Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0546376
Nº Convencional: JTRP00039101
Relator: JACINTO MECA
Descritores: FURTO
VALOR
Nº do Documento: RP200604260546376
Data do Acordão: 04/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 223 - FLS. 16.
Área Temática: .
Sumário: Para efeitos do preenchimento do crime de furto, a quantia de € 1,29 é um valor relevante, não desprezível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão, em conferência, os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

No âmbito do processo nº …../04.5 TAVCD que correu ….º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde, o Ministério Público deduziu acusação contra B…… imputando-lhe a prática de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal.
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Cumprido o disposto nos artigos 283º, nº 5 e 287º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal, nada foi requerido.
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Distribuídos os autos, a Exma. Juiz não recebeu a acusação, invocando para tanto o disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea d) do CPP.
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Inconformado com o despacho que rejeitou a acusação, o Ministério Público condensou, do seguinte modo, as razões da sua discordância:
O Ministério Público deduziu acusação contra B……. imputando-lhe a prática de um crime de furto simples previsto e punido pelo artigo 203º do Código Penal.
A Exma. Juiz não recebeu a acusação e ordenou ao arquivamento dos autos por entender que o valor da coisa furtada – € 1,29 euros – não justifica ou não tem dignidade penal.
Quer o Ministério Público quer a Exma. Juiz, nesta matéria, estão sujeitos ao princípio da legalidade.
Tendo a coisa objecto do furto valor patrimonial a acusação não pode ser rejeitada como sucedeu.
A Exma. Juiz ao rejeitar a acusação violou, por erro de interpretação, o disposto no nº1 do artigo 203º do Código Penal.
Concluiu pela revogação do despacho recorrido que deve ser substituído por outro que mande receber a acusação e designar dia para julgamento.
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Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu douto parecer propugnando pelo provimento do recurso.
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Seguiram-se os vistos legais.
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Teve lugar a Conferência.
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Cumpre apreciar e decidir
É entendimento pacífico que são as conclusões extraídas pelos recorrentes, a partir das respectivas motivações, que operam a fixação e delimitam o objecto do recurso, isto sem prejuízo da tomada de posição por parte dos Tribunais da Relação sobre todas as questões que, em face da lei, sejam do conhecimento oficioso e que ainda sejam passíveis de conhecimento.
Como evidenciam as conclusões de recurso só uma questão é colocada a apreciação deste Tribunal, a saber:
Tendo o objecto furtado valor patrimonial, a acusação não pode ser rejeitada?
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Com vista à apreciação desta questão, passamos a transcrever a acusação do Ministério Público e o despacho de rejeição.
Em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público requereu o julgamento de B……, imputando-lhe a prática dos seguintes factos:
No dia 7 de Maio de 2004, cerca das 15.00 horas dirigiu-se o arguido para o estabelecimento comercial “C….. & Companhia, situado na …… nº ….., em Portas Fronhas, desta Comarca, Aí, de uma das prateleiras expositoras, retirou uma embalagem de queijo fatiado da marca “Bluedino” no valor de € 1,29 que introduziu no bolso do casaco que vestia e, levando-a consigo, abandonou de imediato o local, tendo sido interceptado volvidos alguns minutos.
O arguido ao apoderar-se do objecto em causa e fazendo-o coisa sua, actuou livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que tal coisa não lhe pertencia e que agia contra a vontade se sem autorização do seu legítimo proprietário – o C…… – sabendo igualmente não lhe ser permitida tal conduta, porque proibida por lei.
Constituiu-se assim, autor material de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 203º do Código Penal.
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A Exma. Juiz, após tecer breves considerações sobre o bem jurídico protegido no crime de furto e sobre o tipo objectivo desta infracção, escreveu que às duas proposições – ilegítima intenção de apropriação e subtracção de coisa móvel alheia, deve-se acrescentar um elemento implícito a saber: o valor patrimonial da coisa (…).
No seguimento deste raciocínio, mais à frente questiona se o objecto subtraído, de valor tão reduzido, poderá ser considerado coisa móvel alheia com valor. Em abono da sua tese, cita o Sr. Prof. Faria Costa que defende que o elemento coisa previsto no artigo 203º do Código Penal tem que ter não só valor patrimonial como, além disso, tem de ultrapassar um limiar mínimo de valor para que desse jeito, a sua protecção, enquanto coisa alheia, ascenda à dignidade penal. Também o Sr. Prof. Beleza dos Santos considerava que o que justifica a previsão do furto como crime e a aplicação de uma pena ao agente que o comete é o facto por si praticado possuir aquilo que apelidava de dignidade penal. Com suporte nestes ensinamentos a Exma. Juiz mencionou: Ora, € 1,29 não é um valor que atinja o limiar daquilo que deve ser penalmente punível, tanto mais que o bago de uva e o grão de milho de outrora têm que actualmente ser vistos à luz dos conceitos que imperam numa sociedade consumista e urbana. Neste tipo de sociedade, é óbvio que bens como pequenos chocolates, pastilhas elásticas, fatias de queijo e outros com valor inferior àquele que é usualmente dado como gorjeta nos nossos restaurantes ou como compensação aos nossos arrumadores de carros têm de ser equiparáveis aos grãos de milho e bagos de uva a que se referia a doutrina. Do atrás exposto resulta (…) que uma embalagem de queijo com o valor de € 1,29 é um bem que, não obstante ter carácter alheio, não é integrável no conceito de coisa com valor patrimonial que justifique a tutela penal.
