Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0531550
Nº Convencional: JTRP00037889
Relator: GONÇALO SILVANO
Descritores: EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RP200504070531550
Data do Acordão: 04/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: .
Sumário: Um cheque prescrito, não valendo como título cambiário, pode mesmo assim, ser alusão à relação subjacente, constituir título executivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

Clínica .........., Ldª deduziu oposição à execução que lhe intentou B.........., alegando que os cheques juntos aos autos não servem como título executivo, porquanto apenas um deles foi apresentado a pagamento, sendo certo que mesmo esse o foi para além dos 8 dias a que alude o art. 29º da Lei Uniforme de Cheques e Livranças.
Alegou ainda a oponente que mesmo a entender-se que subsiste a obrigação decorrente da relação subjacente, a mesma não foi invocada na petição executiva e deste modo, deveria ter sido proferido despacho liminar de indeferimento daquela petição.

Em contestação o embargado alegou que os aludidos cheques constituem título executivo ao abrigo do disposto no art. 46º n.° 1 al. c) do C.P.Civil por consubstanciarem documento particular assinado pelo devedor onde se insere o reconhecimento de uma obrigação pecuniária. Por outro lado, diz que não era necessário invocar a relação subjacente, já invocada em sede de procedimento cautelar apenso.

Em despacho saneador conheceu-se do mérito e foi apreciada a oposição julgando-se a excepção deduzida procedente por provada e, em consequência, declarou-se extinta a execução no que respeita à embargante Clínica .........., Ldª.

Inconformado com o decidido o exequente recorreu, tendo concluído as suas alegações ,pela forma seguinte:
A - A douta decisão recorrida viola o disposto na al. c) do n.° 1 do art.° 46.° do C.P.C. e no art.° 458.° do Código Civil.
B - Um cheque incorpora o reconhecimento da existência de uma dívida, tanto mais que sendo um meio directo e imediato de pagamento, é o valor que consta do mesmo que o sacador se propõe pagar com a sua emissão.
C - Um cheque, não apresentado a pagamento dentro do prazo da respectiva Lei Uniforme, vale como quirógrafo de um crédito, subsistindo como um documento, particular, assinado pelo devedor, que importa o reconhecimento de uma dívida, pecuniária, de valor certo, a qual o devedor se obrigou a pagar a um terceiro.
D - Para que um documento particular, que importe a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, seja considerado título executivo não é necessário que do mesmo conste a razão da sua emissão ou a descrição do negócio ao mesmo subjacente.
E - Os cheques constantes dos autos contêm todos os elementos necessários para, como documentos particulares, valerem como títulos executivos.
F - O negócio subjacente está suficientemente descrito nos autos, em fase anterior ao requerimento executivo.
G - Do mesmo modo que o requerimento de execução de uma sentença não necessita de reproduzir os seus termos, também um requerimento executivo onde se pede a conversão em penhora de um arresto, não necessita de reproduzir os fundamentos, de qualquer tipo, constantes da respectiva decisão;
H - É este o sentido no qual a norma da al. c) do n.° 1 do artº' 46.° do C.P.C., conjugada com o disposto no art.° 458.° do C.C., deveria ter sido interpretada e aplicada.
Houve contra-alegações onde se sustenta o decidido em sentença.

Corridos os vistos, cumpre decidir:

II- Fundamentos
a)- A matéria de facto provada considerada provada foi a seguinte:

1- 0 embargado intentou a execução a que estes embargos se encontram apensos dando à execução sete cheques, sacados sobre a conta n.° 001 de que a embargante é titular no Banco X.........., melhor descriminados no art. 1°, num total de 17.500,00 euros;
2- Tais cheques foram passados à ordem da segunda executada C.........., L.dª que, por sua vez, os endossou ao aqui embargado;
3- Dos sete cheques ali elencados, apenas o primeiro, datado de 2010812003, foi apresentado a pagamento, apresentação essa que ocorreu em 05 de Setembro de 2003;
4- 0 dito cheque veio a ser devolvido sem ser pago, por aposição no verso do mesmo de "cheque revogado por justa causa -extravio";
5- Os restantes seis cheques não foram apresentados a pagamento.

b)-O recurso de agravo.
É pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts.684º, nº3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado.
Vejamos, pois, do seu mérito.

1-Foi alegado pela embargante que aos cheques dados à execução falta um dos requisitos de exequibilidade, já que, seis deles não foram apresentados a pagamento, e um deles foi apresentado fora do prazo legal, ou seja, mais de 8 dias depois da sua data de emissão. Desta forma não se encontram preenchidos os requisitos do disposto nos arts. 29º e 40° da L.U.Cheques, uma vez que é certo ,como foi acolhido na decisão recorrida que “o cheque para valer como tal deve ser apresentado a pagamento, no prazo de oito dias a contar do dia indicado no mesmo como data de emissão, pois, só neste caso, e desde que acompanhado por uma declaração datada duma câmara de compensação contando que o cheque foi apresentado a pagamento em tempo útil e não foi pago, é que o portador pode exercer os seus direitos de acção cambiária contra os endossantes, sacador e outros co-obrigados”.

2-Resulta inequivocamente dos autos, face à matéria que se deu como assente, que os cheques não podem valer aqui como título cambiários, situação que é, aliás, aceite pelo exequente/embargado.

A questão que agora se coloca é a de saber se tais cheques não valendo como títulos cambiários, podem, mesmo assim, (sem que se aluda à relação jurídica subjacente) constituir título executivo, como meros quirógrafos, uma vez que para documentos particulares assinados pelo devedor que importem o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, existe a norma do artº 46º al. c) do CPC.

Na sentença acolheu-se a tese de que não pode existir título executivo nestas circunstâncias, uma vez que não foi alegada a relação subjacente.

Sabemos que efectivamente sobre esta matéria têm sido proferidas na jurisprudência decisões diferenciadas, que se traduzem, no essencial, em três correntes.

A primeira ia no sentido absolutamente negativo – o cheque prescrito não cabia no preceito;
A segunda defendia a positiva, desde que o exequente invocasse a relação jurídica subjacente e esta não constituísse um negócio jurídico formal;
A terceira defendia a positiva mesmo que não fosse invocada esta relação subjacente. [Consubstanciaram a primeira os Ac.s do STJ de 4.5.99, de 29.2.2000 e de 16.10.2001 (CJ STJ VII, 2, 82, VIII, 1, 124 e IX, 3, 89, respectivamente)];

A segunda é maioritária (cfr. entre muitos, os Ac.s do STJ de 30.1.2001 -CJ STJ, IX, 1, 86; 29.2.2002-CJ STJ X, 1, 64; 22.0.2003, 17.6.2003, 30.10.2003 e 19.1.2004 -todos com texto integral em www.dgsi.pt).
A terceira está vertida nos acórdãos do STJ de 11.5.99 (CJ STJ, VII, 2, 88) e desta Relação, nomeadamente, de 31.1.2002, 28.10.2002 e 15.5.2003.

Na doutrina, salienta-se a posição do Prof. Lebre de Freitas (A Acção Executiva depois da Reforma, 4ª ed. 59, nota de pé de página 48-B, parte final) e Dr. Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 5ª ed. 34 e seguintes), ambas defendendo a segunda posição.

3-Por nós temos defendido, como principio geral a terceira daquelas correntes por se entender que a circunstância (de não alegação da relação subjacente) não invalida que o cheque em causa possa valer como titulo executivo ,como iremos demonstrar, com respeito pelas opiniões contrárias existentes sobre a questão.

O nosso entendimento sobre esta matéria fundamenta-se nos seguintes pressupostos:
Nos termos do disposto no artigo 46º alínea c) do Cód. Proc. Civil os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável… têm força de título executivo.

Segundo o preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12, visou-se com a alteração introduzida nesta disposição, contribuir para a diminuição do número de acções declaratórias de condenação, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, apenas para facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial.
A intenção foi, pois, a de alargar o elenco dos títulos executivos.
Exige-se agora para todos os documentos particulares, no que concerne aos requisitos formais, para que gozem de força executiva, os elementos indicados no citado preceito legal.
Ora os documentos particulares, para se configurarem como títulos executivos, devem, pois, obedecer aos requisitos mencionados no citado art. 46º c), ou seja:
- conterem a assinatura do devedor;
- importarem a constituição ou reconhecimento de obrigações;
- as obrigações reportarem-se ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.

