Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3636/10.8TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TELES DE MENEZES
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
NULIDADE DE DELIBERAÇÃO CAMARÁRIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RP201312123636/10.8TBVNG.P1
Data do Acordão: 12/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não há lugar à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide do processo expropriativo, com fundamento em nulidade da deliberação camarária que declarou a utilidade pública e a posse administrativa do prédio objecto da expropriação, por prevalecer o interesse público colectivo, tutelado pelo princípio da intangibilidade da obra pública, e face à impossibilidade da restituição em espécie, restando a fixação do valor correspondente, o que é alcançado através da atribuição da justa indemnização naquele processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 3636/10.8TBVNG.P1 – 3.ª
Teles de Menezes e Melo – n.º 1429
Mário Fernandes
Leonel Serôdio

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
Expropriante: Município ….

Expropriados: B… e C….

A Câmara Municipal …, em Julho de 2008, na sequência da resolução de expropriar tomada na deliberação de 07.07.2008, declarou a utilidade pública da expropriação, com carácter urgente e imediata posse administrativa de quatro parcelas de terreno, entre elas o prédio urbano pertencente a B… e C…, inscrito na matriz sob o art. 3770.º, sito na …, n.ºs ../.., à qual foi atribuído o n.º 2, tendo em vista instalar um teleférico para ligar o … ao … (fls. 6-7 e 32).

Procedeu-se à vistoria ad perpetuam rei memoriam (fls. 56 a 60).

O auto de posse administrativa foi lavrado em 14.10.2008 (fls. 74).

Foi depositada a quantia de € 80.000,00, valor da indemnização apurado previamente pelo expropriante (fls. 90).

Teve lugar a arbitragem, tendo os árbitros fixado o valor da indemnização devida aos expropriados em € 219.450,00 (fls. 107 a 112).

Realizou-se o depósito da diferença entre aquela quantia e esta (fls. 125).

Por despacho de fls. 133 foi adjudicada ao expropriante a propriedade da mencionada parcela e prédio urbano.

O expropriante recorreu da decisão arbitral, pedindo a fixação da indemnização em € 139.784,52.

Os expropriados recorreram também da decisão arbitral, pedindo a fixação da indemnização em € 310.080,00.

Cada uma das partes respondeu ao recurso da outra.

Teve lugar a peritagem, tendo os peritos do Tribunal e do expropriante apresentado laudo conjunto, no qual encontraram o valor indemnizatório de € 163.404,00 (fls. 289 a 297).

Já o perito dos expropriados encontrou o valor por eles pedido no recurso da decisão arbitral (fls. 302 a 315).

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas.

Ambas as partes alegaram.

Em 28.09.2012, o expropriante apresentou o seguinte requerimento (fls. 355v.º e 356):
1 - A DUP que inicialmente deu origem à expropriação em causa nestes autos foi declarada nula por Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, já transitado em julgado, no processo nº 1763/09.3 BEPRT, em que era autora a expropriada C….
2 - A DUP foi declarada nula por o Tribunal ter entendido que a delimitação de uma Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística não permite, sem mais, a expropriação dos terrenos abrangidos, a qual deve sempre ser antecedida da competente Declaração de Utilidade Pública obtida nos termos do Código das Expropriações, contrariando a prática vigente.
3 - Por assim ser, o Tribunal considerou que o acto padecia do vício de incompetência material, por a DUP não ter sido decretada pelo competente órgão governamental. 4 - Como se tratava de um mero vício de forma o Município requereu a Declaração de Utilidade Pública ao Secretário de Estado da Administração Local e Reforma Administrativa.
5 - Em 16 de Agosto de 2012 foi publicada em Diário da República, 2ª Série, a Declaração (extracto) nº 162/2012, contendo a Declaração de Utilidade Pública que veio substituir a primitiva DUP. 6 - O objectivo de ambas as Declarações de Utilidade Pública é o mesmo (construção do teleférico de Vila Nova de Gaia) e as parcelas expropriadas são as mesmas, bem como os interessados na expropriação.
7 - Assim, requer a Vª Exª que nos presentes autos passe a constar que a DUP válida é a agora publicada, sendo iguais os demais elementos da expropriação.

Os expropriados responderam que a substituição de um elemento da causa de pedir inicialmente invocada (a declaração de utilidade pública), implica uma alteração da causa de pedir, à qual não davam o seu acordo, acrescendo que se substituiria um acto declarado nulo por outro igualmente nulo, embora ainda não tenha sido declarada esta nulidade, concluindo pelo indeferimento do requerimento do expropriante (fls. 357 a 361).

Foi proferida sentença, na qual não se tomou posição sobre esta questão, lavrando-se um saneador tabelar, fixando-se a indemnização em € 163.404,00, actualizável após trânsito, com base no índice de preços no consumidor fornecidos pelo INE.

II.
Recorreram os expropriados, concluindo:
1. Consta dos autos, por informação do expropriante, na qual os expropriados convieram, prestada antes da prolação da sentença, que a declaração de utilidade pública que deu origem à expropriação em causa neste processo foi declarada nula, por acórdão do Tribunal Central administrativo Norte, proferido no processo n.º 1763/09.3BEPRT, transitado em julgado.
2. O acto nulo não tem eficácia alguma, pois a nulidade é equiparada nos seus efeitos à inexistência jurídica do acto, ninguém lhe devendo obediência.
3. O acórdão mencionado na concl. 1.ª foi proferido em 25.05.2012, mais de um ano volvido sobre o encerramento, em 03.05.2011, da discussão neste processo.
4. Não podia ser conhecido antes.
5. A declaração de nulidade da declaração de utilidade pública em que se funda a expropriação em causa nestes autos influencia a existência e o conteúdo da relação controvertida, segundo o direito substantivo aplicável, repercute-se na causa de pedir dos recursos da arbitragem e extingue o direito invocado pelos recorrentes – entidade expropriante e expropriados.
6. A sentença não tomou em consideração a declaração de nulidade da declaração de utilidade pública.
7. Assim decidindo violou o disposto nos art.s 524.º/2, 663.º/1 e 287.º-e) do CPC.
8. A não se entender assim, deve a Relação, ao abrigo do art. 713.º/2 do CPC, proferir decisão que considere a declaração de nulidade da declaração de utilidade pública fundante de expropriação e julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Juntaram certidão das decisões proferidas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que declarou nula a deliberação da CM… de 07.07.2008, e do Tribunal Central Administrativo Norte que a confirmou em recurso.

O recorrido pronunciou-se pela inexistência de inutilidade da lide, visto que o objecto do processo é a fixação da indemnização pela expropriação.

III.
A questão a decidir consiste nas consequências da nulidade decretada da deliberação camarária que resolveu expropriar o prédio dos apelantes nos autos.

IV.
Factos considerados provados na sentença:
1 – No auto de vistoria «ad perpetuam rei memoriam» a parcela expropriada é caracterizada da seguinte forma:
a.1 – A parcela n.º 2 é constituída por um prédio urbano, propriedade de B…, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de V. N. de Gaia, sob o art. 3770 e omisso na Conservatória do Reg. Predial de V. N. de Gaia, situando-se na …, n. …, V. N. de Gaia.
b.2 – A área da parcela é de 76,80 m2 de superfície coberta e 54,20 m2 de logradouro, conforme consta da respetiva descrição matricial, e 128 m2 de lote, 95 m2 /piso de área coberta, para um prédio com a área bruta de 285 m 2, distribuídos por 3 pisos.
c.3 – Quanto à natureza da parcela, trata-se de um prédio urbano que se encontra totalmente devoluto, completamente abandonado. d.4 –Prédio afectado na parte da cobertura por um incêndio que recentemente destruiu o imóvel situado à sua ilharga, razão pela qual esta parte da construção já não existe. Possui paredes exteriores em alvenaria de granito rebocadas e pintadas e interiores em tabique também pintadas, os pavimentos em madeira e/ou em mosaico cerâmico sobre estrutura em vigas e barrotes de madeira, tetos em pladur e/ou madeira, caixilharias de madeira e/ou alumínio na parte do r/ch. O alçado lateral direito/poente e parte do posterior já não possuem caixilharias e o lateral direito comporta uma chaminé e um tubo de queda. Os estores foram retirados quer no alçado principal, quer no lateral direito e parte do posterior.
e.5 – A parcela tem acesso a partir de arruamento infraestruturado, com pavimento em calçada à portuguesa, rede de distribuição de energia elétrica, telefone, abastecimento de água e saneamento.
f.6 - O prédio tinha sete arrendatários, cujos montantes de renda se desconhecem.
2 – O prédio gerava, segundo declarações do proprietário do mesmo, um rendimento médio de 750.00 euros.
3 - O PDM de V. N. de Gaia inclui o local em «Zona de Edificabilidade Intensiva», mas com as restrições impostas pela Planta de Condicionantes da Zona Histórica ….

Resulta ainda dos documentos juntos:
- Por acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto de 15.11.2010, foi declarada nula a deliberação da Câmara Municipal … de 07.07.20108, com base no vício de incompetência absoluta.
- A mencionada decisão foi confirmada por acórdão de 25.05.2012 do tribunal Central Administrativo Norte.

V.
Numa primeira abordagem do tema proposto, porque o acto de declaração de utilidade pública, constituindo o elemento-chave da expropriação, é um acto administrativo e está sujeito a recurso contencioso de anulação da competência dos tribunais administrativos, se o acto expropriativo for anulado, extingue-se a "sujeição à expropriação" e desaparece automaticamente o direito "a indemnização como contravalor dos bens a expropriar".
Por isso, se estiver pendente no tribunal comum processo litigioso respeitante ao montante da indemnização, o juiz deve declarar extinta a instância, com a consequência de todos os actos e termos do processo de expropriação litigiosa serem considerados sem efeito, inclusive o despacho do juiz de adjudicação de propriedade dos bens expropriados, mal seja junta a esse processo certidão de sentença de anulação da declaração de utilidade pública (Fernando Alves Correia, op. cit., página 194; J. Oliveira Ascensão, "A Caducidade da Expropriação no Âmbito da Reforma Agrária", página 43; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1983, Boletim 326, página 412)[1].
Deve acentuar-se, como se faz no mencionado acórdão, que, por vezes, sob a aparência de um único acto administrativo, o que existe na realidade são vários actos administrativos.
Apesar de ser um só o autor do acto, de haver unidade de manifestação de vontade, idêntico conteúdo e mesma forma, há tantos actos administrativos quantas as esferas jurídicas dos destinatários directamente modificadas.
Estamos, assim, perante actos contextuais, que são aqueles que, embora reunidos no mesmo texto, conservam, contudo, a sua própria individualidade.
Há actos contextuais, quando vários actos singulares vêm incorporados no mesmo documento como se fossem um só acto.
É o que sucede quando as declarações de utilidade pública de expropriação de prédios diversos, pertencentes a proprietários distintos, constam do mesmo "despacho" (Rogério Soares, "Direito Administrativo", 1978, página 168; e Mário Esteves de Oliveira, P. Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, "Código do Procedimento Administrativo - Comentado", 2. edição, 1997, páginas 565/566).
Porque se trata de vários actos singulares, formalmente unificados, é compreensível que o comportamento de cada um dos seus destinatários possa não ser uniforme e que, por conseguinte, cada um dos actos possa ter diferente sorte: uns poderão firmar-se na ordem jurídica (v.g. por falta ou por extemporânea interposição de recurso contencioso ou por desistência deste), ao passo que outros poderão ser anulados por sentença.
Sendo os actos administrativos contextuais actos autónomos, entre si, "é evidente que cada um deles pode padecer de vícios próprios, mas também podem estar afectados de ilegalidade que afecte a todos - sendo impugnáveis isolada ou cumulativamente pelos vários destinatários consoante os casos".
Havendo impugnação isolada, a sentença anulatória (mesmo que venha fundada em vício comum) só aproveita ao recorrente (Mário Esteves de Oliveira..., op. e loc. cits.)[2].

É o que se passa nestes autos, nos quais a deliberação camarária de expropriar se reporta a quatro proprietários, conforme resulta de fls. 6-7, apenas havendo notícia de o acto ter sido impugnado contenciosamente, junto dos tribunais administrativos, pela expropriada.
O que significa que o acto, se não foi impugnado pelos demais, continua válido para eles.

Mas passemos à segunda abordagem do tema.
Encontramo-la no acórdão desta Relação de 29.10.2012[3], que seguiremos de perto, por se afigurar adequado à nossa situação.
O acto administrativo que esteve na génese do processo expropriativo (deliberação camarária de 07.07.2008, que decidiu “aprovar a expropriação por utilidade pública com carácter urgente das parcelas de terreno necessárias ao teleférico na zona histórica de …) é nulo, ao menos no que se refere ao prédio dos expropriados, porque tal foi declarado por acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 15.11.2010, com fundamento no vício de incompetência absoluta, confirmado por acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 16.12.2011.
Como consequência da declaração de nulidade, o acto é ineficaz desde o início, sendo tal vício insanável[4].
Tem-se questionado na doutrina, qual o efeito da declaração de utilidade pública, nomeadamente se da mesma decorre, desde logo, a aquisição dos bens ou direitos pelo beneficiário da expropriação[5].
Para Oliveira Ascensão, o efeito da declaração de utilidade pública é tecnicamente a sujeição à expropriação, “os bens ficam onerados em termos reais, sendo o titular impotente para evitar a actuação potestativa por parte dos órgãos públicos”. Dela não resulta a expropriação mas a sujeição à expropriação: “a expropriação só surgirá no termo do processo expropriatório”[6].
Dispõe o n.º 5 do artigo 51.º do CExp. que: Depois de devidamente instruído o processo e de efectuado o depósito nos termos dos números anteriores, o juiz, no prazo de 10 dias, adjudica à entidade expropriante a propriedade e posse, salvo, quanto a esta, se já houver posse administrativa, e ordena simultaneamente a notificação do seu despacho, da decisão arbitral e de todos os elementos apresentados pelos árbitros, à entidade expropriante e aos expropriados e demais interessados, com indicação, quanto a estes, do montante depositado e da faculdade de interposição de recurso a que se refere o artigo 52º.
É deste despacho de adjudicação que advém a aquisição originária da propriedade por banda do expropriante.
Sendo um acto consequente, foi praticado ou dotado de certo conteúdo em virtude da prática de um acto anterior, de tal modo que sem o acto antecedente não podia ter sido praticado ou, pelo menos, não podia ter sido praticado com o conteúdo que lhe foi dado[7].
O art. 133.º/2-i) do Código de Procedimento Administrativo fere de nulidade Os actos consequentes de actos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contra-interessados com interesse legítimo na manutenção do acto consequente.
Em anotação a este normativo, escrevem Mário Esteves de Oliveira e outros que “Tem de aplaudir-se a excepção legalmente estabelecida - nos casos em que o acto consequente é (seria) nulo - nesta alínea i) do art. 132.º, n.º 2: se existirem contra-interessados com interesse legítimo na sua manutenção, põe-se dúvidas quanto a saber se o acto passa, então, a ser anulável (e apenas desapareceu a automaticidade da sanção da nulidade) ou se deixa, mesmo, de ser inválido e deve ser mantido. É esta, naturalmente, a boa solução”[8].
Desenvolvendo este conceito em sede legitimação da excepção à execução das sentenças administrativas, Freitas do Amaral remete para Marcello Caetano, que referia como excepção à exequibilidade as situações “que possam provocar perturbações da ordem ou danos irreparáveis em obras ou em bens de interesse geral”, concluindo: “parece não haver dúvida de que os interesses colectivos devem prevalecer sobre os interesses individuais, de tal sorte que entre o interesse da Administração (…) e o interesse do particular (…) é incontestavelmente o segundo que deve ceder em confronto com o primeiro”[9].
Estamos, pois, perante os limites éticos do exercício do direito, onde se deverá ter em conta um dos seus fins essenciais: o bem comum[10].
No processo existe um despacho de adjudicação judicial da propriedade do bem ao expropriante, que é o tal “acto consequente” a um acto administrativo que o precedeu e que foi declarado nulo, estando tal despacho “contagiado” pela mesma nulidade (art. 195.º/2 do NCPC), havendo um “interesse legítimo” na sua manutenção por parte da comunidade, que frui o bem comum, consistente no teleférico já em funcionamento, como é visível no local, após demolição do imóvel pelo expropriante (cfr. art. 6.º da resposta dos expropriados, a fls. 202).

Alves Correia[11] aborda duas situações possíveis, na sequência da anulação do acto administrativo de declaração de utilidade pública: i) caso os bens expropriados ainda não tenham sofrido transformações substanciais e a obra pública não esteja concluída ou em estado adiantado de execução, a anulação contenciosa do acto em causa tem como efeito o desaparecimento ope juris de todos os efeitos; ii) caso o bem expropriado já tenha sofrido profundas transformações em face do fim da expropriação, encontrando-se substancialmente modificada ou prejudicada a vocação que tinha à data do início do processo expropriativo, a execução da decisão do tribunal administrativo torna-se impossível, porque “acarretaria grave prejuízo para o interesse público”, traduzindo-se numa causa legítima de inexecução da sentença dos tribunais administrativos.
Conclui que na segunda hipótese enunciada, em respeito pela prevalência do interesse público, o particular fica impossibilitado de recuperar o seu bem, defendendo que seja reposto com uma indemnização que deverá cobrir a totalidade dos prejuízos suportados, nomeadamente aqueles que não tinham sido abrangidos pela indemnização normal da expropriação, como o prejuízo moral.
Suportada nesta doutrina, a jurisprudência tem vindo a aplicar a estas situações o princípio da “intangibilidade da obra pública”[12], como forma de salvaguarda e prevalência do interesse comum geral no confronto com o interesse particular.
Este princípio geral é o mesmo que se encontra aflorado no art. 133.º/2 - i) do CPA, onde se salvaguarda a possibilidade de manter o acto consequente ao acto administrativo nulo, face à primazia do interesse colectivo.
No sentido apontado se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 29.04.2010[13]: «O denominado princípio da “intangibilidade da obra pública”, princípio geral do direito das expropriações, a operar, nomeadamente, quando tendo havido um princípio de actuação legal expropriativa não ocorra um atentado grosseiro ao direito de propriedade, conduz a que o julgador já não deverá colocar a Administração numa posição idêntica à de um qualquer particular, determinando a restituição do bem ou demolição da obra como meios de fazer cessar uma “via de facto”, mas, atendendo ao interesse geral que a obra pública representa, abster-se de ordenar a restituição e limitar-se a conceder ao proprietário uma indemnização pela privação do gozo da coisa, enquanto ela se verificar».
A doutrina expressa no acórdão citado encontra também suporte no disposto no art. 335.º do CC, sobre a colisão de direitos, de espécie diferente, prevalecendo o interesse colectivo, protegido pelo princípio da intangibilidade da obra pública[14].

Assim, apesar da nulidade decretada, perante a prevalência do interesse público colectivo, tutelado pelo princípio da intangibilidade da obra pública, não deve proferir-se decisão no sentido visado pelos expropriados de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

Para esta consideração contribuem, ainda, outras circunstâncias.
Por um lado, os expropriados não se deram ao trabalho de trazerem aos autos o conhecimento da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em 15.11.2010, nem a proferida pelo Tribunal Central Administrativo Norte em 25.05.2012, que a confirmou.
Pelo contrário, em 18.02.2011 ainda vieram pronunciar-se pela inquirição das testemunhas por si arroladas, nas alegações oferecidas ao abrigo do art. 64.º do CExp. pugnaram pela atribuição da indemnização que reputam justa, na resposta de 12.10.2012 ao requerimento do expropriante no sentido de consideração da nova DUP apenas se opõem e dizem que a nova DUP também é nula, e apenas no recurso da sentença juntaram a documentação atinente às decisões dos tribunais administrativos.
Deixaram, pois, desenvolver o processo até ao fim sem uma palavra sobre a acção que a expropriada havia intentado naquela jurisdição, e que poderia ter sido levada em conta, nomeadamente em termos de suspensão deste processo.

Por outro lado, a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art. 289.º/1 do CC).
Como vimos, a restituição em espécie não é possível, porque o prédio já foi demolido para passar o teleférico, pelo que resta a fixação do valor correspondente.
Ora, este alcança-se através da atribuição da justa indemnização no processo expropriativo.

Por isso, também por estas razões, não deve proceder a pretensão dos apelantes.

Face ao exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença.

Custas pelos apelantes.

Porto, 12 de Dezembro de 2013
Teles de Menezes
Mário Fernandes
Leonel Serôdio
_______________
[1] Acórdão do STJ de 28.10.1997; Proc. 97A560
[2] Ibid.
[3] Proc. 705/08.8TBVCD.P2
[4] Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Volume III, Lisboa, 1989, pág. 324
[5] Fernando Alves Correia - As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, págs. 110 e 178 – define a declaração de utilidade pública como o facto constitutivo da relação de expropriação
[6] Estudos sobre Expropriações e Nacionalizações, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1989, pág. 38
[7] Freitas do Amaral, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2.ª edição, Almedina, pág. 84
[8] Código de Procedimento Administrativo Comentado, 2.ª edição., Almedina, 1997, pág. 651
[9] A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, 2.ª edição, Almedina, pág. 132 a 137
[10] Gustav Radbruch, Filosofia do Direito, Arménio Amado Editor, 1979, pág. 417, tradução e prefácio de Cabral Moncada
[11] As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública – Separata do voluma XXIII do Suplemento não Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1982, pág. 199 e ss.
[12] Acórdão do STJ, de 9.1.2003, Proc. 02B3575
[13] Proc. 1857/05.4TBMAI.S1
[14] Seguimos, comos e disse, o acórdão desta Relação supra identificado