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Com vista a dilucidar a questão colocada à apreciação deste Tribunal passamos a transcrever o quadro normativo que nos ajudará a solucioná-la.
Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se valor diminuto aquele que não exceder uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto (alínea c) do artigo 202º do CP).
Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa (nº 1 do artigo 203º do CP).
Quem furtar coisa móvel alheia de valor elevado é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias (alínea a) do nº 1 do artigo 204º do CP).
Quem furtar coisa móvel alheia de valor consideravelmente elevado é punido com prisão de 2 a 8 anos (alínea a) do nº 2 do artigo 204º do CP).
Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor (nº 4 do artigo 204º do CP).
A redacção do nº 3 do artigo 297º do Código Penal aprovado pelo Decreto-lei nº 400/82 de 23.9 obrigou a sucessivas intervenções dos Tribunais Superiores tendo em vista a delimitação do conteúdo da expressão “valor insignificante”[ Entre outros, Ac. RP, datado de 14.1.1987, Col. Jur. Ano XII, tomo I, pág. 253; Ac. RP, datado de 4.2.1987, Col. Jur. Ano XII, tomo I, pág. 261; Ac. RP, datado de 8.11.1989, Col. Jur. Ano XIV, tomo V, pág. 221.]. Com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº 48/95, de 15.9, o legislador optou por delimitar os conteúdos das expressões “valor elevado; valor consideravelmente elevado e valor diminuto” e ao fazê-lo individualizou a medida da punição em face do valor da coisa furtada.
São elementos constitutivos do crime de furto: elemento objectivo: apropriação ou subtracção ilegítima de coisa móvel alheia; elemento subjectivo que o agente tenha intenção de se apropriar ilegitimamente para si ou para outrem da coisa. Quanto ao elemento subjectivo trata-se de um dolo específico, caracterizado pelo propósito do agente integrar a coisa furtada no seu património ou no património de terceiro, contra a vontade do seu proprietário (cf. Sr. Prof. E. Correia, Unidade e pluralidade de infracções, pág. 185, nota de rodapé). Quanto à problemática que envolve a consumação do crime de furto importa significar que este se tem por consumado quando o agente tira ou subtrai a coisa da posse do respectivo dono, contra a sua vontade, e a faz entrar na sua posse, substituindo-se ao poder de facto sob o qual ela se encontrava, não sendo necessário que o agente detenha a coisa em sossego e tranquilidade, bastando-se a lei com o facto do agente retirar a coisa da esfera patrimonial do seu legitimo proprietário, transferindo-a para si, passando a exercer a posse sobre a coisa, colocando-a na sua égide ou poder. Tal como ensina o acórdão do STJ, datado de 21 de Março de 1990, o furto tem-se por consumado no preciso momento em que a coisa furtada passa da esfera do seu legítimo detentor para a esfera do poder do agente (Col. Jur., Ano XV, tomo II, pág. 15 e 16 e Acórdãos do STJ processos nºs 747/98 da 3ª Secção e 46/99 da 3ª Secção).
O crime de furto integra-se na categoria dos crimes materiais – a cuja tipicidade interessa o resultado – condicionado à lesão do património de outrem, pelo que não se pode falar em furto quando não há uma efectiva diminuição do património do lesado. É necessário que o furto se apresente como um dano patrimonial, ainda que a coisa furtada tenha um exíguo valor económico ou tão só um valor subjectivo [Juiz Carlos Codeço, O Furto no Código Penal e no Projecto, 1981, pág. 240]. O tipo legal de crime enunciado no artigo 203º do Código Penal exige, para a sua verificação, uma efectiva lesão no património do lesado, devendo necessariamente ter algum valor, embora mínimo, mas não desprezível, de modo a que sua subtracção cause prejuízo à pessoa lesada[Conselheiro Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17ª edição, 2005, pág. 674]. Também Nelson Hungria escreveu que: a coisa subtraída deve representar para o dono senão um valor reduzível a dinheiro, pelo menos uma utilidade – valor de uso – seja qual for, de modo que possa ser considerada como integrante no seu património[Citado pelo Sr. Juiz Carlos Codeço, ob. citada, página 240].
De acordo com estes ensinamentos impõe-se que definamos se uma embalagem de queijo fatiado, no valor de € 1,29, deve ou não considerar-se de valor juridicamente irrelevante como entendeu a Exma. Juiz ou relevante como propugna o Ministério Público.
Explanou a Exma. Juiz, no despacho sob censura: quem, como nós, aceita que as penas têm de ter uma função ético-jurídica de castigar ou retribuir um certo mal tem de impor que a acção de punir tenha certa dignidade punitiva. Ora, € 1,29 não é um valor que atinja o limiar daquilo que deve ser penalmente punível, tanto mais que o «bago de uva» e o «grão de milho» de outrora têm actualmente de ser vistos à luz de conceitos que imperam numa sociedade consumista e urbana.
A Exma. Juiz considerou que o valor de € 1,29 de uma embalagem de queijo fatiado se integra na categoria de “desprezível”, por inferior às gorjetas dadas em restaurantes e aos arrumadores de carros nas grandes cidades, pelo que, não pode deixar de ser equiparado aos «grãos de milhos» e aos «bagos de uvas». Com o respeito devido, não podemos partilhar este entendimento, na medida em que a população portuguesa tem uma significativa componente rural que tem das “coisas e do seu valor” um entendimento diverso de parte significativa da população dita urbana. Retomando a análise dos preceitos acima transcritos, diremos que o nº 4 do artigo 204º do Código Penal tem afinidades com aquele outro – artigo 297º, nº 3, na versão originária do Código – optando o legislador por definir quantitativamente, na alínea c) do artigo 202º do Código Penal, o conceito de “diminuto valor”, o qual é necessariamente superior ao “valor insignificante” plasmado no nº 3 do artigo 297º do CP82. Da conjugação dos artigos 202º, 203º e 204º do Código Penal resulta que caem na previsão do artigo 203º do CP, todos os crimes de furto de valor inferior a 50 unidades de conta calculadas no momento da prática do crime e todos aqueles que embora qualificados pela verificação de uma qualquer das circunstâncias enunciadas no artigo 204º tenha um valor inferior a 1 unidade de conta, igualmente, avaliada no momento da prática do facto. No caso em apreço, o facto foi praticado em 2004, ano em que a unidade de conta foi fixada em 89 euros. Por facilidade de raciocínio diremos que se integram no artigo 203º do Código Penal todos as subtracções ilegítimas de “coisas” alheias cujo valor seja inferior a 89 euros.
Perguntar-se-á, então, se o furto de uma embalagem de queijo fatiado no valor de € 1,29 cabe ou não na previsão do artigo 203º ou se pelo contrário se trata de um valor tão pouco significativo que determina a não punição do facto?
Seguindo os ensinamentos do Sr. Dr. Carlos Codeço e que acima explanámos, diremos que as “coisas” para que possam ser objecto do crime de furto têm de ter algum valor, embora mínimo, mas não desprezível, punindo a lei o “facto” quando da sua prática resultar “prejuízo” para o lesado. Ao contrário do defendido pela Exma. Juiz, não podemos partilhar o entendimento, que a quantia de 1,29 euros é uma quantia desprezível para a generalidade das pessoas. Ainda hoje a doutrina vem integrando no conceito de desprezível “um palito, um alfinete, um botão, uma folha de papel, grão de milho, bagos de uva, etc.”[ Conselheiro Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17ª edição, 2005, pág. 675; Juiz Carlos Codeço, O Furto no Código Penal e no Projecto, 1981, pág. 241.]
A posição assumida pela Exma. Juiz, a ter vencimento, levaria a que o furto de produtos, no valor de € 1,29, expostos em grandes e pequenas superfícies comerciais deixasse de ter protecção legal, por se considerar o seu valor “desprezível”. Só deve considerar-se que a coisa furtada tem um valor “desprezível” quando da sua subtracção não resultar qualquer “prejuízo” ao lesado, o que não acontece quando uma pessoa furta de um espaço comercial uma embalagem de queijo no valor de € 1,29[Não abordamos as “coisas furtadas” que embora sem valor económico têm valor afectivo e aquelas outras que, apesar de estarem fora do comércio, tem um importante significado no desenvolvimento tecnológico ou económico e por isso de importante valor artístico, histórico ou científico.]
Numa visão puramente economicista, pode considerar-se que os custos de intervenção dos sistemas policiais e judiciais são infinitamente maiores do que o valor do furto, o que é verdade. Todavia, não se pode olvidar a função do direito penal que se apreende através da natureza do seu objecto – o crime – e da especificidade das consequências jurídicas que àquele se associam – penas e medidas de segurança. A função primordial da pena consiste na protecção de bens jurídicos (nº 1 do artigo 40º do CP), traduzindo-se a culpa jurídico-penal num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena[Sr. Prof. Figueiredo Dias, «Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime», pág. 215], princípio este expressamente afirmado no nº 2 do artigo 40º do Código Penal. Deixando de lado, todas as situações em que o bem furtado tem um valor desprezível, não pode a lei deixar de tutelar situações como a evidenciada nos autos, já que a conduta do arguido se traduziu na violação do poder de facto que a ofendida detinha sobre o produto furtado, conduta esta que, a provar-se, não pode deixar de merecer um juízo de censura.
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Nesta conformidade, o Tribunal profere a seguinte decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em conceder provimento ao recurso e consequentemente revoga-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação e designe dia para o julgamento.
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Sem custas.
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Notifique.
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Porto [Projecto elaborado e revisto pelo relator], 26 de Abril de 2004
Jacinto Remígio Meca
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
Arlindo Martins Oliveira