Verificados estes requisitos, estar-se-á, pois, perante um título dotado de exequibilidade.

Acresce que conforme se dispõe o art. 458º nº 1 do CC que, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
Almeida Costa -Direito das Obrigações, 5ª ed., 369; Antunes Varela, Das Obrigações em 10ª ed., 442 e Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed., 166, defendem que, é através do acto unilateral, que se efectua a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e a validade da relação fundamental. É consagrada, todavia, uma simples presunção, pelo que a prova em contrário produzirá as consequências próprias da falta, ilicitude ou imoralidade dos negócios jurídicos.
Não se trata, pois, como esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela CC Anotado, I, 4ª ed., 440, de nenhum negócio abstracto, mas apenas de uma presunção de causa e de inversão do ónus de prova da existência da relação fundamental.

4-Dentro destes princípios que sinteticamente se enunciam diremos que o facto de um cheque dado em execução se encontrar prescrito ou não ter sido apresentado a pagamento no prazo legal, em nada releva para a sua força executiva.

Decisivo é que sendo o mesmo apresentado como documento particular (quirógrafo de obrigação) esteja assinado pelos demandados como executados, no domínio das relações imediatas em termos de se poder afirmar ter existido um reconhecimento de obrigação pecuniária do devedor para com o credor.

Reportando-nos agora ao caso dos autos, muito embora nada obstasse a que os cheques em causa fossem apresentados como títulos executivos, verifica-se contudo que a ordem de pagamento que neles está contida, é destinada a um credor que não é o aqui exequente.

Como acima está assente, o embargado intentou a execução dando à execução sete cheques, sacados sobre a conta n.° 001 de que a embargante é titular no Banco X.........., num total de 17.500,00 euros, mas tais cheques foram passados à ordem da segunda executada C.........., L.dª que, por sua vez, os endossou ao aqui embargado;

A executada embargante não se obrigou nestes documentos (que eram cheques) perante o aqui exequente.
O exequente apresenta-se como portador dos cheques, invocando um endosso por parte da executada C.........., L.dª ,mas como acima referimos, a partir do momento em que os cheques deixaram de valer como título cambiários, também o exequente não pode invocar aqui o “endosso” (figura cambiária -artsº 14º a 20º da LUSC) [-O endosso é uma declaração expressa ou implicitamente exarada no título pelo transmitente, chamado endossante e pela qual este transfere ao transmitendo, chamado endossado, os direitos emergentes do mesmo título], para se apresentar como portador dos cheques a exigir da embargante como co-obrigada, quantias que não estão já no domínio de relações cambiárias.

A assinatura nos cheques da ora embargante (ou sua representante) só pode reportar-se a constituição ou reconhecimento de obrigação para com a outra co-executada.
Por sua vez a assinatura dessa co-executada só tem relevância no âmbito da figura do endosso, que agora já não pode ser aqui invocado.

Por isso a assinatura do verso do título de crédito não pode ser tida como integrando reconhecimento ou constituição de qualquer obrigação, para além da cartular, que deixou de existir por os cheques terem perdido o seu valor cambiário.

5-Nestas circunstâncias não se pode afirmar que a embargante assinou estes documentos particulares em termos de assumir perante o exequente o reconhecimento de uma obrigação pecuniária.
Estes documentos só estão na sua posse porque a outra executada lhe fez entrega dos mesmos (com um endosso cambiário) no domínio de relações entre ambos existentes, mas que não têm já a ver com as que agora são exigidas da embargante.

Inexistindo título cambiário, não há razão de ser nestas circunstâncias para a embargante ser demandada com base nesses títulos particulares sem a alegação de uma causa subjacente, que não existe na petição executiva (nada valendo aqui para o efeito o facto de ter existido um procedimento cautelar onde tenha havido uma discussão sobre essa causa).

Deste modo e por inexistirem os requisitos formais exigidos pela citada disposição legal do artº 46º, c) do CPC (relativos às relações entre exequente e executada/embargante), entendemos ser de confirmar a decisão recorrida, ainda que com fundamentos totalmente diferentes.

III- Decisão.
Pelo exposto acorda-se em negara provimento ao agravo, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo agravante.
Porto, 7 de Abril de 2005
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz