrentes da situação de arguido se encontra o de “se sujeitar a diligências de prova” (art. 61.º, n.º 3), não é menos verdadeiro que de harmonia com o estabelecido com o art. 126.º do mesmo diploma, “são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante (…) coacção ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas”.

Em todo o caso, até pela unidade do pensamento legislativo que regulamenta toda esta matéria, zonas haverá seguramente onde a obrigação de alguém a submeter-se a um exame não integra coacção, ofensa moral ou à integridade física da mesma, sob pena de outra maneira aquela primeira norma ficar vazia de sentido.

III – 3.5.) É sabido que a nosso ordenamento jurídico prevê “várias situações em que o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal cedem face a interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da saúde pública, quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer noutras áreas.
Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade” (cfr. Ac. da Relação de Coimbra no Recurso n.º 3261/01).

Para além do arresto do Tribunal Constitucional aí mencionado, no Ac. n.º 319/95 do mesmo Tribunal discutia-se o art. 6.º do DL n.º 124/90, de 14 de Abril, ao permitir que a autoridade policial efectue exames na pessoa do arguido (sopro em balão), sem a presença do Ministério Público, concluindo-se que tal disposição não violava o princípio da igualdade, o direito ao bom nome e à reputação, à reserva da intimidade privada, à imagem, destacando-se na sua fundamentação o seguinte trecho:

“A submissão do condutor ao teste de detecção de álcool (e, assim, a norma do artigo 6º, nº 1, que a permite) também não viola o dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor, nem o seu direito ao bom nome e à reputação, nem o direito que ele tem à reserva da intimidade da vida privada.
Desde logo, tais direitos não proíbem a actividade indagatória do Estado, seja ela judicial, seja policial. O que o princípio do Estado de Direito impõe é que o processo (maxime, o processo criminal) se reja "por regras que, respeitando a pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento da verdade" (cf. acórdão nº 128/92, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Julho de 1992).

Ora, o exame para pesquisa de álcool, com o recorte que, nos seus traços essenciais, dele se deixou feito, destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob a influência do álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as dos outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal.”.

No Ac. n.º 161/05, estava em causa a aplicação, a inconstitucionalidade, da norma do n.º 1 do artigo 172.º do Código de Processo Penal (CPP), quando interpretada no sentido de que pode ser ordenada a detenção de arguido, pelo tempo indispensável à realização de exame médico em caso de falta injustificada a diligência anteriormente designada para tal efeito (exame psiquiátrico).

Aí se considerou, designadamente, que “Entre as provas cuja realização no processo penal é admissível, desde logo na fase do inquérito, figuram as provas periciais (cf. art.ºs 151º e ss. do CPP), nelas se contando a perícia psiquiátrica, vocacionada, entre o mais, para determinar se o arguido sofre de estados patológicos do foro mental que o tornem incapaz de se autodeterminar livremente ou seja, se é inimputável criminalmente em razão de qualquer patologia que afecte a sua capacidade de entender, de se decidir e de agir livremente ou em termos racionais (cf. art.ºs 159º, n.º 2, e 351º, do CPP), o que, a acontecer, acarretará que o mesmo não possa ser sujeito de sanções penais.
A prova pericial psiquiátrica pode, deste modo, incidir sobre a própria pessoa do arguido, pelo que a sua produção demanda a sua presença física na respectiva diligência processual e ter lugar logo na fase do inquérito.
A norma em apreciação prende-se com a necessidade de garantir a presença do arguido a esse exame pericial psiquiátrico, tendo a decisão recorrida recusado a sua aplicação por entender que, não obstante o arguido haver faltado injustificadamente aos exames antes marcados ao abrigo do disposto no art.º 273º do CPP e a detenção pedida ser apenas pelo período indispensável à realização do exame médico, a privação da sua liberdade era para ser presente a diligência a ser efectuada sob a presidência e direcção apenas de quem pratica o respectivo acto de exame médico.”

Para se concluir que “não existe dúvida de que é conforme com aquela prescrição constitucional uma norma infraconstitucional que permita a detenção de arguido pelo tempo indispensável à realização da diligência de exame pericial psiquiátrico a levar a cabo na sua pessoa sob a presidência de agente do Ministério Público ou de juiz”, isto depois, de entre o mais se ter sopesado que “Em face daquele princípio - da tipicidade constitucional das medidas privativas ou restritivas da liberdade - o que há então que decidir é a questão de saber se a restrição do direito à liberdade, em situações como a retratada nos autos, se encontra ou não autorizada por aqueles números 2 ou 3 do artigo 27º da Constituição.”

III – 3.6.) Como regra os nossos Comentadores são muito parcos sobre o sentido a conferir àquela compulsão referida no art. 172.º, n.º 1.

Já no domínio da Doutrina, o Prof. Germano Marques da Silva menciona na decorrência da al. c) do n.º 3 do art. 61.º do Cód. Proc. Penal, que “o arguido tem o dever de sujeitar-se a diligências de prova e medidas de coacção e garantia patrimonial”.
“No que às diligências de prova respeita, tem de sujeitar-se a todas as que não forem proibidas por lei (art. 125.º), entre outras, a interrogatório (prova por declarações – art.ºs 140.º e segts.) a acareação (art. 146.º) a reconhecimento (art. 147.º) e reconstituição dos factos (art. 150.º) a perícia e exame (art.ºs 151.º e 171.º) (...)”

E ainda que num domínio processual e constitucional já não vigente, o Prof. Figueiredo Dias ensinava que:

“(...) Na medida, porém, em que o objecto do exame seja uma pessoa, que assim se vê constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigação sobre si mesma, o exame constitui um verdadeiro meio de coacção processual - como claramente o inculca, de resto, a 2ª parte do corpo do art. 178.º do CPP, ao estatuir que, para realização de um exame, pode «o juiz tornar efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força...» -, tendo por isso de submeter-se aos princípios (já acima referidos) que estritamente demarcam a admissibilidade de tais meios e coacção.
Sendo os exames, na parte referida, um meio de coacção processual, as normas que os permitem não poderão deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos, tal como sucede com os restantes meios de coacção, maxime com a prisão preventiva; em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela a excepção. Excepção que, aliás, não deixa de ser constitucionalmente imposta: assegurando o art. 8.º, n.º 1, da Constituição Política a todos os cidadãos o direito à integridade pessoal, quaisquer limitações que a tal direito sejam feitas pela lei ordinária relativa a exames em processo penal terão de obedecer à máxima strictissime sunt interpretanda”.

Todo este tipo de preocupações esteve presente no despacho recorrido ao se ter consignado que “o recurso a tais meios de obtenção da prova só poderão ser ordenados e sobre o arguido impende a consequente obrigação de se sujeitar a eles, tem carácter excepcional, apenas na estrita medida em que se mostrem ineficazes outros meios de prova, devendo observar-se quanto à sua utilização os mesmos princípios que regem a aplicação da medida de coacção da prisão preventiva.
No caso sub judício, verifica-se essa situação de excepção, de necessidade e subsidariedade, porquanto não existem testemunhas presencias dos homicídios qualificados em investigação, de que foram vítimas E……. e F…… e, consequentemente, de meios probatórios que permitam a identificação dos seus autores.”.

III – 3.7.) No fundo, em sede constitucional, a ideia fundamental a retirar nesta matéria, é aquela já assinalada no referido Ac. da Relação de Coimbra, posto que invocando ideia de outro Autor, em como “apenas é ilegítima a restrição dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados em caso de conflito com direitos ou valores da mesma matriz, quando a restrição atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria, sendo certo que mesmo no caso de falta de preceito constitucional que autorize a restrição pela lei pode tal falta ser colmatada pelo recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do n.º 2, do art. 16.º, da Constituição da República.”

Ora como aí também se disse, a “Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art. 29.º permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos valores enunciados: «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade democrática».

Os recorrentes chamam em seu abono, entre outros, o seu direito à integridade física constitucionalmente protegido no art. 25.º (1- A integridade moral e física das pessoas é inviolável 2 – Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos), outros direitos pessoais mencionados no art. 26.º, n.º 1 (A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação), e a garantia do processo criminal contida no art. 32.º, n.º 8, todos da Constituição da República Portuguesa (São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações), sendo que estes, basicamente, preenchem a matriz dos direitos invocados nos demais textos declarativos invocados.

Haverá que ponderar por outro, o interesse comunitário e do Estado na administração da justiça, para que um crime com a gravidade das consequências patenteadas nestes autos, sem mais, fique sem investigação.
Estamos ainda muito longe do estabelecimento de eventuais responsáveis.

Ora naquele vastamente aqui citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, entendeu-se, para além do mais, que a colheita de saliva embora ofendendo o direito à autodeterminação corporal dos recorrentes, o fazia em “grau ou medida desprezível, isto é irrelevante”.
O mesmo sucedeu no acórdão desta Relação de 3 de Maio de 2006, no recuso n.º 6541/05, de que também fomos co-subscritores, e onde em jeito de conclusão se deixou referido:

“Deste modo e tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de Direito, há que concluir que a realização compulsiva daqueles se mostra justificada e legitimada a significar que a decisão impugnada, proferida ao abrigo da norma do art.172º, n.º1, do Código de Processo Penal, que atribui à autoridade judiciária o poder de compelir as pessoas à submissão de exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, não viola os arts. 25.º, n.º 1 (acrescentaríamos 26.º, n.º 1) e 32º, n.º 8, da Constituição da República, na parte em que ordena o exame e perícia mediante extracção de saliva por via de zaragatoa bucal, dado que a mesma apenas é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do(s) recorrente (s) em medida irrelevante.

Sendo este entendimento de manter, igualmente em face do art. 8.º da Convenção Europeia Dos Direitos do Homem, art. 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art. 17.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que no fundo previnem as intromissões “arbitrárias e ilegais” contra a vida privada, família, domicílio correspondência, honra e reputação, nesta conformidade, consideramos não ser de dirigir censura ao despacho recorrido.

IV – Decisão:

Nos termos e com os fundamentos invocados, acorda-se em negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos C…… e D……, confirmando-se a decisão recorrida.

Pelo seu decaimento, ficarão condenados individualmente em 6 (seis) UCs de taxa de justiça (art.ºs 513.º e 514.º, do Cód. Proc. Penal e 87.º, n.º1, al. b), do CCJ).

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1.º signatário.

Porto, 13 de Setembro de 2006
Luís Eduardo Branco de Almeida Gominho
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento